Quando eu acordei, eles já haviam ido para as suas casas, mas o café da manhã estava na mesa. Fiz a rotina matutina, me arrumei e fui para o mercado livre. As pessoas chamavam esse mercado assim porque eram vendedores no meio da rua fazendo ofertas de armas, livros e alguns até tinham anéis. Anéis eram coisas bastante raras, nem mesmo pessoas ricas, como o Glaucos, tinham um. É claro que podiam simplesmente fazer um círculo de um metal qualquer e colocar no dedo, mas anéis com propriedades mágicas eram dificílimos de conseguir.
Fiquei observando as ofertas por um bom tempo, era difícil achar um orbe de gelo bom, os magos de gelo não eram muito numerosos. Obviamente havia mais do que os magos negros, mas ainda assim. Provavelmente eu já estava procurando por umas 2 horas quando um vendedor me chamou.
-Bom dia mago de gelo.
Sim, eu estava com a magia negra presa.
-Bom dia. – respondi educadamente.
Aproximei-me da pequena tenda mágica que ele tinha. Parecia ser feita de vidro, e era de um azul escuro muito bonito. Aquilo indicava que a loja era especializada em água, então por que ele tinha me chamado?
-Você parece procurar algo, talvez eu possa ajudá-lo.
Talvez, assim como talvez você seja daltônico, meu cabelo é claro, não escuro.
-Talvez... quero vender meu antigo orbe e comprar um novo. – eu disse, disfarçando o comentário maldoso.
-Então você está no lugar certo, tenho algo perfeito pra você.
Ele me mostrou um orbe prateado que tinha uma aura meio azulada e tinha a forma de um floco de neve com um diamante no centro. Quem diria, um orbe especializado em gelo.
-O metal é o vento ártico, uma liga de prata e cobre encantada em temperaturas extremamente baixas e como você pode ver, acompanhado de um diamante.
Muitíssimo interessante, na verdade até demais. Parecia ser um orbe muito bom, já que tinha um diamante, mas seria caro...
-É fantástico, mas... eu não tenho verba para tal. – eu disse sorrindo.
Ele pensou por um momento e seus olhos recaíram no eclipse.
-Posso trocar nesse seu orbe de eclipse.
Nem se as vacas começassem a voar... e não, nenhuma vaca sofreu mutações ao ponto de voar... no máximo de cuspir fogo, dependendo da alimentação delas.
-Ah não, ele não está à venda. – eu disse calmamente.
Ele pareceu meio desinteressado depois da recusa.
-Entendo, então, o que você tem a oferecer?
Mostrei o meu orbe da mão esquerda e o meu antigo orbe da mão direita, ambos eram feitos de uma liga de bronze com um pouco de prata e uma safira incrustada, nada muito forte.
-É o que eu tenho.
Pela sua expressão, obviamente não seria o suficiente.
-É complicado, porque esse orbe é muito poderoso.
Ele tinha razão... não valia a pena, mas havia outros fatores envolvidos além de só o preço.
-Realmente, para um mago de gelo é, é uma pena que não tenham muitos por aí, não é mesmo?
Isso o deixou pensativo.
-Além disso, meus orbes podem ser desmontados para a fabricação de algo melhor, enquanto que o seu é uma peça pronta. Diga-me, a quanto tempo você tenta vender esse orbe?
Aparentemente eu estava tendo algum sucesso, ele ficou algum tempo pensando sobre aquilo.
-Já faz algum tempo...
E ali estava a minha deixa.
-Justamente, talvez seja uma oportunidade única.
Ele avaliou a situação, me encarando por alguns segundos. Tentei manter minha postura de estar fazendo a coisa correta, quando na verdade eu estava me aproveitando de uma falha para obter vantagem. Talvez isso seja um defeito meu, mas eu aprendi a extrair vantagens das desvantagens dos outros, era assim que eu era... era assim que a magia negra funcionava.
-Ok mago, você ganhou, eu não aguento mais tentar vender esse orbe. Eu aceito a troca.
Ele me deu o orbe do vento ártico e eu dei os meus orbes de safira para ele.
-Muito obrigado, foi ótimo fazer negócio com você. - eu disse sorridente.
-Eu é que agradeço. – ele disse, olhando para os orbes que eu dera a ele, provavelmente planejando o que faria com eles.
Coloquei o orbe do vento ártico na mão esquerda e senti um arrepio, um frio bom passou pelo meu corpo. Fui para a lavanderia e peguei minhas roupas, deixei-as em casa e fui almoçar num restaurante.
Era estranho estar sozinho, já que quase o tempo todo eu tinha algum amigo por perto. Para minha surpresa eu vi o Caronte andando na rua, pela janela. Eu bati no vidro, ele ouviu e entrou no restaurante. Assim que ele chegou perto de mim eu senti uma vibração estranha do orbe do eclipse, a magia negra queria estar livre, fiz o desejo dela, a libertei. A primeira coisa que ele fez foi reparar nas minhas novas armas.
-Ângelo, desde quando você tem orbes bonitos?
A insinuação de que eu tinha orbes feios foi muito boa para o meu ego, acredite... mentira, não foi.
-O eclipse eu consegui ontem a noite e o vento ártico eu consegui hoje.
Ele segurou a minha mão, na qual o orbe do eclipse estava preso e ficou o observando.
-Não reconheço nenhum dos dois metais.
Isso me deixava um pouco mais feliz, ele também não reconhecia a luna.
-Um é o vento ártico, o outro é a luna.
Pela expressão de incredulidade no seu rosto, talvez ele conhecesse a luna sim...
-Isso é luna?! Não pode ser, a luna não pode ser combinada com um diamante.
É, ele conhecia. E eu tinha falado mais do que deveria... Eu sussurrei:
-É que não é um diamante.
Ele avaliou o meu olhar.
-Talvez você tenha tido mais aventuras do que eu esteja sabendo.
Foi uma fala engraçada, apesar de ele estar me vigiando, ele não sabia da caverna, o que era um alívio!
-Foi só uma. – eu disse sorridente. – Bem, de qualquer forma, quer almoçar?
Ele ficou pensativo.
-Eu não costumo almoçar em restaurantes.
Eu também não, mas eu não entendi qual era o problema com eles...
-Nem eu.
Ele sorriu um pouco.
-Então eu aceito.
Nós rimos. Ele pediu seu prato e comemos conversando sobre nossas vidas. Era a terceira vez que não falávamos de nada relacionado à academia. Quando acabamos de comer ficamos andando pela cidade. As pessoas ficavam um pouco irritadas quando chegavam muito perto de nós, mas resolvemos ignorar. Conversamos até as 14:45, quando eu disse que precisava ir ver minha mãe. Nós nos despedimos e eu fui para o portão de transporte.
Ver minha mãe aquele dia foi muito bom, ainda mais quando ela trouxe a Carol para me ver também, eu estava morrendo de saudade das duas. Contei a elas a minha semana e como as coisas estavam indo e... contei sobre o Miro. Inicialmente eu achei que ambas iam me fuzilar com os olhos, mas elas aceitaram numa boa, até mesmo a Carol. Pelo que parece elas também estavam começando relacionamentos, a minha mãe estava saindo com o mago que ela mencionara da última vez que nos vimos e a Carol estava namorando o arqueiro que foi com ela para a Caverna das Sombras. Foi triste lembrar daquele nome.
Ficamos conversando até as 19h, que foi quando o guarda delfi me disse que eu precisava voltar. Eu abracei e beijei as duas e voltei para a cidade. Lembrei-me de que ainda não tinha tempo de ler o livro da seção reservada, então fui à academia para fazê-lo. Peguei o livro e fui até uma mesa um pouco mais afastada das outras. O livro falava sobre magias chamadas de auto-sacrifício, cada elemento tinha um tipo de magia desta, elas eram chamadas desse jeito porque a magia era tão poderosa que inevitavelmente também matava ao evocador da mesma. Eu li sobre a de gelo, era chamada A eterna chuva de gelo, ela requeria concentração durante algumas horas e necessitava de uma evocação prévia de nuvens de tempestade. Quando eu comecei a ler a magia de auto-sacrifício das trevas uma voz atrás de mim me assustou.
-Você não pode ler este livro.
Era meu professor, eu gelei.
-Ah... é que eu fiquei curioso e... desculpe.
Vergonha transpassou meu rosto. Normalmente eu ficava envergonhado por comentários sem graça do Miro ou do Glaucos, mas isso era muito pior...
-Tudo bem Ângelo, mas há uma razão para alguns livros serem da seção reservada...
Ele pegou o livro da minha mão.
-Não queremos que os alunos cometam suicídio.
Sua voz tinha sido cortante. Eu não quis decepcioná-lo, não depois do que ele tinha feito por mim... eu tinha feito algo muito, muito ruim...
-Eu não sabia que eram magias suicidas...
Isso não melhorou o olhar de total e absoluta reprovação nem um pouco...
-Eu acredito em você, mas não quero que você faça isso de novo.
Eu queria que ele estivesse gritando, teria sido bem melhor que a voz de desapontamento...
-Tudo bem, me desculpe.
Ele respirou fundo, e me encarou, um pouco triste.
-Vou colocar esse livro na seção reservada.
Bem, sem aquele livro eu não tinha muito que fazer aqui... e nem estava no clima também...
-Ok... acho melhor eu ir.
Levantei-me e empurrei a cadeira de volta para o seu lugar.
-Não faça nenhuma besteira Ângelo.
As palavras dele me pegaram de surpresa, eu achava que a conversa já havia acabado. Mas... o que eu faria de ruim?
-Por que você está dizendo isso?
Ele ficou pensativo, mas disse:
-Por nada, tenha uma boa noite.
Eu odiava quando ele ficava misterioso, mas eu sentia que ele tinha ficado decepcionado, então a raiva se esvaiu. Fui para casa, me troquei e deitei na minha cama. Bem, o Miro não estava, então acho que não tinha problema eu dormir na cama dele hoje. Quando eu deitei notei que eu não estava acostumado a ter tanto espaço para mim, dei risada com esse pensamento. Mas não era só o espaço que era estranho, a cama tinha o cheiro dele, e eu gostava daquele cheiro. O sono veio logo, eu tinha esquecido que não tinha jantado...
Acordei no dia seguinte com um beijo.
-Bom dia.
O Miro estava sentado ao meu lado.
-Bom dia. – eu disse preguiçosamente.
-Gostou da cama? – ele perguntou com um sorriso malicioso no rosto.
Minha mente viu algumas possibilidades de interpretação, uma pior que a outra. Respondi usando a interpretação mais pura.
-É confortável.
Ele riu, provavelmente imaginando o porquê de eu ter demorado um pouco para responder.
-Que bom que você gostou dela.
Eu achei muito suspeito esse comentário, mas para manter minha sanidade mental num nível aceitável achei melhor ignorar esse pensamento.
-Que horas são, Miro?
Ele olhou no relógio que tínhamos no quarto, o qual ficava na parede, logo acima da cama do Glaucos e disse:
-Oito horas.
Eu ainda não queria levantar... enrolei-me um pouco mais no lençol e perguntei:
-E como foi seu sábado?
Ele começou a mexer no meu cabelo, enquanto falava:
-Foi bom rever a família.
Sim, isso me lembrava que eu tirei um dia dele perto dos pais dele...
-É, digo o mesmo.
Ele deitou ao meu lado e me beijou no rosto.
-Não vou te beijar, não escovei os dentes.
Ele riu.
-Na verdade, eu vou fazer isso agora.
Levantei-me, peguei uma camisa preta de manga comprida e uma calça jeans azul escura, os quais me deixavam muito bem, e entrei no banheiro. Tomei meu banho, escovei os dentes, sequei-me, dessa vez arrumei meu cabelo, e me troquei. Quando sai percebi que o Miro tinha trocado de roupa. Ele usava uma camisa branca de manga curta que ficava bem justa ao corpo e era um pouco aberta no peito, deixando à mostra seu pingente azul, sua calça era jeans preta, básica. Ele estava absurdamente lindo.
-Porque você está arrumado? - eu perguntei, tentando disfarçar o quanto estava abobado com aquele visual dele.
-Faço a mesma pergunta. – ele perguntou, cruzando os braços.
-Ah... eu queria me sentir bonito hoje.
Ele riu um pouco e veio até mim, me dando um abraço muito bom...
-Você sempre está bonito. – ele disse, beijando minha testa.
Meu rosto ficou vermelho.
-Acho que é a sua vez de responder a pergunta.
Ele me encarou por alguns momentos, aqueles olhos vermelhos que lembravam o puro fogo.
-Eu queria ficar bonito pra você.
Ah, que fofo! Poxa, eu pareci meio egoísta, olhando por esse ângulo, mas tudo bem. Eu ri do meu pensamento. Encostei a cabeça em seu peito.
-Seu cabelo tá arrumado? – ele perguntou meio incrédulo.
Era a primeira vez que eu o arrumava na nação delfi... lembrar: arrumar o cabelo não mata.
-Hum... sim.
Ele começou a rir.
-Nossa, hoje chove.
Eu bati no peito dele.
-Que absurdo, seu besta!
Eu comecei a rir também.
-Eu nunca te vi com o cabelo arrumado!
Ah, nem por isso...
-Eu tenho preguiça de arrumar.
Pensando bem, era meio óbvio que era preguiça de arrumar, não precisava eu ter dito. O que mais seria?
-Ah... bem, já que estamos arrumados, temos que sair. Pra onde você quer ir?
Meu estômago fez barulho.
-Eu quero ir tomar café.
Ele riu.
-É verdade, você não tomou café ainda.
Eu concordei com a cabeça.
-Vou lá buscar alguma coisa para comer. – eu disse, afastando-me um pouco dele, e virando para ir para a porta. Ele colocou as duas mãos na minha cintura e disse:
-Eu vou com você.
Eu olhei para ele, meio sem graça, e tirei a mão dele dali. Ele riu um pouco com aquilo, mas não fez nada para me deter. Lancei um olhar de “se comporte” e segurei a mão dele. Fomos até a cozinha, ele foi com um sorriso sem vergonha no rosto por todo o caminho.
Peguei só um pão com manteiga e um suco de laranja e comecei a comer ali mesmo, aparentemente ninguém parecia se importar.
-Você vai comer só isso?
Olhei para o meu pão, ele parecia ser suficiente para mim.
-Acho que sim, por quê?
Aquele sorriso que antevia um comentário que com certeza me deixaria muito envergonhado apareceu em seu rosto. Que Deus tenha piedade de meus ouvidos...
-Talvez você precise de bastante energia hoje.
Eu estava tomando o suco na hora, então eu quase me engasguei com ele. Assim que eu parei de tossir, o que demorou algum tempo, eu olhei para ele, com o rosto vermelho, e perguntei:
-E o que lhe faz pensar que vou precisar de mais energia hoje?
Ele abriu um largo sorriso, e essa foi a minha resposta.
Terminei meu café da manhã em silêncio. Eu estava quieto porque estava envergonhado. Ele estava quieto porque provavelmente estava curtindo um pouco da minha vergonha.
Quando eu terminei, ele perguntou:
-Então... aonde vamos?
Eu não conhecia quase nada, não tinha como eu opinar muito bem sobre aquilo.
-Eu não conheço a cidade...
Eu fiquei meio sem jeito, já fazia algum tempo que eu estava aqui e eu nunca saía para passear. Não que em Jolnir fosse diferente, mas eu tinha feito mudanças, uma delas poderia ter sido essa...
-Ah é... ok, posso te levar na praça.
Isso me deu um dejá-vù impressionante.
-Não pode ser outro lugar?
Ele não entendia a cara de horror que eu estava fazendo, já que eu não havia contado a ele muita coisa a respeito do Marcelo.
-Qual o problema com a praça?
Todos.
-Eu tenho problemas com a praça.
Ele parecia estar muito curioso, e eu ficaria muito feliz se fôssemos para um novo tópico.
-Ah... então tá. Podemos ir à praia.
Isso sim seria legal. Seria muito bom voltar lá depois de tanto tempo.
-Tudo bem, vamos. – eu disse sorrindo.

Acordei no dia seguinte bem melhor, o tempo extra de sono me fez bem. Notei que a magia negra tinha voltado, não sabia se ficava feliz ou triste. No final das contas eu fiquei feliz. Tomei meu banho, escovei os dentes e resolvi buscar o café da manhã na cozinha, antes que viessem trazer para o quarto. Peguei os três cartões de estudante e fui. Quando voltei o Glaucos estava no banheiro e o Miro estava dormindo ainda. Deixei a comida encima da mesa e fui acordá-lo. Sentei na cama dele e disse:
-Bom dia.
Ele abriu os olhos e deu um sorriso torto.
-Já está mais disposto Ângelo?
Um sorriso malicioso cruzou seu rosto.
-Depende...
Ele me puxou pra perto dele e me cobriu com o cobertor.
-Se você está me chamando para dormir, eu tenho disposição para isso com certeza.
Ele riu e me beijou no rosto.
-Te amo sabia? - ele disse.
Ah, ele era tão fofo.
-Acho que eu sabia.
Comecei a rir. Ele me abraçou e disse:
-Bobo.
Como era bom estar com ele...
-Eu sei, é o que todos dizem.
Ele arqueou a sobrancelha.
-Ah é? Então eu sou só mais um?
Não me aguentei, comecei a gargalhar.
-Claro que você não é só mais um.
Eu o beijei na bochecha.
-Sei, sei.
Ele ficava tão bonitinho quando estava bravo. Mas só quando estava um pouco bravo, muito bravo ele me dava medo.
-Você devia ficar feliz, eu nunca deitei na cama de outra pessoa que não fosse a minha, ainda mais quando o dono da cama ainda estava nela.
Consegui arrancar um sorriso em seu rosto. Ele começou a acariciar meu cabelo.
-E você devia ficar feliz porque você é a primeira e última pessoa que eu gosto de verdade.
Meu rosto ficou vermelho, que coisa mais fofa!
-Aaahhhh, que lindo.
Eu apertei a bochecha dele, ele ficou vermelho.
-Eba, te deixar vermelho é legal, dá uma sensação de vingança que você não tem idéia do quão é boa.
Ele me encarou por alguns segundos, rindo.
-Nem ligo, é fácil te deixar vermelho.
Ele segurou a minha mão e colocou-a na bermuda dele, pude sentir a coxa dele.
-Hum, ok, não precisa apelar.
Tirei minha mão de lá, com o rosto mais vermelho que o dele e me levantei.
-Você não ficou chateado né?
Não era essa a impressão que eu quis passar, mas avaliando melhor, parecia.
-Não, é só que não quero que o Glaucos saia do banheiro e me veja na sua cama, embaixo do cobertor com você.
E também porque eu tinha medo de não ter tanto controle quanto deveria, mas isso não precisava ser citado.
-Bem, - eu continuei. - vou arrumar as roupas para levar para a lavanderia.
-Ok, quando o Glaucos sair do banheiro você me avisa.
Comecei a juntar as roupas sujas e colocá-las numa sacola, quando eu estava quase terminando o Glaucos saiu do banheiro. Fui até a cama do Miro e comecei a deslizar o dedo pela sua coluna. Ele se arrepiou e acordou meio assustado.
-O Glaucos saiu do banheiro. – eu disse com o rosto mais angelical que consegui fazer na hora.
-E foi assim que você resolveu me avisar?
Eu não conseguia decifrar se ele estava bravo, constrangido ou se tinha gostado. Bem, melhor prevenir do que remediar.
-Ok, lembrarei de não fazer de novo. – eu disse sorrindo.
-Você pode fazer de novo...
Seu rosto ficou meio vermelho. Ok, ele só não gostava de ser pego de surpresa.
-Bom dia pra vocês também. - o Glaucos disse.
-Bom diaaa Glaucos.
Fui até ele e o abracei.
-Pronto, agora você não precisa ficar enciumado. – eu disse sorridente.
Ele pareceu meio confuso.
-Mas eu não tava enciumado.
Eu o larguei.
-Feliz? Agora não estou te abraçando mais, já que você não estava enciumado.
Ele levantou a mão e começou a falar, mas depois ficou quieto.
-Ângelo, eu to confuso, quero minha mãe.
Ele disse aquilo com muita cara de coitadinho, eu e o Miro rimos muito.
-Eu vou tomar banho. - disse o Miro.
-Eu vou tomar café. - eu disse.
-Também vou tomar café. - o Glaucos disse.
-Mas... – começou o Miro. - se vocês tomarem café agora, eu vou tomar café sozinho depois.
Eu e o Glaucos nos entreolhamos.
-Sim, e daí? Eu não gosto de você. – o Glaucos disse, com cara de desdém.
O Glaucos foi tão convincente que o Miro quase começou a chorar.
-Brincadeira Miro, você sabe que eu te amo.
O quê?! Lancei um olhar de ódio a ele.
-Como amigo, Ângelo, não vou roubar ele de você.
Eu não era inseguro, só... hum... ok, eu era inseguro.
-Eu te espero pra tomar café. – disse o Glaucos para o Miro.
-Eu também vou esperar, enquanto isso fico nas árvores.
O Glaucos começou a rir descontroladamente.
-Isso mesmo Ângelo, vai lá dar uma de rei da mata.
Meu rosto ficou muito vermelho.
-Glaucos!
Eles riram demais, o Miro quase caiu no chão de rir.
-Ahhh, seus nojentos.
Quando sai pela janela ainda pude ouvi-los rindo. Eu não estava nervoso, mas fiquei bem envergonhado com o comentário, porque seria mais simples se eu pudesse tirar energia do ar. Fiz uma promessa a mim mesmo: eu aprenderia a fazer isso.
Voltei para o quarto assim que vi o Miro lá dentro, ele e o Glaucos estavam sentados à mesa. Assim que entrei o Glaucos disse:
-Ângelo, matou alguma coisa pra comermos?
Podíamos dizer que se olhar matasse, então sim, eu teria matado algo para comer. Ele.
-Não, mas se você estiver se voluntariando...
O Miro começou a rir. Eu também sentei.
-Ângelo revoltado, - disse o Glaucos. - num pode nem brincar com ele.
-Eu não estou bravo. – minha voz disse o extremo oposto.
Peguei um pão e coloquei queijo nele.
-Mesmo?
Mesmo? Não sei, acho que eu estava, mas... sei lá, não estava com raiva deles, estava com raiva de mim mesmo.
-Eu quero aprender a retirar energia do ar, e o fato de eu não saber isso me incomoda.
Eles se entreolharam brevemente.
-Entendi. – disse o Glaucos.
Tomamos o café da manhã e fomos para a academia, passando na lavanderia para deixarmos nossas roupas sujas lá. Na aula da manhã o professor estava dando teoria do vento, mostrando que apesar de ele não ser uma investida tão poderosa quanto o relâmpago ou fogo, ainda assim podia ser uma arma letal se bem usado. Para minha felicidade ele nos ensinou as duas coisas que eu queria aprender: como tirar energia do ar e como mandar mensagens de vento. Era complicado tirar energia do ar, porque o foco tinha que ser muito vago, mas depois de um tempo eu peguei o jeito, já as mensagens de vento demorou um pouco mais. Contudo, no fim do dia eu havia aprendido ambos.
Assim como em quase todos os dias dessa semana eu esperei os outros saírem da arena e fui até o professor.
-Vamos para a sala, tenho muitas novidades para você. – ele disse sorrindo.
Quando estávamos quase na sala um espadachim de cabelos vermelhos interceptou o professor.
-Érebo, aquilo que você me pediu.
Ele entregou uma pequena caixa metálica para o professor
-Ah, que maravilha, muito obrigado, deu certo?
Viva, vamos deixar o Ângelo às escuras, ele não está curioso.
-Devo admitir que foi muito difícil, mas está perfeito, eu nunca tinha feito algo assim.
O professor ficou muito feliz com a notícia.
-Excelente... muito obrigado Arges.
-Não há de que. – ele respondeu sorridente, apertando a mão do professor.
Entramos na sala e ele colocou a caixa encima da mesa dele, eu sentei numa cadeira que ficava de frente para a mesa.
-Ângelo, você se lembra porque estava fazendo os trabalhos para mim?
Explicações, até que enfim!
-Porque você ia me dar o metal para fazer o orbe.
A diferença de humores da sala era gritante. Eu estava estressado porque estava curioso e ele parecia muito excitado com toda a coisa misteriosa.
-Exatamente, porém, eu menti em uma coisa, quando eu te prometi o metal, eu não o tinha.
-Ah...
Que legal da parte dele...
-Eu sabia que aquela pedra não podia ser combinada com um metal comum, então nós fizemos um metal que se adéqua a ela.
Nós o quê?!
-Desculpe, não entendi. – eu disse, um tanto quanto perplexo.
-Nós fizemos o metal Ângelo, durante todos esses dias.
Então era isso, o feitiço na pedra negra. Finalmente as coisas começaram a fazer sentido...
-Mas... – eu comecei. - aquilo não era um metal, era uma pedra.
-Só a cobertura. – ele disse animado. - Era prata coberta com rochas negras vulcânicas. Se fizéssemos o encantamento direto na prata ela emitiria uma luz que nos cegaria. Nós fizemos o feitiço da lua para transformar prata em um metal muito raro, chamado luna.
-Hum...
Eu nunca tinha ouvido falar desse metal.
-E para a minha felicidade o encantamento foi um sucesso.
Se depois de tudo aquilo tivesse dado errado...
-Ontem mesmo eu entreguei a luna e a pedra dos sonhos para o Arges, e ele acaba de me dar o seu orbe.
Ele tirou da caixa um orbe prateado com a forma de um sol coberto, em parte, por uma lua crescente. A parte da lua era um pouco mais fosca enquanto que a parte do sol brilhava vividamente. E entre o sol e a lua, no centro do orbe estava a pedra dos sonhos. Eu fiquei maravilhado com aquilo.
-Uau...
Não havia palavra para aquilo, era... lindo!
-É realmente muito bonito, você sabe o que significa?
O eclipse...
-O eclipse solar, a mais poderosa arma de um mago negro.
Segundo os livros quando há um eclipse solar o poder dos usuários da luz é drenado porque seu regente natural “morre”, enquanto que os usuários de magia negra recebem esse poder, ficando ainda mais poderosos.
-Vamos lá Ângelo, coloque-o, você mereceu.
Eu me aproximei dele e peguei o orbe, quando eu o toquei a parte da lua ficou brilhante e a parte do sol ficou fosca.
-O que...?
-Ele responde ao contato, - o professor respondeu rapidamente. - como eu sou um mago branco ele deu forças ao sol, mas agora que está em suas mãos, as forças estão na lua.
Era impressionante! Eu nunca tinha visto um orbe que fizesse isso!
-Isso é muito legal!
Tirei meu orbe da mão direita e coloquei o novo. No exato momento eu senti a diferença, os sentimentos do professor estavam bem mais claros, dava para sentir os rastros de magia negra no ar da sala, apesar de o Caronte já ter deixadoo a sala a algum tempo.
-Eu não tenho palavras para dizer... isso é fantástico.
Eu estava maravilhado com aquilo, mas o Érebo pareceu estar desconfortável com alguma coisa.
-Tenho mais uma notícia, mas fico receoso em dá-la.
Bem, era bom demais para ser verdade, tinha que ter algo ruim...
-Pode falar.
Ele ficou meio pensativo, mas começou a falar:
-Seu orbe pode guardar sua magia negra por você.
Meu coração quase parou, isso era... impossível, não... não podia ser..
-Ele pode o que?!
Eu não sabia se estava feliz. Ok, eu estava, mas eu sentia muito medo também. Eu sempre vi a magia negra como um fardo, um grande e penoso fardo, e agora ele me diz que existe um jeito de eu me livrar daquilo.
-Bem, - ele continuou. - em vez de você restringir sua magia negra dentro de si, você pode fazer com que o orbe faça isso. Tente, queira que o orbe guarde a magia negra.
Eu não estava acreditando, mas pedi para o orbe guardar minha magia negra, em pensamento. No mesmo instante me senti livre, meu cabelo estava totalmente azul, eu não sentia aqueles puxões dentro de mim e a pedra dos sonhos ficou roxa.
-Ângelo, eu sei que você está muito feliz por... “se livrar” da magia negra, mas não quero que você faça isso.
Eu olhei para ele, incrédulo. Ele fazia ideia do que estava me pedindo?
-Por quê?
Eu não consegui dizer mais do que isso. Pensar em tudo que a magia negra já tinha me causado, o tempo que eu preferi ficar sozinho a machucar os outros, o preconceito que eu sofri, o ataque que recebi da Penumbra... tanta coisa ruim que eu podia simplesmente tirar da minha vida agora, e ele queria que eu deixasse?!
-Primeiro porque o orbe só manterá sua magia com ele enquanto vocês estiverem conectados e segundo porque agora você é um mago negro muito mais forte do que pode imaginar.
Eu avaliei o que ele havia me dito, isso não era nem de longe um argumento bom o suficiente, estávamos falando de anos de solidão!
-Você tem certeza de que o melhor é eu usar a magia negra?
Pensar na magia negra como minha forma de ataque também era problemático. Ela usava o que havia de mais sombrio e oculto nas pessoas, ela vasculhava suas fraquezas e as usava contra o oponente. Às vezes eu via isso como sendo injusto, eu podia dominar o medo e a morte. Duas coisas muito complicadas de se lidar.
-Se você não usasse magia negra, a luna jamais poderia ter sido feita.
Esse era um ponto, eu era uma exceção. Só eu e o Caronte podíamos completar uma gama enorme de magias, por sermos magos negros. Então basicamente eu tinha que escolher entre o meu bem estar e facilitar a vida do resto das pessoas da nação. Meu primeiro pensamento foi simples: eles não gostavam de mim, não tinha porque eu fazer algo por eles. Porém isso não era bem verdade... seria na nação Jolnir, mas aqui? As pessoas me receberam bem, pelo menos a maioria... eu tinha amigos, e eles não se importavam de ficar perto de mim, mesmo que isso machucasse um pouco de vez em quando. Eu não podia culpá-los pelo que me aconteceu, e agora eu estava num novo patamar da minha vida, eu devia agir como tal. Em resumo, eu não ia desistir da magia negra... até porque eu ia me sentir incompleto, apesar dos pesares.
-Entendi o seu ponto de vista, mas ainda tem uma coisa... sobre a luna, porque não fazem mais metais desses? Afinal, o Caronte também poderia fazê-lo.
Apesar de ter sido um pouco difícil o processo... fiquei imaginando que outras coisas eu poderia fazer...
-Porque esse metal só tem efeito com pedras como a dos sonhos, - ele disse, seu rosto suavizando um pouco a preocupação que até agora se encontrava ali. - não se pode usar a luna com diamante ou esmeralda, o metal não aceita.
Eu não entendia muito bem esse tipo de coisa, mas acho que fazia sentido um metal específico não aceitar uma pedra genérica.
-Acho que entendi.
Minha cabeça estava meio atordoada, eu fui submetido a muita coisa ao mesmo tempo agora. Não vou dizer que foi fácil me contentar com a continuação do uso da magia negra, eu sabia o que significava o que eu estava fazendo, mas... era assim que eu era. É como se eu tivesse escolhido não tirar um defeito meu. Não faria sentido tirar, porque eu ficaria incompleto. As pessoas não são só qualidades... na verdade, as verdadeiras relações não se baseiam em gostar das qualidades do próximo, mas conseguir conviver com seus defeitos. Se eu tirasse esse meu defeito, eu não saberia mais o que seria uma relação de verdade, seja de amizade, seja de amor, seja de qualquer coisa... Acho que fiquei pensando muito tempo, porque o Érebo estava me encarando de um jeito meio estranho.
-Você está bem? – ele perguntou um pouco preocupado.
-Acho que sim. Eu vou continuar usando a magia negra, e esse orbe vai me ajudar a controlá-la.
Ele ficou bem mais tranquilo, um sorriso se abriu em seu rosto.
-Fico feliz em saber disso. Só tenha cuidado com isso, quando a magia pedir para ser libertada, não pense duas vezes, ela é a sua arma.
“A magia pedir para ser libertada”... que estranho pensar na magia tendo vontade própria...
-Vou me lembrar disso.
Muitas coisas para lembrar...
-Agora, sobre sua aula especial. Vou te ensinar o que seu orbe pode fazer.
Ele falou sobre as propriedades da luna e da pedra dos sonhos, e sobre quando se combinavam. Também explicou sobre o efeito do orbe durante a noite ser ainda mais forte do que de dia, já que meu regente natural estaria mais presente. Por fim ele exemplificou a força do orbe, pediu para eu fazer um escudo de trevas em volta de mim. Ele me atacou com várias magias de luz, mas a maioria parou no escudo, poucas conseguiram atravessar.
-E que fique bem claro, - ele disse, aparentemente terminando a explicação. - o orbe só funciona bem com magia branca e negra, assim como seu escudo de trevas só inibe ataques mágicos de luz e escuridão.
Essa era a parte meio ruim da coisa, minha magia de gelo não ganhava muito com esse orbe. Mas... um passo de cada vez.
-Entendi professor, obrigado por tudo.
Eu o abracei. Eu estava feliz pela preocupação que ele teve para comigo, e também pelo sacrifício que ele fez... assim como o encantamento me desgastou, também esgotou a ele.
-Só estou fazendo meu trabalho, não precisa me agradecer.
Quem dera todo mundo fizesse o próprio trabalho dessa forma...
-Você faz seu trabalho muito bem, muito obrigado mesmo.
Fui para casa praticamente saltitante, como não havia quase ninguém na rua, provavelmente não tinha problema em eu fazer isso:
-Alaaadoooo!!!
Ganhei minhas asas de gelo e voei até o prédio, cheguei nele muito cansado, mas o importante é que eu voei! E foi muito bom! Dei boa noite para a recepcionista, subi as escadas quase correndo e abri a porta com um sorriso largo no rosto.
-Ângelo, você chegou e... wow, que orbe é esse?! - disse o Glaucos.
O Miro, que estava deitado lendo um livro, veio até mim quando escutou sobre o orbe, olhou para o orbe e disse:
-Essa é a pedra dos sonhos? Ela não era transparente?
Olhei para o orbe, ele parecia meio sinistro agora que a pedra dos sonhos estava roxa.
-Ela é, mas no momento ela está guardando minha magia negra, por isso ela está roxa.
O Glaucos me olhou com muita felicidade no rosto.
-Isso quer dizer que você não precisa mais ficar controlando a magia negra?
Confirmei com a cabeça, com um sorriso no rosto.
-É, o orbe vai fazer isso por mim, não é o máximo?!
Provavelmente eles nunca tinham me visto tão feliz, era muito bom sentir-se livre e sem machucar ninguém.
-Agora você pode vender seu velho orbe e tentar comprar outro melhor. - disse o Glaucos.
Esse era o meu plano. Talvez fosse um pouco difícil, mas eu tinha o sábado todo para isso.
-Sim, o eclipse só funciona bem com magia negra, preciso de algo para a magia gélida. - eu respondi.
Fui até a minha cama e sentei, tentando me programar para o fim de semana.
-Eclipse é o nome desse orbe? - perguntou o Miro.
Eu falei o nome sem pensar, mas era um nome legal.
-É, acabo de inventar. – eu disse rindo.
Deixei meu corpo solto e deitei com os braços estendidos. Era bom ter um pouco de sossego.
-O que ele falou sobre o encantamento? - perguntou o Glaucos.
Eu expliquei para eles o encantamento da lua e tudo que o professor havia dito sobre o orbe.
-Eu disse que era algo poderoso. - disse o Glaucos com cara de “eu sempre tenho a razão mas ninguém me ouve”.
-É...
Eu fui pedir a janta e depois ficamos conversando sobre o final de semana. Eu disse que no sábado pela manhã eu ia tentar vender o orbe e tentar comprar um melhor e de tarde eu veria minha mãe, ainda não havia decidido o que fazer no domingo. O Miro disse que podia ficar o domingo comigo, se eu quisesse. O Glaucos emendou dizendo que ficaria o final de semana todo com a família, porque não aguentava mais nos ver. Nós rimos do comentário. Fui dormir feliz aquele dia e acordei mais feliz ainda por notar que não sonhei com nada.

O dia seguinte seguiu a rotina de sempre, pelo menos até a parte de separar os livros na biblioteca. Um dos livros me chamou a atenção. Tinha um aspecto mais antigo que os outros e possuía uma marcação laranja e roxa na capa, o que significava que era um livro da seção reservada. O título era Magias poderosas e mortais. Achei que fosse um livro de magia negra, por causa do título, mas na verdade era de todos os elementos. Eu sabia que não poderia ver esse livro de novo e minha curiosidade estava muito grande. Levei-o até a área de livros de magia negra e o coloquei atrás de alguns outros livros. Como eu e o Caronte éramos os únicos magos negros daquele lugar seria difícil alguém encontrá-lo. Voltei ao meu lugar de marcação de livros bem na hora que o professor chegou.
Novamente fomos até a pedra negra, hoje ela parecia mais brilhante, e fizemos o encantamento. Como no dia anterior eu senti como se a pedra tivesse sugado a magia negra de mim.
Voltei para casa pensando se valia à pena continuar avaliando as pessoas para achar o dono da voz na minha mente, já fazia tanto tempo que isso acontecera e eu não tinha progredido nem um pouco. Além disso, dia após dia o Caronte me ajudava com as magias negras e eu o ajudava com as magias de gelo, já que ele já tinha aprendido bem as de levitação. Posso dizer que apesar de sermos tímidos e nossa relação permanecer dentro da sala ou da arena, eu o considerava um amigo, afinal, ele era o único que passava por problemas semelhantes aos meus. Por tudo isso, era difícil acreditar que fosse ele o responsável, mesmo não tendo outra opção.
Entre pensamentos eu cheguei ao prédio, estava prestes a abrir a porta quando ouvi o Miro dizer:
-Ah Glaucos, você sabe que não quero nada sério com ele.
Meu coração gelou.
-É, não é típico seu mesmo, mas você podia namorar alguém melhorzinho, sabia?
O deboche na voz do Glaucos era... assustador. Eu nunca havia o ouvido falando mal de ninguém, mas soava tão perverso... tão cortante...
-Eu sei, mas ele já tava tão fácil, daí não resisti.
Fácil?! As lágrimas brotaram no rosto, eu não podia acreditar no que estava ouvindo! Como eles podiam ser tão falsos?! Eu... eu não podia morar com pessoas assim... de forma alguma! Como eles puderam dizer isso?! Eu fervi em raiva, aquilo não fazia sentido! Eu ia pedir transferência para outro quarto... hoje mesmo. Eu não ia suportar olhar para eles nem por mais um segundo! Infelizmente minhas coisas estavam no quarto. Coloquei a mão na maçaneta e girei, tentando controlar as lágrimas. Entrei no quarto com o coração totalmente dilacerado. Tamanha não foi a minha surpresa ao ver que o Glaucos não estava no quarto. O Miro ficou ainda mais surpreso quando me viu chorando.
-Ângelo! O que foi?
Cínico! Se fingindo de inocente, depois do que tinha dito! E cadê o outro falso?!
-Cadê o Glaucos? – eu disse calmamente, tentando não gritar.
-Ele tá namorando... – ele respondeu, chocado.
Ok, as coisas estavam ficando estranhas, ele estava namorando enquanto o Miro estava no quarto? Eu não tinha ouvido a Higéia...
-Onde?
Foi o máximo que consegui perguntar. Meus punhos estavam fechados e eu ia explodir a qualquer momento. Minha raiva só aumentava com a cara de desentendido que o Miro estava fazendo.
-Em algum lugar do prédio, Ângelo, o que aconteceu?!
Em algum lugar do prédio? Mas ele estava no quarto! Eu ouvi! Isso não fazia sentido!
-Então, você não... estava conversando com ele?
Falando sobre como eu fui fácil e coisas do tipo, seu cretino!
-Que hora?
Não se faça de desentendido!!!
-Agora!!! – eu explodi.
As lágrimas desciam pelo meu rosto, carregadas pelo ódio.
-Não! Eu não estava conversando com ele! Ele veio com a Higéia aqui mas nem entraram no quarto! O que há de errado com você?!
Não... definitivamente não fazia sentido. Ele não podia atuar tão bem, ele estava dizendo a verdade. Mas se era assim, então como eu...? Uma presença fraca de magia negra respondeu a pergunta inacabada.
-Miro, - eu comecei, tentando me acalmar um pouco - prometo explicar, mas agora não dá.
Sequei as lágrimas e tentei rastrear a fonte da magia. Infelizmente estava muito fraca, então não tive sucesso. O Miro me segurou pelos braços.
- O que tá acontecendo aqui?
Eu... não tinha certeza. Mas... na hora eu só conseguia ver uma possibilidade. Desvencilhei-me dele, entrei no quarto e sentei na minha cama. Coloquei as duas mãos no rosto, tentando pensar no que havia acontecido. Não havia dúvidas, eu havia sido atacado, de novo. Ele sentou na cama do Glaucos, ficando de frente para mim. Eu não sabia o que dizer... não verdade nem sabia se ia conseguir falar...
-Desculpe-me...
As lágrimas voltaram ao meu rosto.
-Ângelo, por favor, me diz logo o que aconteceu, eu to preocupado com você.
Era óbvio que ele estava preocupado, seu rosto indicava isso mais do que qualquer outra coisa, mas... como aquilo tinha acontecido?
-É que... quando eu fui abrir a porta, ouvi você e o Miro conversando...
Ele empalideceu um pouco, o que era estranho, já que sua pele era bronzeada.
-Mas isso é impossível!
Eu não o culpava por não estar entendendo nada, eu também não estava até alguns segundos atrás, mas antes de explicar eu precisava me acalmar e acalmá-lo.
-Eu sei... por favor, calma.
Aparentemente o efeito foi o oposto do esperado.
-Não consigo ficar calmo! – ele gritou enquanto levantava da cama. - Você entrou chorando aqui e agora me diz que era porque ouviu uma conversa que nunca existiu!
O medo e a angústia me tomaram, ele pareceu muito ameaçador.
-Miro, deixa eu terminar! E para de gritar comigo!
As lágrimas transbordavam do meu rosto, comecei a soluçar. Ele veio até mim e me abraçou.
-Desculpa Ângelo, desculpa, eu... perdi a cabeça, me desculpa, por favor.
Minha cabeça estava um completo caos. Que confusão foi essa em que me enfiaram?!
-Miro, - eu comecei, tentando miseravelmente manter algum controle. - alguém está usando magia negra contra mim. Essa pessoa me fez pensar que tinha ouvido uma conversa entre você e o Glaucos...
Compreensão passou pelos seus olhos, ele havia entendido o quão ruim podia ter sido.
-E sobre o que era a conversa? – ele perguntou calmamente.
Eu juro que tentei me controlar, mas aquela lembrança foi forte demais.
-Espera. - eu disse.
Tentei secar as lágrimas e me controlar. Respirei fundo e tentei contar...
-Vocês conversavam sobre mim... você disse que não queria nada sério, daí o Glaucos disse que você podia... – as próximas palavras doeram muito para serem ditas... - namorar alguém melhorzinho. Daí você disse que só está comigo porque eu fui fácil...
Ele ouviu tudo atentamente e incrédulo.
-Ângelo, eu... jamais diria isso. Tudo isso é mentira, eu quero algo sério com você e definitivamente você não foi fácil.
Aquilo me acalmou um pouco, mas eu ainda tremia um pouco de raiva.
-Eu vou descobrir quem está fazendo isso, e essa pessoa vai pagar muito caro, mas muito mesmo.
Nós nos encaramos por alguns instantes. Ele segurou minhas mãos com as deles e disse:
-Ângelo, acredite no que eu vou te dizer agora: Eu te amo, de verdade, e nada vai mudar isso.
Eu segurei seu rosto com as duas mãos e o beijei. Eu o beijei como se fosse a última coisa que eu fosse fazer na vida, como se nada mais importasse, porque naquela hora, não importava. Os sentimentos ruins foram me deixando, um a um, até que só o alívio e o amor me consumiam em seus braços.
Fui dormir antes de o Glaucos chegar, no colo do Miro. Eu estava exausto psicologicamente, como se não bastasse aquela pedra ficar sugando minha magia negra ainda tinha alguém me atacando psicologicamente. E pior do que tudo isso, era uma pessoa que me conhecia muito bem, porque a pessoa apostou que eu não entraria no quarto, o que era de se esperar de mim, mas eu entrei só para pegar as malas e acabar com aquilo. De qualquer forma o sono foi mais forte do que a tempestade de pensamentos.
Meu sonho desta noite foi diferente. Eu estava entre a luz e a escuridão, ambos os lados diziam: venha até aqui, não acredite nele. Eu estava confuso, eu nunca soube qual era o meu aliado, se a luz ou a escuridão. Uma garra negra provinda da luz me segurou pelo braço.
-Tarde demais jovem mago.
Acordei com o rosto coberto de suor, já era dia, mas ninguém estava acordado. O Glaucos estava se remexendo na cama, como se estivesse tendo um pesadelo, só então percebi que minha magia negra estava livre. Eu a prendi rapidamente e o Glaucos voltou a dormir tranquilamente. Isso estava ficando fora de controle...
Fui até o banheiro e me olhei no espelho. Aparentemente eu tinha acabado de lutar com alguém, apesar de eu ter acabado de acordar.
Fiz a rotina diária de todos os dias, guardando em segredo os meus sonhos. Durante o dia prestei o dobro da atenção nas pessoas, mas nada parecia fora do comum, só a Higéia que parecia mais cansada que o normal, o que não era difícil de entender, ela andara treinando muito forte com o Pharos. Não sei se isso poderia ser considerado algo estranho para ser comentado com o Glaucos, não parecia ser com o que ele estava se preocupando...
O treino da tarde estava quase no fim quando o Caronte tocou num assunto inesperado.
-Você está tendo problemas.
Eu teria ficado menos assustado se ele tivesse perguntado, o que não foi o caso.
-Como você sabe?
Algo em seus olhos me dizia que sim, definitivamente ele sabia. Mas eu não havia sido atacado na presença dele, não que eu soubesse da presença dele, pelo menos.
-Está mais fácil ver seus sentimentos, sua defesa está bastante frágil. – ele disse daquela forma meio sem emoção.
Ah é... isso também fazia sentido. O ruim de conversar com o Caronte, é que quase sempre ele estava certo e ainda por cima ele conseguia provar que eu estava errado. Isso era muito frustrante.
-É... eu estou tendo problemas...
O peso da preocupação pairou sobre seu rosto.
-Quer falar sobre isso?
Eu pensei nas possibilidades, se eu falasse o que tinha acontecido e ele fosse o responsável, talvez eu conseguisse notar a culpa em seu rosto, contudo, se não fosse ele, talvez ele pudesse me ajudar. E se eu não contasse, demonstraria que não confiava nele, não que eu confiasse, mas eu queria muito confiar.
-Alguém anda me atacando... – eu admiti.
Foi difícil falar. E mais difícil foi ver que ele não ficou surpreso com aquilo, ele só parecia... preocupado, talvez chateado, não dava para saber ao certo.
-Hum... e você suspeita de mim?
Não consegui responder, era muito difícil fazê-lo. Eu... eu suspeitava... mas eu não queria!
-Desculpe...
Eu não consegui encará-lo, eu estava envergonhado de mim mesmo. Eu gostava dele, eu o considerava um verdadeiro amigo e... apesar disso, não existia outra pessoa que conseguiria me atacar daquela forma... Ver a tristeza em seu olhar doeu muito.
-Ângelo... – sua voz era baixa, quase melancólica. - não sou eu quem está fazendo isso. Pode ser difícil de acreditar, mas não sou eu.
Ele não ia precisar dizer isso uma segunda vez. Eu ia acreditar nele, eu queria e eu ia!
-Eu... acredito em você.
Era verdade, as palavras dele de alguma forma me convenceram, eu nunca acreditei que fosse ele e era um alívio pensar assim.
-Caronte, você sabe quem é?
Ele balançou a cabeça, meio frustrado.
-Não... eu não consigo achar quem está fazendo isso, o rastro é fraco demais, o que é estranho, porque estão investindo duro contra você.
Sim, isso também não fazia sentido para mim e... espera, o que foi que ele disse?
-Espera, como você sabe disso?
Ele foi pego de surpresa.
-Eu... - seu rosto ficou vermelho - andei te vigiando.
Isso talvez explicasse algumas coisas.
-Você entrou em alguns sonhos meus?
Era notável o desconforto dele com o assunto, mas eu precisava de esclarecimentos...
-Sim...
Às vezes havia a presença de escuridão nos meus sonhos, a qual eu considerava ser a presença do atacante, mas isso mudava um pouco as coisas.
-Esse tempo todo você estava tentando me proteger?!
Ele concordou com a cabeça, sem me olhar nos olhos. Meu rosto ficou muito vermelho, como eu pude suspeitar de quem estava tentando me proteger o tempo todo?!
-Eu... nem sei o que dizer... desculpe-me Caronte, por suspeitar de você...
Um pequeno sorriso se formou em seu rosto, mas não foi o suficiente para apagar a tristeza que ali havia.
-Acho que já estou acostumado.
Eu sabia como ele se sentia, e eu não queria que ele se sentisse daquele jeito. Eu o abracei, ele retribuiu.
-Obrigado por me ajudar. - eu disse.
-É o mínimo que posso fazer por um amigo. E é bom saber que tenho algum.
O sinal soou, hora da minha visita à biblioteca.
-Vai lá Ângelo, prometo não contar a ninguém do livro.
Ele piscou para mim, eu fiquei boquiaberto.
-Caronte! O que mais você sabe?!
Fico feliz por ter alguém querendo minha segurança, mas até onde estava indo a invasão de privacidade?
-Hey, isso eu não descobri te vigiando, eu só fui à biblioteca e tinha um rastro de magia negra diferente atrás dos livros. Quando vou olhar, lá está um livro da seção reservada.
Olhei para os lados para ver se ninguém o tinha ouvido, por sorte não.
-Ok, ok, não conta para ninguém, não pude lê-lo ainda.
Ele abriu um sorriso.
-Tranquilo, até amanhã Ângelo... pelo menos eu espero.
Eu já estava estranhando a falta de pessimismo, a última frase me lembrou com quem eu estava de fato conversando. Seria cômico, se não fosse trágico.
-Até.
Esperei todos saírem para seguir o professor até a biblioteca. Assim como das outras duas vezes eu fiquei marcando os livros até as 18:50. Hoje eu estava mais apreensivo que nos outros dias, eu não sabia ainda qual era minha tarefa final, e ela era amanhã! De qualquer forma entrei na seção reservada pela terceira vez, e pela terceira vez fiz o encantamento na pedra. Porém hoje ela estava diferente, estava mais acinzentada, como se tivesse virado cinzas. E a cada segundo que se passava ela ficava mais cinza.
Prestei atenção aos olhos do professor, porém algo quase me desconcentrou. A pedra começou a brilhar mais intensamente e os laços branco e negro rodaram mais rapidamente, até que ambos se fundiram em um só, num laço prateado. Senti um puxão nas mãos, a magia negra emanava de mim para a pedra muito velozmente, o que me deixou tonto. O laço prata ficou rodopiando encima da pedra até se transformar numa réplica da lua. A réplica desceu até a pedra e a banhou com magia. A pedra em resposta brilhou ainda mais intensamente. O professor abriu os olhos. Soltamos a pedra e paramos o encantamento. Agora a pedra estava realmente coberta por fuligem, mas os espaços que não estavam tampados por cinzas brilhavam com uma luz prateada.
-Nossa... isso foi difícil, mas conseguimos. - ele disse entusiasmado.
Se ele dizia, eu não ia contrariá-lo.
-Professor, o que exatamente nós conseguimos?
Eu sabia que tínhamos feito algo, minha cabeça não podia estar rodando por nada.
-Ah Ângelo, isso é uma surpresa, prometo te contar amanhã, hoje você deve estar cansado, o ato final precisou de muita magia, não é mesmo?
Fiz que sim com a cabeça.
-Muito bem Ângelo, a tarefa de amanhã não será uma tarefa, será uma aula extra. Vamos fazê-la na sala depois do treino, você precisará dessa aula depois do que fizemos aqui.
Ah, tudo bem, eu nem estava curioso mesmo.
-Hum... ok. Neste caso, até amanhã.
Ele sorriu.
-Até.
Depois daquilo até andar foi cansativo, eu não sabia se ainda tinha magia negra dentro de mim. Não que eu ficaria triste se eu perdesse toda a magia negra, mas era desgastante quando ela se esgotava. Cheguei em casa acabado. Abri a porta e já fui direto para a cama.
-Boa noite pra você também zumbi. - disse o Glaucos.
A voz dele veio como um eco muito distante...
-Eu não vou jantar, preciso dormir.
Minha voz foi arrastada. Meus olhos já estavam fechados e meu corpo reclamava por qualquer movimento.
-Nossa, foi tão cansativo assim? - perguntou o Miro.
Como eu queria que tivesse sido só cansativo. Aquilo foi de matar!
-Foi muito, muito ruim...
Eu senti meus sentidos se desligando contra a minha vontade, quando uma mão me sacudiu um pouco.
-Ângelo, você não pode dormir com o quimono. - disse o Glaucos.
Meu primeiro pensamento foi queimar a droga do quimono, pelo menos seria rápido. Infelizmente eu ainda estava dentro dele, então não seria uma boa ideia. Contra toda a minha vontade, eu me levantei e comecei a tirar a roupa, lentamente. O Glaucos olhou para o Miro e disse:
-Quer um babador? Posso trazer algum aperitivo e suco também.
Apesar de ter ficado imensamente envergonhado, eu ri. Coloquei uma roupa meio velha e voltei a deitar.
-Perdão meninos, mas hoje não vou conseguir conversar.
Ouvi o Miro respondendo, mas meus olhos já estavam se fechando. Sua voz ficava mais baixa, até que não passou de um sussurro leve, que não demorou a desaparecer.
Foi uma noite sem sonhos.

Quando cheguei em casa já haviam pedido a janta, mas estavam me esperando para comer.
-Ângelo, o que você teve que fazer? - perguntou o Miro.
Contei a eles sobre os livros e também sobre a pedra.
-O que vocês acham que pode ser?
Eles pareceram pensativos, mas assim como eu, não sabiam o que era.
-Não sei Ângelo, – disse o Glaucos – mas toda magia que usa magia branca e negra ao mesmo tempo é sinal de algo poderoso.
Isso era verdade. Era quase impossível juntar um mago branco e um negro no mesmo lugar, normalmente os magos negros são da Penumbra e os magos brancos são jolnirs ou delfis.
-Vocês não acham que possa ser algo ruim não é?
O jeito estranho do professor me deixava na dúvida de vez em quando.
-Acho que não, – disse o Miro – afinal, ele é seu professor.
Confiar nas autoridades era um ensinamento antigo em Jolnir, aparentemente aqui também. Eu nunca fui muito bom com essa regra, por saber o quão manipulável as pessoas podem ser. Mas era um ponto a se considerar.
-É, você tem razão, preciso ter mais fé nele.
Minha frase foi mais um pedido para comigo mesmo do que uma resposta ao Miro. O Glaucos me olhava com alguma firmeza, o que não gostei muito. Tentei desviar o olhar, até que encontrei os olhos do Miro, que diziam que ele queria algo.
-Então... podemos comer? - disse o Miro.
Isso explicava a cara.
-Podemos. - eu respondi rindo.
Jantamos e depois o Glaucos foi ver uns amigos que moravam no andar de cima. Fiquei sozinho no quarto com o Miro. Ele veio até a minha cama, se sentou e ficou me olhando. Preciso admitir, eu senti muito a falta dele durante o dia e ter ele só para mim de novo era muito bom. Deitei no colo dele.
-Ah não Ângelo, sua cama é pequena, eu não consigo deitar direito.
Ele me pegou no colo e me levou até a cama dele.
-Aqui é melhor.
Ele me deitou em sua cama e depois ficou ao meu lado, também deitado. Eu peguei a mão dele com as minhas. Como era bom tê-lo pertinho, sentir seu calor e ter a sensação de estar protegido.
-Você tá calado. – ele disse enquanto acariciava meu cabelo com a mão livre.
-Eu estava pensando em algumas coisas.
Ele ficou pensativo por uns instantes, mas logo seu rosto se abriu num pequeno sorriso. Invadir a mente para saber o que ele tinha pensado seria algo ruim?
Seria.
-Que tipo de coisas você tava pensando?
Meu rosto ficou vermelho. Pensar no corpo dele tão perto, mesmo que ele estivesse com a armadura, era... tentador.
-Hum... nada.
Ele ficou de lado, acho que eu nunca pude reparar tão bem em seu rosto. Era lindo, mas normalmente eu tinha que olhar para cima para vê-lo, então não o fazia com tanta frequência.
-Miro, você é lindo.
Aquilo o pegou de surpresa, ele passou a mão pelo meu rosto, chegando até o meu pescoço. Seu olhar tão sonhador...
-Brigado Ângelo, você também é.
Eu acariciei seu rosto com a mão livre. Seus olhos vermelhos não focavam outra coisa se não a mim. Ele chegou mais perto, agora nossos narizes quase se tocavam, mas a proximidade entre os rostos foi ficando cada vez menor, até que ele me beijou. Segurei o pescoço dele com a mão com um pouco mais de força, ele se arrepiou um pouco. Eu ri.
-Problemas com o pescoço?
Minha voz tinha sido tão inocente, mascarando o quão saltitante eu estava.
-Talvez, e você? Onde tem problema?
Dizer não teria a menor graça...
-Por que você não tenta descobrir?
Aquilo o surpreendeu. Na verdade, surpreendeu até a mim, desde quando eu conseguia falar algo assim?
-Achei que você nunca ia pedir.
Ele foi beijando meu pescoço, até chegar na nuca. Eu me arrepiei com aquilo.
-Huumm...
Tinha uma coisa que eu tinha muita vontade de fazer, mas morria de vergonha. Respirei fundo e coloquei minha mão na barriga dele, por debaixo da armadura. Era dura. Ele fez menção de tirar a armadura, meu rosto ficou extremamente vermelho.
-Não, não tira!
Sim, eu fiquei meio desesperado.
-Mas...
Nós dois na cama dele enquanto ele fica sem armadura? Muito tentador, até demais. Eu realmente não estava pronto para isso, de jeito nenhum!
-Não. Por favor, não.
Ele parecia meio confuso, acho que ele não esperava que minha timidez fosse tão grande assim.
-Mas você me vê sem armadura todo dia...
-Sim, quando eu não estou deitado com você, é imensamente diferente.
Ele processou a informação por alguns momentos.
-Ah, eu não vejo diferença.
A sua cara de inocente declarava que ele não via mesmo. A minha de santa imaculada, e acredite ou não eu sei fazer essa cara, dizia o total oposto.
-Eu vejo, continue vestido.
Ele deu de ombros, voltando a deitar na cama.
-Ok, você manda.
Ele fez um sorriso sem vergonha que eu tinha certeza que ele aprendera com o Glaucos.
-Nem quero imaginar o que se passa na sua cabeça neste momento.
Ele me abraçou, com um pouco mais de força. Não doeu, foi... diferente, acho que foi o melhor abraço que eu já recebera na vida, não que eu tenha recebido muitos...
Comecei a bagunçar o cabelo dele, ou pelo menos o que tinha. O cabelo dele era quase raspado, não tinha lá tanta graça, mas ainda era gostoso. Fiz algo que nunca pensei em fazer, sentei e o deitei no meu colo. Foi uma cena estranha, porém engraçada, dava a impressão de que tinha algo errado.
-Você não acha que sou um pouco grandinho pra você não?
Talvez, mas ele não precisava saber disso.
-Acho que se eu pensasse assim não estaria com você agora.
Ele ficou quieto, eu o beijei na testa e continuei tentando bagunçar seu cabelo, apesar de o cabelo não se mexer.
-Você acha que vai dar certo?
Sua pergunta foi estranha, e me pegou de surpresa.
-O quê?
Ele levantou um pouco a cabeça para me olhar nos olhos.
-Nós.
Eu precisava ser sincero com ele, depois do que passei com o Marcelo, eu não tinha tanta fé em relacionamentos longos, nossas vidas eram um tanto quanto arriscadas.
-Eu não sei...
Acho que não era a resposta que ele esperava, aquilo parecia tê-lo chateado um pouco...
-Não digo isso por mim, eu sempre estarei ao seu lado, mas...
Mas era muito difícil ignorar tudo que podia dar errado só para manter a salvo o sonho de uma vida feliz e duradoura ao lado dele.
-Você diz isso por causa do Marcelo?
Bem, aparentemente ele entendeu meu ponto de vista.
-É...
Ele se levantou e ficou de joelhos na cama, de frente para mim. Segurou meu rosto com as duas mãos e disse:
-Pelo menos vamos aproveitar ao máximo um ao outro enquanto temos oportunidade, é o que podemos fazer.
Seus olhos miravam o meu com ternura, como era bom sentir-se amado...
-Você está certo. – respondi sorrindo.
-Ótimo. – ele disse, retribuindo o sorriso.
Ele se levantou e começou a tirar a armadura. Fiquei boquiaberto.
-O que você pensa que está fazendo?! – perguntei, com a voz numa altura um pouco maior que o normal...
-Eu vou me trocar... – ele disse tranquilamente. - você disse que eu não podia ficar só de bermuda, mas não disse que eu precisava ficar com a armadura.
Ponto para ele.
-Ah... ok.
Fiquei assistindo ele tirando a armadura e pegando uma roupa mais leve no armário dele. Tentei disfarçar um pouco para não parecer que eu estava babando muito, então mantive a cara de apreensivo.
-Que medo é esse? - ele perguntou enquanto colocava a camisa. - Eu não mordo, só quando pedem.
E era aí que residia o problema.
-Então... vai que eu caio na tentação de pedir.
Falar antes de pensar não era um hábito meu, mas até que não estava sendo de todo mau.
Ele fez cara de safado e começou a rir. Apesar da vergonha eu ri também, era uma situação nova, mas muito engraçada. Resolvi me trocar também, mas com magia.
-Troca.
Coloquei uma bermuda azul clara e uma camiseta preta. O desapontamento no rosto dele era evidente.
-Poxa Ângelo, você se troca rápido demais, nem consigo aproveitar o momento.
Meu rosto ficou vermelho de novo.
-Você podia parar de dizer coisas constrangedoras.
O jeito como ele mordeu os lábios me deu uma leve impressão que não seria hoje que meu pedido ia ser atendido.
-Mas é muito divertido te ver vermelho.
Ah, claro, não tem o que fazer? Deixe o Ângelo vermelho, é engraçado.
-Daqui a pouco vou te deixar roxo, daí você vai ver.
Tentei manter uma cara de bravo, mas que olhar foi aquele que ele fez?!
-Uau, que selvagem você.
Quem ficou roxo foi eu, de vergonha. A intenção da frase definitivamente não era essa!
-Aaahhh, eu não quis dizer isso.
Deitei na minha cama e escondi o rosto com o travesseiro, ele começou a rir muito. Senti o peso dele quando ele deitou ao meu lado.
-Ângelo, você é muito tímido, isso é muito engraçado.
Eu ia realmente bater nele, não tinha graça mais ele ficar me zuando.
-Seu... bobo.
Sim, foi o máximo que consegui na hora.
-Mas você gosta.
É, realmente... mas espera, não, eu tinha que estar bravo com ele.
-Que convencido.
Tirei o travesseiro para ver o que ele estava fazendo. Para minha pequena surpresa eu estava, de certa forma, preso, porque do jeito que ele estava não dava para eu sair, apesar de ele não estar literalmente em cima de mim, se não eu estaria esmagado agora.
-O que...?
Eu teria terminado a pergunta, se ele não tivesse abaixado a cabeça e me beijado. Segurei o pescoço dele com as duas mãos, até lembrar que eu ainda estava bravo com ele.
-Então eu sou o tímido...
Mordi seu lábio, não com muita força, mas o suficiente para descontar um pouquinho da raiva. Ele me olhou de um jeito estranho, sorrindo.
-Viu como você é selvagem?
Isso com certeza explicava o olhar.
-Devo lhe dizer que não gosto da sensação de estar preso.
Ele beijou o meu pescoço, logo abaixo da minha orelha e sussurrou:
-Mas você não tá preso.
Como não?! Se ele parasse de apoiar o próprio peso com os braços ele cairia encima de mim! E ele era pesado!
-Levando em conta que ainda não sei me teleportar, então estou sim.
Ele riu e disse:
-Estou no comando.
Um sorriso enorme se abriu em seu rosto.
-Ah, eu tenho medo dessas coisas.
Ambos rimos.
-Como é muito bom estar com você, você me faz bem. – ele disse.
Meu coração acelerou, foi tão fofo!
-Aaahh, que lindooooo.
Eu apertei as bochechas dele, o que o fez ficar envergonhado. Não acredito que ele ficou envergonhado com isso!
-De tudo que eu faço, você fica envergonhado com eu apertando suas bochechas?
Ele deu um sorriso tímido e virou o rosto.
-É que minha família fazia isso quando eu era criança.
Eu me lembrei da imagem dele que vi no lago, de quando ele era menor. Tentei imaginar uma tia apertando as bochechas dele, como aquela cena era engraçada. Comecei a chorar de rir.
-Daí agora que você é um hominho você sente vergonha?
O rosto dele ficou ainda mais vermelho, enquanto eu gargalhava.
-Ok, já sei como você se sente, já pode parar Ângelo.
Enfim, a doce sensação da vingança. Muaaahahahahaaaa
-Ah, não mesmo.
Ele saiu de cima de mim, meio sem jeito e ficou sentado na cama. Sentei-me de frente para ele, tentando controlar os risos. Ele ficou me encarando enquanto eu me controlava.
-Pronto? – ele perguntou, com um olhar que estava entre a vergonha e um algo a mais que não consegui captar.
-Acho que sim. – eu disse enquanto secava uma lágrima que caia do meu rosto.
-Talvez fosse melhor eu já ficar com minha roupa de dormir, - ele disse calmamente. - é mais leve. Você não acha?
Eu entendi o leve tom ameaçador. Meu sangue também, ele lembrou com mais entusiasmo das minhas bochechas.
-Ok, parei.
Eu me aproximei um pouco mais dele e o abracei, colocando minha cabeça no seu peito. Ele me abraçou de volta, acariciando meu cabelo.
-Sabe, - ele começou. - você podia dormir na minha cama hoje.
Afastei-me um pouco dele. Analisando o verbo dormir como tendo o sentido ter uma noite de sono, não teria problema, se morássemos só nós dois.
-Acho melhor não... um dia que o Glaucos não estiver nós fazemos isso.
Sua expressão aparentava demonstrar que ele havia me entendido, até ele abrir a boca.
-Mas é só pra dormir mesmo Ângelo.
A inocência em seus olhos era quase irritante. Dava a impressão de que eu era o sem vergonha da situação!
-Eu sei que é só para dormir! Se não eu nem teria falado sobre outro dia. O que mais poderia ser?
-Ah poderíamos também... - eu diria que ele ia falar, mas quando olhou minha cara de “Fala que eu te arrebento” ele desistiu – fazer uma guerra de travesseiros.
Ele foi rápido, tenho que admitir.
-Ah não, eu ia perder.
Mago esquelético contra guerreiro numa guerra de travesseiros. Resultado totalmente imprevisível.
-Por que você diz isso?
Novamente aquele olhar de criança inocente, se segurando para não rir.
-Quanto você pesa?
Ele mordeu os lábios antes de responder.
-120Kg.
Ok, eu sabia que ele era pesado, mas 120Kg?! Era quase o dobro do meu peso!
-Levando em conta que eu tenho 64Kg, você tem praticamente o dobro do meu peso.
Ele deu de ombros, se divertindo com a situação.
-E quanto você tem de altura?
-Ah... – ele começou, num tom de voz não muito animado. - 1,95m, mas o Glaucos tem 2,02m.
Eu queria ter mais amigos baixos por aqui...
-E eu tenho 1,75m. Agora vamos avaliar. Como uma pessoa derruba outra com o dobro da massa e que ainda por cima é 20cm mais alta, tudo isso com um travesseiro?
Ele pensou nisso por algum tempo, até voltar a me olhar com um pequeno sorriso no rosto.
-Eu confio em você.
Eu ri com a cara que ele fez.
-Não, eu não vou fazer guerra de travesseiros e nem vou dormir com você, hoje.
Ele começou a fazer bico, nós dois rimos.
-Então podemos fazer isso outro dia.
É claro que podíamos fazer isso outro dia, dormir com ele seria muito bom.
-Sim, nós podemos dormir juntos um dia. – eu disse sorrindo.
-Já estão planejando esse tipo de coisa? Vocês não perdem tempo mesmo.
Era o Glaucos, ele entrou no quarto rindo. Meu rosto ficou muito vermelho.
-Não é exatamente o que você está pensando...
Bem, eu podia tentar explicar, ou podia deixá-lo pensando o que quisesse. O Miro escolheu por mim.
-Relaxa Glaucos, se fosse o dormir que você pensou, o Ângelo teria feito bem mais do que só ficar vermelho.
Apesar de ele estar coberto de razão, não foi a explicação mais sutil que poderia ter sido dada.
-Obrigado pela parte que me toca. – eu disse, sarcasticamente.
-De nada Ângelo, é sempre um prazer. – ele disse, sorrindo.
O Glaucos revirou os olhos e foi até sua cama. Ele parecia meio abatido ou triste, algo assim... Ele se sentou, colocando as duas mãos na frente do rosto e tirando o cabelo da testa. Sentei-me ao seu lado.
-O que houve?
Eu não queria acreditar que essa chateação fosse por minha causa e do Miro, não fazia muito sentido...
-É a Higéia, às vezes ela é estranha. - ele admitiu.
Em parte isso me tranqüilizava, mas... eu nunca havia reparado em nada estranho nela, e nós estudávamos juntos todos os dias.
-Em que sentido?
Ele cruzou as pernas e ficou meio pensativo.
-Certas vezes... ela fica pensativa demais, como se estivesse paralisada. É rápido, mas eu pude perceber.
Talvez isso explicasse o porquê de eu nunca ter reparado, nós não tínhamos tanto contato assim, já que eu treinava com o Caronte.
-Hum... vou prestar atenção nela, se eu ver algo errado, eu te aviso.
Ele descruzou as pernas e me deu um sorriso. Era bom vê-lo mais calmo.
-Obrigado Ângelo.
Ele me abraçou de lado.
-Não tem de quê. Mas, já está tarde, acho que podemos ir dormir. - olhei para o Miro, que começou a rir – E quando eu digo dormir é dormir mesmo e cada um em sua respectiva cama.
Ele riu mais alto, o Glaucos deu de ombros.
-Amigos gays... como entendê-los?
Eu ri e voltei para minha cama. Conversamos um pouco mais, até que eles se trocaram e pegaram no sono. Não demorou muito para que o sono me consumisse também. Por sorte, foi uma noite sem sonhos.

Aquela foi uma boa noite. Não porque eu estava com a alma tranquila e nem porque agora eu olhava para o Miro sem culpa, mas sim porque agora eu sabia que não estava magoando ninguém, e isso era tudo que eu precisava para ser feliz, pelo menos por enquanto.
Fiquei pensativo sobre a presença da magia negra, porque me lembrava da voz, que fazia alguns dias que havia me deixado em paz. Nós já havíamos jantado e eu estava deitado enquanto pensava nisso, o Glaucos estava lendo um livro e o Miro parecia estar querendo alguma coisa, porque ele parecia inquieto.
-Miro, o que foi? Tenho certeza que você está aprontando alguma coisa.
-Claro que não. – ele disse sorrindo.
Aquele sorriso o desmentiu na hora. Nós nos encaramos por alguns segundos, e era como se conseguíssemos conversar sem palavras. Estávamos revendo nossa tarde, ou pelo menos era o que eu achava. O pequeno momento foi interrompido quando ele se levantou e veio até a minha cama, usando o “pijama” dele. Eu sussurrei:
-Nada de ficar aqui, como você se sentiria se o Glaucos fizesse isso com você?
Ser a parte racional de um relacionamento era muito complicado, ainda mais quando ele ficava tão perto de mim, e usando só aquela bermuda. Mas alguém tinha que fazer esse trabalho, infelizmente.
-Eu sei, relaxa, eu não to fazendo nada demais.
Realmente estar com pouco roupa na cama da pessoa que você beijou a poucas horas não é nada demais, provavelmente o Glaucos pensava a mesma coisa já que todos somos puros e inocentes mesmo. Sim, isso foi uma ironia.
-Eu não confio muito no seu senso de não fazer nada.
Ele me olhou daquela forma fofa, que quase teria me feito desistir da posição de racional, se o corpo dele não desviasse tanto a minha atenção e me lembrasse da realidade dos fatos.
-Ok, mudando de assunto, - já que eu estava começando a perder o controle da situação. – eu senti magia negra na floresta hoje.
Vi seus olhos voltando algumas horas atrás, provavelmente tentando captar algum sinal disso.
-Ah, então foi isso que te deixou perturbado antes de voltarmos.
Ele pareceu preocupado com isso também.
-Sim... mas nem imagino de onde veio.
Admitir aquilo era frustrante, era muito ruim ser vítima de ataques e não ter como revidar, já que eu não fazia a mínima ideia de quem estava por trás disso ou mesmo o porquê.
-Ângelo, - era o Glaucos, ele tinha fechado o livro dele - você me deve uma explicação sobre suor no rosto.
-Ah é, - complementou o Miro - você também precisa me contar o que aconteceu entre você e...
Eu havia me esquecido deste detalhe, eu realmente devia aos dois algumas explicações, e agora que as coisas estavam meio que resolvidas, eu poderia dá-la sem muitos problemas.
-Tudo bem, as duas histórias são a mesma.
Contei a eles sobre a caverna dos sonhos, sobre meu encontro com o Marcelo e sobre a pedra. Também contei sobre meu orbe e sobre o trato com o professor.
-Ângelo, você usou duas magias ao mesmo tempo! E ainda achou uma pedra rara! - o Glaucos disse.
É, havia sido um dia e tanto, aconteceu muita coisa ao mesmo tempo. Fiquei feliz pelas minhas conquistas, mas eu jamais ia conseguir admitir que foi fácil deixar o Marcelo ir de verdade, mas foi o melhor a ser feito.
-Sim, foi muito divertido. Extremamente cansativo, mas muito bom. E voar é uma das melhores coisas do mundo...
Lembrar daquela sensação de liberdade era surreal, não havia nada comparado àquilo, era simplesmente maravilhoso. A parte ruim é que aquilo me consumiu muito.
-Mas o que você vai ter que fazer em troca do metal? E que metal é? - o Miro disse.
Essa era uma boa pergunta. Depois de tanta coisa, eu nem tinha pensado nisso.
-Eu não sei... espero que não sejam tarefas complicadas.
Meus olhos começaram a ficar pesados, havia sido um dia muito longo e cansativo.
-Hum... acho que preciso dormir, - eu disse enquanto bocejava e me espreguiçava um pouco - foi um dia muito cansativo e... cheio.
Olhei para o Miro, ele sorriu e disse:
-É, boa noite.
Ele me beijou no rosto. Pude ver o Glaucos fazendo um gesto de vômito.
-Ah Glaucos, não enche.
E comecei a rir.
-Tá bom Ângelo, boa noite. – ele disse com um sorriso no rosto. - Você vai ficar chateado se eu não for aí te dar um beijinho de boa noite também?
Várias opções me passaram pela cabeça. Dizer que sim e ver a fúria do Miro; xingá-lo; bater nele; usar uma magia de sono nele; mas de todas, eu fiz a que consumia menos energia.
-Não sei por que ainda te escuto.
Virei para o outro lado, mas ainda pude ouvi-lo rindo e pude sentir o Miro se levantando. Foi uma noite sem sonhos, eu acho, porque parecia que alguém estava me empurrando, me balançando para os lados.
-Ângelo? Ângelo, acorda.
Acho que era o Miro.
-Ah, só mais cinco minutos, por favor.
Os benditos cinco minutos, quase sempre se transformavam em horas, mas quem liga?
-Você já disse isso antes.
Ok, isso só podia ser sonho mesmo, eu não lembrava disso...
-Ah, eu não disse não.
-Já sim, levanta. – ele disse enquanto me colocava sentado na cama.
Eu me sentia muito cansado ainda, pelo menos psicologicamente. Fiquei sentado na cama esperando a energia matutina chegar até mim. Provavelmente eu ficaria ali mais algumas horas esperando...
-Ângelo, você tá bem?
Perguntas difíceis a essa hora da manhã, por quê?
-Uhum...
Abri os olhos e vi o Miro, ele já estava com o uniforme, aquilo me assustou, eu costumava ser o primeiro a acordar.
-Miro, que horas são?
Tentei limpar os olhos, vi que o Glaucos também já estava arrumado, sentado na cama dele.
-São 7:20.
7:20!!! Eu costumava acordar 6:30, não ia dar tempo de captar energia das plantas. Eu precisava ir rápido!
-Ah, não, preciso me arrumar logo!
Levantei-me rápido, talvez rápido demais, porque senti minha pressão sanguínea caindo. Cambaleei um pouco. O Miro me segurou para eu não cair.
-Ângelo? O que houve? - disse o Glaucos.
Como é que eu ia saber? Eu estava acordando, nesse período do dia as respostas costumam ser muito mais difíceis de conseguir. Felizmente eu me lembrei de ontem
-Eu só fiquei um pouco tonto, nada demais, acho que usei muita magia ontem, foi só isso.
“Só isso” era bem sutil, já que provavelmente eu estaria parecendo um zumbi agora.
-E você só sente agora?
Como explicar isso de uma forma bem simples?
-É como uma espécie de ressaca, o sono restaura muito bem o corpo e a mente, mas a magia não funciona assim.
Aparentemente ele havia entendido, mas isso não ia fazer o tempo ir mais devagar, eu precisava ser rápido.
-Bem, não tenho muito tempo, estou muito atrasado.
O Miro pareceu não gostar muito do que eu disse, já que ele me segurou com um pouco mais de força nos braços. Eu esperava que ele lembrasse que ele já era forte sem se esforçar...
-Calma Ângelo, - disse o Miro - podemos sair daqui 10 pras 8.
Isso me dava 30 minutos. Não era o fim do mundo, mas chegaríamos na academia encima da hora. Contudo, eu teria pouquíssimo tempo pra conseguir energia limpa, e no estado que eu estava, eu não ia aguentar o dia inteiro na academia com pouca magia. Bem, eu precisava tentar.
-Ok então.
Fiz menção para que ele me soltasse, e ele assentiu. Entrei no banheiro, me despi com um pouco mais de calma e entrei no chuveiro. Senti a água no corpo, foi revitalizante. Eu comecei a captar energia dela sem nenhum esforço. Não entendi como aquilo estava acontecendo, mas foi bom, eu comecei a me sentir um pouco melhor. Terminei meu banho, escovei os dentes e me troquei, dentro do banheiro. Saí do banheiro às 7:40. Peguei umas duas torradas e fui para a janela. Subi no parapeito e pulei.
-Flutuar.
Fui até a árvore mais próxima e comecei a captar energia dela, enquanto comia a torrada. Deixei a magia negra livre e me concentrei com mais força em captar energia. Eu precisava aprender a captar energia do ar, essa situação seria contornada se eu já soubesse...
-Flutuar.
Fui para outra árvore, comecei a ter medo de fazer mal à primeira por captar energia demais. Depois de oito minutos captando energia e sentindo no estômago as duas torradas eu estava bem melhor. Voltei para o quarto para colocar o sapato e para tentar comer mais alguma coisa.
-Ângelo, - virei-me para ver que era o Glaucos que falava comigo, enquanto eu colocava o sapato - você me dá medo.
Eu havia me esquecido que era incomum eles me verem captando energia, então eu me jogar da janela deve ter sido estranho.
-Eu precisava ser rápido, desculpe se assustei vocês.
Preocupados teria sido um termo melhor, avaliando-os melhor.
-Ah, tudo bem – começou o Miro - achei que você fosse desmaiar aqui, daí você sai do banheiro e se joga da janela. Não há motivo pra preocupação.
E eu achando que só eu era irônico no recinto.
-Eu sei que vocês vão me perdoar uma hora, - eu disse enquanto pegava mais uma torrada – mas agora precisamos ir.
Eles se entreolharam, mas foram para a porta. Consegui terminar de comer antes de sair do prédio. Andamos um ao lado do outro, com eu no meio. O Miro segurou minha mão. Eu ainda não tinha me acostumado a isso, ele era o tipo de cara que eu imaginava com o Glaucos, por exemplo, que era lindo, nunca com um mago, de pele clara, frio e sem corpo definido. Tudo bem que eu era magro, o que já era melhor do que alguns magos que tinham uma barriga considerável, mas ainda assim eu não tinha corpo definido. E apesar disso aqui estava ele, segurando minha mão. Eu olhei para ele. Ele parecia feliz, tinha um olhar sonhador. Senti a mão dele se fechando mais na minha, eu retribui, ou pelo menos tentei. O Glaucos ficou muito feliz ao ver a Higéia nos esperando. De certa forma eu também fiquei feliz, eu não ia gostar de ver as duas pessoas que moram comigo se beijando ou namorando na minha frente, apesar de eu nunca ter feito isso com o Miro. De qualquer forma fomos os quatro juntos para a academia, estava indo tudo bem até o Crisaor me ver de mão dada com o Miro.
-Olha só, que patético, eles estão juntos.
Uma coisa que se aprende quando se é um mago negro, é que muitas vezes você consegue fazer o que quer, sem usar magia alguma. Olhei para o Crisaor firmemente, a frase “Se olhar matasse” me veio à mente. Soltei minha mão da do Miro, e recebi um olhar meio inconformado dele por isso. Dei um passo para frente e coloquei as duas mãos, uma de frente para a outra, na frente do meu peito, e comecei a fechá-las lentamente, não desviando meu olhar do Crisaor. Eu havia conseguido, ele entendera o recado, eu vi o medo em seus olhos, a claustrofobia.
-Da próxima vez não serão minhas mãos que estarão se fechando, espero que você se lembre muito bem disso.
Apesar do medo, ele não ia perder a postura. Isso era algo respeitoso em uma pessoa, uma pena que eu tenha observado isso naquele cretino.
-Da próxima vez, mago, eu vou terminar o serviço.
Ok, devo admitir que também fiquei receoso. Nossos dois conflitos foram interrompidos, um a favor dele e outro a meu favor. Não quero considerar a lança negra como alguma coisa aqui, aquilo não devia ter feito parte disso.
-Vou pensar em fazer isso também.
Ele lançou um olhar de raiva e entrou na academia. Voltei a segurar a mão do Miro, ele sorriu. Entramos na academia, desejei boa aula a eles e fui para a sala com a Higéia.
-Ângelo, - ela começou. - porque você e aquele guerreiro brigam tanto?
-Eu também queria saber... – respondi meio chateado.
Da última vez que perguntei para o Crisaor porque ele implicava com o Miro ele não respondeu, e acho que agora é que ele não ia responder mesmo.
O dia na academia foi como sempre, tirando o fato de que quando o sinal soou, anunciando o fim da aula, eu parecia mais cansado do que normalmente ficava. Mas eu ainda não podia ir, precisava ver com o professor o que teria que fazer para pagar o metal. Esperei até que todos saíssem e fui até ele.
-Então professor, o que preciso fazer?
Porque ser sutil quando se poder ir direto ao assunto? Um pequeno defeito meu...
-Bem, sua tarefa é simples, você vai me ajudar com alguns livros na biblioteca, começando hoje e terminando na quinta. Na sexta-feira eu tenho outra tarefa, mas deixo isso para o dia.
Livros? Eu realmente esperava algo bem mais complicado que isso. E resolver tudo em 4 dias? Isso soava muito bem. Contudo eu não esperava que eu fosse ficar hoje...
-Neste caso, vou ficar aqui até que hora?
Ele olhou para o relógio e depois me encarou por alguns momentos.
-Você só tem permissão de ficar depois da aula por mais uma hora, então às 19h você já poderá ir. Podemos ir?
Eu não podia deixar o Miro e o Glaucos me esperando durante uma hora, eu precisava avisá-los.
-Tudo bem, só preciso avisar meus amigos.
Ele me olhou um tanto quanto impaciente...
-Hum... acho que não temos tempo para que você possa ir até eles, mande uma mensagem.
Eu ficaria muito feliz em mandar uma mensagem se eu soubesse como fazer isso.
-Eu não sei mandar.
Minha falta de habilidade com o vento estava ficando cada vez mais incômoda.
-Diga-me o que você quer escrever.
Seu olhar era meio vazio, isso às vezes me assustava um pouco.
-Hum... que eu vou sair daqui só às 19h por causa das tarefas e que eles podem ir.
Tentei não transparecer o pequeno receio enquanto falava, algo que aprendi muito bem a fazer com os anos. Uma das minhas armas era o medo, usá-lo contra mim era muito difícil.
-Ok, Mensagem de vento.
Um papel esverdeado apareceu na frente dele e palavras começaram a aparecer nele. Ele me deu o papel e disse para pensar no destinatário. Pensei no Miro e o papel se desfez em ar, fiquei pensando se tinha feito algo errado.
-É normal acontecer isso professor?
Ele acenou com a cabeça.
-Neste caso, acho que podemos ir.
Já que ele parecia um pouco apressado, não seria uma boa ideia ficar enrolando, concordei com a cabeça e fomos.
Quando chegamos à biblioteca fomos direto para a sessão das magias.
-Ângelo, seu trabalho hoje, amanhã e depois serão todos feitos aqui. Até as 18:50 você deverá separar os livros daquela pilha – apontando para alguns livros que estavam dentro de uma caixa – de acordo com o elemento principal do livro. Você deve fazer um risco com a cor respectiva ao tipo de magia, assim como estão todos os outros livros, tudo bem?
Basicamente os livros eram separados pela classe e depois pelo elemento, então essas marcações ajudavam muito na hora de organizar os livros e para achá-los também.
-Hum... sem problemas.
-Durante os dez minutos finais faremos outra coisa e na sexta seu trabalho será na minha sala, depois você estará dispensado. Tudo bem?
É, realmente parecia bem leve...
-Tudo bem.
Ele deu um pequeno sorriso, o que quebrou a tensão de pessoa misteriosa que às vezes ele tinha.
-Ótimo, pode começar, volto aqui às 18:50.
Dizendo isso, ele se virou e saiu da biblioteca. Hora de trabalhar...
Como eu já havia imaginado, o trabalho não foi difícil, era até que prazeroso, eu gostava da biblioteca. Como um mago, muito do meu treinamento era sentado lendo, então era natural que eu gostasse do ambiente. De qualquer forma eu havia conseguido fazer a marcação em quase todos os livros da caixa quando o professor voltou, e aquilo parecia tê-lo deixado bem feliz.
-Ah, você fez um excelente trabalho. Mas agora vem a parte difícil, siga-me, não temos muito tempo.
Sabia que estava fácil demais...
Eu o segui até os fundos da biblioteca, lá tinha uma porta que dava para um lugar reservado da biblioteca, o qual os alunos não podiam entrar, ele entrou e pediu para que eu o seguisse. O lugar tinha ar de velho e empoeirado. No centro da sala havia um pedestal de pedra com algo que se parecia com um cristal negro. Acima dele havia uma janela de vidro e a lua cheia estava fazendo luz na pedra.
-Ângelo, vamos fazer uma magia com essa pedra. Vou precisar que você libere o máximo de magia negra que conseguir.
Eu me assustei com o pedido, mas obedeci. Agora meu cabelo estava negro com algumas mechas azuis.
-Muito bom, agora fique atrás da pedra e de frente para mim.
Fiz o que ele pediu, o que me deixou um pouco receoso.
-É uma magia contínua, você deverá repetir as palavras Luna Encantate várias vezes. Eu vou estar com os olhos fechados, quando eu abrir os olhos você deve parar o encantamento imediatamente, precisamos estar em sincronia perfeita, tudo bem?
Ok, eu ia fazer uma magia contínua usando magia negra...
-Hum... ok.
Ele deu maior força para a magia branca, sua aura começou a deixar os tons de marrom aos poucos.
-Ótimo, coloque as mãos na pedra, nas laterais, não tampe a luz da lua, assim como eu estou fazendo.
Ele colocou as mãos dos lados da pedra, eu fiz o mesmo do lado oposto. Ele fechou os olhos e disse:
-Preparado?
Concentrei-me em seus olhos, os quais seriam meus guias durante essa magia e disse:
-Sim, vamos.
Ele consentiu com a cabeça, um leve sorriso em seu rosto.
-Quando eu chegar no 3 começamos. 1... 2... 3.
-Luna Encantate. - dissemos juntos.
Ficamos repetindo esse encantamento várias vezes, um laço de magia negra saiu das minhas mãos e começou a rodopiar a pedra enquanto um laço idêntico, mas de magia branca saiu das mãos dele e acompanhou o movimento do laço que eu havia formado, era muito belo de se ver. Nem por um segundo eu desviei meus olhos dos dele, a hora de parar um encantamento precisava de muita precisão. Ele o abriu depois de poucos minutos. Ambos paramos a magia e soltamos a pedra.
Eu me senti um pouco fraco depois daquilo, mas percebi que só a magia negra estava desgastada, então tentei usar mais magia de gelo. Deu certo. Aparentemente ele fez o mesmo, porém com magia de terra.
-É, é cansativo, - ele começou, vendo o desgaste no meu rosto. - por isso não podemos fazer por muito tempo. Faremos isso mais duas vezes, para aproveitar a lua cheia.
Eu concordei com a cabeça. Agora sim as coisas começaram a ficar interessantes.
-Bem, - ele continuou, provavelmente notando que eu esperava a próxima instrução. é isso Ângelo, pode ir descansar, até amanhã.
-Tudo bem então, até.
Virei-me e fui embora, deixando-o admirando a pedra.

Felizmente, ou não, meus medos estavam saindo junto com as lágrimas, já era a hora de eu resolver a minha vida de vez. Sequei as lágrimas.
-Você acha que os mortos nos observam?
Um pequeno plano começou a se formar na minha mente.
-Não sei, acho que sim, por quê?
Bem, era uma ideia meio absurda, mas não custaria tentar...
-Então preciso de mais cinco minutos sozinho, já volto.
Ele não entendeu muito bem, mas assentiu, de qualquer forma.
-Ah... tá.
A coisa que eu faria a seguir seria absolutamente patética, mas eu precisava tentar. Sentei ao lado de uma grande árvore, de costas para o Miro, longe o suficiente para ele não me ouvir.
-Marcelo, eu sei que você não pode mais aparecer aqui, mas você pode me visitar em um sonho, e é isso que eu quero que você faça agora, Sono.
Imediatamente meus olhos começaram a ficar pesados. Lançar uma magia sobre si é algo diferente, não tem resistência, mas ao mesmo tempo é meio suicida. De qualquer forma, deu certo, eu estava dormindo. Mais uma vez eu o vi, com o uniforme branco. Ele sorriu.
-Você é louco, não vou conseguir ficar muito tempo.
Ele realmente parecia surpreso com minha ideia, mas ele também tinha razão, eu não podia demorar muito.
-Eu só... quero dizer que nunca vou te esquecer.
Se eu ia rearrumar minha vida, eu tinha que ser sincero e estar bem com o meu passado. Ele parecia feliz com minha decisão, quando a notou.
-Eu também nunca vou te esquecer Ângelo. E fico feliz que você esteja seguindo sua vida.
Eu queria abraçá-lo, mas eu não ia conseguir. De qualquer forma eu tentei. Aproximei-me lentamente dele, e o abracei. Eu consegui, eu podia senti-lo. Era diferente, não tinha aquele calor de sempre, mas por um momento ele estava ali comigo.
-Obrigado por tudo, te amo. – eu disse, me afastando um pouco.
-Também te amo. – ele disse sorrindo.
-Sempre que puder, venha me ver em sonhos.
O sorriso dele diminuiu um pouco e seu rosto ficou um pouco preocupado. Aquilo certamente não era uma boa notícia.
-Eu não posso... você não deve ficar amarrado ao passado. Eu preciso descansar...
Fazia sentido, era egoísta o meu pedido.
-Ah... desculpe, acho que é sua hora de ir, mesmo.
Bem, uma despedida um pouco melhor do que as outras duas, uma de verdade.
-Sim, espero que não fique chateado.
Saudoso, pensativo, talvez. Chateado não.
-Não ficarei, até algum dia.
Dei meu melhor sorriso, ele retribuiu.
-Até.
Aparentemente eu só cochilei, porque o Miro ainda estava no mesmo lugar. Fui em direção a ele, um pouco mais confiante, definitivamente decidido.
-O que você foi fazer?
Várias respostas me passaram pela cabeça. Usei a mais verdadeira.
-Dormir.
-Ah...
Certamente ele não esperava por isso, mas uma outra hora eu poderia explicar. Voltei à minha posição no colo dele, e ele voltou a bagunçar meu cabelo.
-Não achei que você fosse tão carinhoso.
Ele me olhou com ternura, um deslumbre de um sorriso apareceu em seu rosto.
-Não é porque sou um guerreiro que não sei ser carinhoso.
A forma como as palavras saíram, era como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Quase como se incontestável.
-É estranho, - eu admiti. - Mas é muito bonitinho.
Ele ficou vermelho, eu nunca tinha visto ele vermelho antes.
-Eba, consegui fazer você ficar vermelho, agora só faltam umas quinze vezes para empatarmos.
Ele sorriu, meio sem graça, mas o brilho nos seus olhos dizia que ele não ia deixar isso passar.
-Eu te deixo vermelho bem mais fácil, é só eu deitar na sua cama.
Foi a minha vez de ficar vermelho, lembrar daquela cena era absolutamente constrangedor.
-Viu como é fácil?
Ele começou a rir.
-Isso não é justo, não tenho culpa de ter vergonha.
Eu o tinha pego, ele parou de rir e me olhou com cara de ultraje.
-Ora, então você ta dizendo que eu não tenho?
Agora era minha vez de retribuir as risadas.
-Ah, ter tem. No fundo, bem lá no fundo você tem.
Fiz minha melhor cara de bom moço, mas não consegui sustentar por muito tempo, e voltei a rir.
-Ah é? – ele perguntou, com um sorriso malvado no rosto. Ele pegou um punhado de água com a mão e derramou no meu rosto.
-Você não fez isso...
Limpei o rosto com a manga do quimono, enquanto lançava um olhar de ódio mortal e eterno a ele.
-Eu fiz, vai revidar como? Me dando um pouco de vergonha?
Bem melhor que isso. Eu toquei a água e fiz um fluxo de gelo, entrando pela armadura dele, pelas costas, deslizando por toda sua coluna até chegar ao pescoço. Ele se arrepiou.
-Já consigo fazer você ficar arrepiado, que legal.
Eu comecei a rir muito. Ele me pegou no colo e olhou para o lago.
-Isso eu também sei fazer.
Ele deslizou a mão pelas minhas costas, por trás do quimono, da mesma forma que eu fiz com o gelo nas costas dele. Para meu azar eu também me arrepiei. Maldita falta de controle.
-Ai, ok, já está bom. Já está vingado.
Tirei a mão dele das minhas costas, com algum esforço.
-Você não sabe brincar Miro.
Eu ainda sentia a umidade no meu cabelo.
-Ah, fica quieto Ângelo.
Aparentemente alguém não queria ficar por baixo, mas eu também não ia.
-Faz eu ficar quieto.
Ele me abraçou e me levantou, e fez isso rápido, o que me surpreendeu muito. Nossos rostos ficaram na mesma altura, meu coração disparou. Eu vi o rosto dele ficando cada vez mais próximo do meu, senti o calor do seu hálito, enquanto seu corpo pressionava um pouco o meu naquele abraço. Até que nossos lábios se encontraram pela primeira vez. O que eu esperava? Um beijo intenso? Algo com sentimento? Algo sutil? Acho que eu nunca soube. A única coisa que importava ali era o toque dos seus lábios contra os meus, e seu calor estonteante. Coloquei minhas mãos em seu pescoço, e afastei um pouco meu rosto. Encaramos-nos por alguns momentos, talvez eu estivesse fazendo mais drama do que o necessário, mas...
-Você definitivamente não sabe brincar.
Meu rosto estava muito vermelho, eu odiava ser pego de surpresa, ainda mais desse jeito.
-Você é muito tímido Ângelo.
Nesse ponto ele tinha toda razão.
-É...
Acariciei seu pescoço, logo abaixo da orelha. Isso me garantiu um sorriso da parte dele.
-Isso te incomoda? Sua timidez?
Não era algo que eu já havia parado para pensar.
-Talvez seja melhor assim, daí eu condeno menos pessoas.
Ele ficou bastante surpreso.
-Qual tipo de condenação?
Respirei fundo e libertei a magia negra. Ele ficou quieto por alguns segundos, mas logo voltou a falar.
-Ah, essa condenação.
Sim, a condenação que me fez por tanto tempo ficar isolado das outras pessoas, e a que quase sempre foi o maior fruto dos meus problemas.
-Eu não devia me deixar levar...
Ele deu uma risada boba, algo que eu realmente não esperava.
-Se isso for a única coisa que ainda faz você ter dúvidas sobre nós, - ele disse, antes que eu conseguisse terminar a minha frase. - então pode começar a dormir mais tranquilamente.
Suas palavras me abalaram e me confortaram. Era bom e ruim ao mesmo tempo.
-Não dói?
Por um breve momento ele ficou pensativo, mas depois voltou a me olhar, sorrindo.
-Um pouquinho, eu me lembro de algumas coisas chatas. Mas daí eu olho pra você e a sensação ruim passa.
Aquilo foi muito fofo, mas estar com os pés fora do chão estava começando a me incomodar.
-Hum... isso me alivia, mas você já pode me colocar no chão.
Eu não gostava da sensação de ele me carregando. Na verdade eu não gostava de dar trabalho para ninguém, especialmente para ele.
-Você não é pesado. – ele disse sorrindo.
-Por favor. – eu pedi.
Minha voz fora suave, e fora complementada por um beijo, o qual ele não esperava. Ele entendera o recado e me colocou no chão. Voltei para minha posição, sentado, ele fez o mesmo ao meu lado. Novamente eu deitei em seu colo, peguei sua mão e coloquei-a encima do meu peito, segurando-a com minhas duas mãos.
-Seu coração tá acelerado.
Acelerado? Eu quase sentia ele sair pela garganta...
-Sim.
Ele abaixou um pouco a cabeça, e falou um pouco mais baixo.
-Neste caso, acho que você tá gostando.
Não, não, eu estava odiando. Odeio ser beijado por um cara bonito, que gostava de mim, era fofo, legal, divertido e coisas do tipo.
-Eu queria poder dizer que não, tenho receio se ver o ego de certo alguém mais cheio do que deveria.
Um grande sorriso se abriu em seu rosto, com a mão livre ele voltou a bagunçar o meu cabelo.
-Eu não tenho ego inflado, deixo isso pro Glaucos.
Eu comecei a rir, de certa forma era verdade.
Ficamos mais algum tempo por ali, talvez uma hora, quando o Glaucos e a Higéia chegaram. Tive uma sensação muito estranha, a presença de magia negra. Levantei-me rapidamente e olhei em volta, procurando algum monstro ou algum desconhecido, mas não tinha ninguém, e o rastro de magia desapareceu.
-Ângelo, o que foi? - o Miro disse, percebendo minha preocupação.
-Nada...
Tentei não transparecer minha preocupação e voltei minha atenção para o Glaucos, o qual parecia ter gostado tanto da exploração quanto eu ou o Miro. A Higéia parecia um pouco sonhadora.
-Galera, - começou o Glaucos - precisamos ir, já tá ficando tarde.
Era verdade. Concordamos e voltamos à cidade.

Não foi difícil achá-la, ela estava indicando uma mesa azul mágica para algumas pessoas. De qualquer forma fui até ela.
-Bom dia.
Eu ainda aparentava um pouco de cansaço, eu esperava que ela não notasse...
-Olá Ângelo, se divertindo?
Seu olhar deixou claro que aquele detalhe não tinha passado despercebido.
-Ah sim, você nem imagina o quanto eu já me diverti hoje. - eu disse, fingindo uma voz de mistério.
Ela riu, eu não havia mentido, só havia satirizado algo que não era uma sátira.
-Já almoçou?
Uma vez mais sua voz me lembrou a de uma mãe preocupada, o que foi tocante.
-Ainda não, eu pretendo fazer isso agora.
Seu rosto se abriu num sorriso doce.
-Tudo bem então, - ela disse enquanto apontava na direção de uma mesa azul - é naquela mesa ali.
Achei bastante estranho o móvel fora do comum, mas provavelmente algum mago o havia conjurado.
-Bem, obrigado Aglaope, tenha um bom dia.
Ela acenou e eu caminhei em direção à mesa azul, quando uma mão cobriu meus olhos.
-Adivinha quem é?
Tateei as mãos no meu rosto. Era uma mão grande, com longos dedos finos, uma mão de um arqueiro. Achei bobagem eu ter feito isso porque só a voz já era irreconhecível, aquela voz de jovem sedutor.
-Uma ninfa. - eu respondi, fingindo alguma esperança.
-Tão bonito quanto. - ele respondeu, aparentemente contente.
Bem, e essa era a prova definitiva de que eu realmente sabia quem era.
-Glaucos, eu sabia que você era desumilde, mas chegar a esse nível?
Nós rimos e ele tirou a mão da frente dos meus olhos.
- Achei que ia almoçar sozinho, - eu disse, enquanto ele andava ao meu lado. - que bom que te achei.
-É verdade, é sempre bom me ver não é mesmo?
Lancei o olhar mais sarcástico que consegui fazer na hora.
-Ah Ângelo, é verdade... não é?
Ele fez uma cara de coitadinho que me fez rir muito. Tudo bem que não funcionou muito bem porque eu tinha que olhar para cima para falar com ele, mas ainda assim foi muito engraçado.
-Ok Glaucos, você é simpático.
Pelo olhar de choque dele, parecia que eu tinha dito que ele era sem graça ou algo do tipo...
-Ha, que abuso. - ele disse rindo.
Chegamos à mesa e parecia que hoje o cardápio estava ainda mais estranho do que de costume, como se fosse possível.
-Glaucos...
Ele entendeu meu pedido na hora.
-Ok, eu vou colocar sua comida.
Ele pegou algumas coisas e colocou no meu prato. Depois se serviu também. Olhei para aquelas coisas e fiquei pensativo.
-Tem certeza que nada vai me matar?
De certa forma eu não falei muito sério, mas a lembrança do restaurante era difícil de esquecer.
-Se você não comer, tenha certeza que uma hora isso acontece.
Eu ri, mas queria que o Miro estivesse aqui também, eu queria me redimir com ele.
-Queria que o Miro estivesse aqui...
Nós nos sentamos e ele me encarou por um breve instante. Vi um pouco de dúvida em seus olhos.
-É, o clima entre vocês não tá muito bom.
“Não está muito bom” era ainda ser otimista, eu o tinha feito chorar... E ele fizera o mesmo, e no fim das contas, não havia uma culpa em ninguém... eu acho...
-Ah, a situação é complicada...
Considerando tudo, era isso que definia a nossa relação: complicada. Eram tantos fatores interferindo, que... ah, era tudo tão confuso...
O Glaucos retomou a conversa, me tirando um pouco da minha própria mente.
-Achei que você gostasse dele.
Eu também...
-E eu gosto.
Uma sensação de alívio passou por mim, acho que era a primeira vez que eu admitia isso. Seu rosto ficou meio confuso com minhas palavras.
-Então qual é o problema?!
Ah, se fosse simples explicar...
-Eu estava preso a algumas coisas do passado.
É, provavelmente era o jeito mais rápido de explicar toda a situação.
-Já se arrumou?
Ele deixou os talheres no prato e me olhou com firmeza, como ele poderia imaginar que eu conseguiria arrumar a situação nesta manhã? Nem eu sabia que isso seria possível...
-Bem... eu acho que sim.
Um meio sorriso surgiu em seu rosto, e de repente eu me senti... bem. Foi uma sensação estranha.
Ficamos em silêncio alguns momentos, comendo, até que começou a me incomodar.
-Você achou alguma coisa legal, Glaucos?
De certa forma eu me senti meio culpado, eu não havia explorado a floresta muito bem...
-Ah não, só uns gremlins.
Como era de se esperar, eu também não conhecia os monstros daqui. Fico me perguntando a que distância física eu estaria da nação Jolnir.
-Eles são fortes?
O professor havia avisado sobre a possibilidade de acharmos monstros...
-Que nada, foi uma flechada na cabeça de cada um.
Eu ri do comentário, mas fiquei feliz de não achar nenhum monstro, eu não saberia como lidar...
-Eu não achei nenhum monstro.
Ele me lançou o mesmo olhar que o Miro fazia quando eu mentia, o que eu estranhei, eu não estava mentindo, era verdade...
-Se você não achou nenhum monstro, por que seu rosto tá suado?
Hum, isso explicava a expressão, talvez fosse melhor eu lavar o rosto naquele laguinho depois do almoço.
-Bem, acho que é melhor explicar mais tarde.
Aparentemente ele tinha entendido que não dava para eu contar agora e assentiu com a cabeça.
-Ok.
Terminamos de comer e concordamos em procurar a Higéia e o Miro. Eu esperava encontrar o Miro antes para não ficar sozinho com o casal. Para minha enorme sorte, achamos a Higéia primeiro.
-Oi Higéia. - eu disse.
-Oi Ângelo... - ela respondeu com um grande sorriso - e oi Glaucos.
Como sempre o rosto dela ficou vermelho.
-Olá minha querida.
Vi os olhos se encontrando e se entendendo, as expressões se completando, as dúvidas sendo deixadas de lado... ok, eu não ia ficar com o casal!
-Hum... eu vou procurar o Miro. - eu disse, virando-me e indo em direção ao lago, para limpar o rosto.
-Você não quer companhia? - o Glaucos disse.
-Ah não, estou bem. – eu disse, virando-me e indo em direção ao lago.
Não demorou muito para eu achar o lago. Para minha surpresa vi também a pessoa que eu procurava, sentado à beira do laguinho, de costas para mim. Andei até ele e coloquei as duas mãos sobre seus ombros. Ele virou a cabeça e me viu, depois voltou a olhar para o lago.
-Eu poderia ser um monstro, - eu disse gentilmente. - você devia estar preparado.
Ele demorou um pouco para responder, seus olhos tão fixos nas águas rasas...
-Nenhum monstro daqui é tão frio.
A rispidez da sua voz me dizia que ele não estava se referindo ao fato de eu ser um mago de gelo, mas talvez tirar a dúvida não matasse...
-Eu espero sinceramente que você tenha dito isso no sentido térmico da coisa.
Ele não respondeu. Sentei-me ao seu lado.
-Miro, - respirei fundo e continuei: - sobre hoje de manhã...
Um gesto com a mão vindo dele me silenciou.
-Não quero falar disso.
Eu não posso ter sido tão ruim assim... eu só... fui sincero...
-Não, eu... preciso falar, por favor, me escuta.
Ele fechou os olhos por um momento, respirou fundo e os abriu novamente.
-Então fala.
Eu não gostava do jeito que ele olhava para o lago, determinado a não olhar para mim.
-Primeiramente, sinto muito. Eu não quis te magoar, eu gosto muito de você.
Se antes ele estava determinado a não me olhar, a mudança súbita para um olhar de ódio fez meu coração disparar de medo.
-Assim como gosta do morto!
Aquilo doeu demais. Eu ouvi isso pela segunda vez hoje e ambas as vezes foram a mesma dor cortante. Não respondi, eu não ia chorar de novo. Com certeza eu estava num estado deplorável. Eu não o olhei diretamente, acho que nem conseguiria... mas vi sua raiva ficando de lado, sua voz ficou baixa novamente, e veio doce.
-Eu não quis...
Não importava o que ele ia dizer, ele só disse o que tinha guardado, era típico dele. Ele não estava errado em fazer isso, mas...
-Acho que eu merecia ouvir algo assim, mas ouvir duas vezes no mesmo dia é realmente doloroso.
Seu rosto se contraiu em dúvida, ele virou um pouco o corpo para me olhar melhor.
-Como assim ouvir duas vezes?
Definitivamente aquela foi uma péssima ideia, eu estava me magoando e estava o magoando, ainda mais. Eu não podia fazer isso, nem com ele e nem comigo...
-Acho que não vale à pena explicar, não vou te magoar mais, prometo.
Levantei-me, limpei meu quimono e comecei a andar de volta para a mesa azul. Ele me segurou pelo braço.
-Ângelo, tente me entender, eu estou chateado.
Nossa, sério? Eu ainda não tinha notado...
-Eu sei disso, por isso estou indo embora, para você não ter com o que se chatear.
Era um fato simples, com o qual todos poderiam conviver. Obviamente eu estava chateado com a situação, mas... como não se chatear? Como eu queria ficar sozinho e chorar num canto, deixando a morte, a angústia e o aperto no peito saírem.
-Mas eu prefiro você aqui Ângelo.
Ele me desarmou, eu não tinha argumento contra isso e eu não tinha força para lutar.
-Senta de novo, por favor.
Sua voz fora suave, era um pedido sincero. Sentei-me e fiquei olhando para o lago, era realmente muito bonito.
-Agora você pode me explicar o que aconteceu?
Eu nem sabia por onde começar, e sabia ainda menos se devia começar. Respirei fundo e olhei em seus olhos, os olhos vermelhos que me traziam tantas lembranças... algumas que precisavam ficar no passado... Foquei minha atenção em qualquer outra coisa, respirei fundo e disse:
-Eu... terminei o que tinha pendente com o meu ex.
Não era uma frase com muito nexo, mas era o máximo que eu consegui formular na hora.
-Achei que ele estivesse morto.
Explicar tudo aquilo num lugar aberto e no estado de ânimo que eu estava não seria o mais prudente. Não que eu tenha feito alguma coisa prudente com o Miro ultimamente, mas nunca é tarde para tentar.
-Ele está. Posso explicar melhor quando chegarmos em casa?
Ele me avaliou por um momento até acenar com a cabeça.
-Tudo bem então.
Ele colocou seu braço em volta do meu ombro e me puxou para mais perto dele.
-Ângelo, desculpe por ter sido rude com você.
Era bom sentir o calor do corpo dele junto ao meu, era uma das poucas fontes térmicas que me faziam bem.
-Eu mereci...
Eu não achava que tinha feito algo errado em relação a ele, eu não podia deixar de pensar no Marcelo até hoje de manhã. Eu estava jogando um jogo que eu sabia que ia perder, independente de que escolhas eu fizesse...
-Não Ângelo, você foi sincero hoje de manhã.
Bem, ao menos aparentemente ele me entendia...
-Hum, Miro... podemos recomeçar mais uma vez?
Era algo engraçado de se pedir. Pelo meio sorriso que ele deu, ele concordava comigo.
-Já estamos recomeçando pela segunda vez, isso não deve ser muito bom.
Eu retribuí o sorriso. Restabelecer nossa amizade era como voltar no tempo e ver aquela cena na praia, mas com muito mais sentimento, pelo menos da minha parte. Antes ele era o cara que me odiava, agora ele era a pessoa que eu tinha machucado por não poder amar, era o meu colega de quarto, e... bem, ele também era o cara forte que tinha o péssimo hábito de me colocar no colo. Ele era tão fofo... Saindo dos meus devaneios eu encarei aqueles olhos rubros e disse:
-Talvez, mas dessa vez acho que vai dar certo.
Eu segurei a mão dele com as minhas. Por um breve momento eu esqueci tudo que havia acontecido, todas as dores, as angústias e as manchas negras da minha vida. Agora, eu estava apenas acariciando uma mão maior que a minha, com alguns calos, ocasionados pelo uso daquela espada. Um vislumbre veio à minha mente. Era como estar vendo um filme passar, mas eu não era o protagonista. O rapaz forte de cabelos ruivos e aparentemente 12 anos estava ganhando sua primeira montante, ele ficou tão feliz com aquilo, era o sonho dele poder usar uma daquela. Um clarão se passou e eu o vi, mas mais velho, provavelmente com uns 16 anos. Ele estava na frente de um arqueiro de cabelo castanho, ele pegou sua mão e a trouxe para um abraço, no qual ele teve seu primeiro beijo. Mais um clarão e agora ele estava preocupado com a academia superior, ele estava receoso sobre a perseguição desenfreada do Crisaor, e isso o estava matando. Apesar disso, ter o Glaucos ao seu lado era muito bom, sempre foi. Eles estavam se trocando quando a porta se abriu e um mago que ele nunca vira na vida entrou. E com a mesma rapidez que ele abriu a porta, ele saiu, mas sua pele, que era branca como a neve tinha ficado muito vermelha. Ele era gay. Mais um clarão e ele estava na frente do mago, ele seria um motivo de vergonha para ele futuramente, mas ser rude com a pessoa por conta disso era a ideia mais estúpida que ele tivera no dia. Até porque, o mago tinha um corpo muito... Mais um clarão, eu estava vendo um guerreiro, de cabelos vermelhos, muito curtos, enquanto acariciava sua mão. Seu rosto estava sonhador, com a mão livre ele acariciou meu rosto. Eu não tinha entendido o que tinha acontecido, mas certas coisas são belas por não terem uma resposta. Eu deixaria essa memória desse jeito, pura.
-Ângelo...
Eu tive receio de responder. Tive medo de estar vivendo só um sonho bom e que minha voz me faria acordar. Mas... não é certo viver de sonhos...
-Diga.
Minha voz não teve força, era incerta como a voz do meu coração. Mas quem precisava de certezas? Por que buscar o concreto quando toda minha vida era um caos? Não, só uma vez eu ia me deixar levar, não importa o que vai acontecer depois, eu queria esse momento.
-Bem... - ele começou - você sabe que temos a tarde inteira aqui né?
Ele fez aquele sorriso meio sem vergonha que eu só vi uma pessoa fazendo até hoje. Foi meio nostálgico...
Ele colocou minha cabeça no colo dele.
-Agora você já pode corresponder aos meus sentimentos?
A pergunta que foi o pilar de todo o meu conflito do dia. Eu podia fazer isso? Pensar sobre tudo e avaliar a situação seria o mais prudente a se fazer, em vez disso deixei de dizer o que era certo e racional, pra dizer o que eu queria.
-Sim.
Aquela notória palavra, tão simples, foi capaz de tirar um belo sorriso dele. Aquele sorriso me fez ver o porquê aquilo era importante para mim.
-Eu gosto muito de você. – ele disse, meio sem jeito. Depois de tudo, ele fica tímido em só admitir isso, acho que eu nunca o entenderia. E eu amava isso nele.
-Eu também gosto muito de você.
Ficamos daquele jeito por um tempo, ele estava desarrumando, ainda mais, o meu cabelo. Era uma sensação maravilhosa, mas por mais que eu tentasse, não dava para esquecer tudo que havia acontecido.
-Ângelo...
Sua voz me tirou um pouco da confusão que estava minha mente.
-Sim?
-Você tá bem?
Eu tive que pensar para responder.
-Eu não sei. – eu admiti.
Seu rosto se contraiu em dúvida.
-Por quê?
Explicar toda a novela que minha vida estava sendo, resumidamente.
-É tudo muito recente, tudo acontece tão rápido... eu gostava de uma pessoa, ela morreu, eu me senti um lixo e a sensação só ficou pior quando comecei a... reparar no quanto você é atraente...
Nessa parte eu tinha que ficar vermelho, só para não perder o costume.
-Daí a pessoa que eu gostei um dia fala comigo para tentar aliviar a minha consciência e agora eu estou aqui, deitado no seu colo.
Minhas últimas palavras o pegaram de surpresa.
-Você não queria estar aqui?
Definitivamente não era essa a mensagem que eu queria passar.
-Eu quero...
Eu ia começar a chorar com toda aquela pressão.
-Ah não, não aguento mais chorar.
Segurei-me o máximo que pude, eu não era assim, eu não era de chorar!
-Mas se você sente vontade, tem que deixar sair.
Era estranho ouvir conselhos psicológicos de uma pessoa com o porte dele. Talvez eu nunca me acostumasse com isso, mas era fofo de qualquer forma.
-Miro, preciso que o mundo vá mais devagar, preciso respirar.
Ele parou de desarrumar o meu cabelo e me encarou, um pouco sério.
-Eu não posso fazer o mundo ir mais devagar, mas posso esperar o tempo que for pra ficar ao seu lado pra sempre.
Se a lágrima estava esperando por um convite, este com certeza fora um. Eu coloquei a cabeça no peito dele e comecei a chorar. Ele me abraçou. Eu estava cansado disso, nunca fui o tipo de pessoa que chora por qualquer coisa, sempre fui o mago que não fala com ninguém, não se expressa, não ri, não chora, não reclama, mas também não agradece. E quando eu finalmente resolvi mudar essa situação, as coisas mudaram até demais... e agora eu tinha medo. Medo de todo o meu pequeno mundo desmoronar e eu me ver mais perdido do que eu estava agora.

Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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