O dia seguinte seguiu a rotina de sempre, pelo menos até a parte de separar os livros na biblioteca. Um dos livros me chamou a atenção. Tinha um aspecto mais antigo que os outros e possuía uma marcação laranja e roxa na capa, o que significava que era um livro da seção reservada. O título era Magias poderosas e mortais. Achei que fosse um livro de magia negra, por causa do título, mas na verdade era de todos os elementos. Eu sabia que não poderia ver esse livro de novo e minha curiosidade estava muito grande. Levei-o até a área de livros de magia negra e o coloquei atrás de alguns outros livros. Como eu e o Caronte éramos os únicos magos negros daquele lugar seria difícil alguém encontrá-lo. Voltei ao meu lugar de marcação de livros bem na hora que o professor chegou.
Novamente fomos até a pedra negra, hoje ela parecia mais brilhante, e fizemos o encantamento. Como no dia anterior eu senti como se a pedra tivesse sugado a magia negra de mim.
Voltei para casa pensando se valia à pena continuar avaliando as pessoas para achar o dono da voz na minha mente, já fazia tanto tempo que isso acontecera e eu não tinha progredido nem um pouco. Além disso, dia após dia o Caronte me ajudava com as magias negras e eu o ajudava com as magias de gelo, já que ele já tinha aprendido bem as de levitação. Posso dizer que apesar de sermos tímidos e nossa relação permanecer dentro da sala ou da arena, eu o considerava um amigo, afinal, ele era o único que passava por problemas semelhantes aos meus. Por tudo isso, era difícil acreditar que fosse ele o responsável, mesmo não tendo outra opção.
Entre pensamentos eu cheguei ao prédio, estava prestes a abrir a porta quando ouvi o Miro dizer:
-Ah Glaucos, você sabe que não quero nada sério com ele.
Meu coração gelou.
-É, não é típico seu mesmo, mas você podia namorar alguém melhorzinho, sabia?
O deboche na voz do Glaucos era... assustador. Eu nunca havia o ouvido falando mal de ninguém, mas soava tão perverso... tão cortante...
-Eu sei, mas ele já tava tão fácil, daí não resisti.
Fácil?! As lágrimas brotaram no rosto, eu não podia acreditar no que estava ouvindo! Como eles podiam ser tão falsos?! Eu... eu não podia morar com pessoas assim... de forma alguma! Como eles puderam dizer isso?! Eu fervi em raiva, aquilo não fazia sentido! Eu ia pedir transferência para outro quarto... hoje mesmo. Eu não ia suportar olhar para eles nem por mais um segundo! Infelizmente minhas coisas estavam no quarto. Coloquei a mão na maçaneta e girei, tentando controlar as lágrimas. Entrei no quarto com o coração totalmente dilacerado. Tamanha não foi a minha surpresa ao ver que o Glaucos não estava no quarto. O Miro ficou ainda mais surpreso quando me viu chorando.
-Ângelo! O que foi?
Cínico! Se fingindo de inocente, depois do que tinha dito! E cadê o outro falso?!
-Cadê o Glaucos? – eu disse calmamente, tentando não gritar.
-Ele tá namorando... – ele respondeu, chocado.
Ok, as coisas estavam ficando estranhas, ele estava namorando enquanto o Miro estava no quarto? Eu não tinha ouvido a Higéia...
-Onde?
Foi o máximo que consegui perguntar. Meus punhos estavam fechados e eu ia explodir a qualquer momento. Minha raiva só aumentava com a cara de desentendido que o Miro estava fazendo.
-Em algum lugar do prédio, Ângelo, o que aconteceu?!
Em algum lugar do prédio? Mas ele estava no quarto! Eu ouvi! Isso não fazia sentido!
-Então, você não... estava conversando com ele?
Falando sobre como eu fui fácil e coisas do tipo, seu cretino!
-Que hora?
Não se faça de desentendido!!!
-Agora!!! – eu explodi.
As lágrimas desciam pelo meu rosto, carregadas pelo ódio.
-Não! Eu não estava conversando com ele! Ele veio com a Higéia aqui mas nem entraram no quarto! O que há de errado com você?!
Não... definitivamente não fazia sentido. Ele não podia atuar tão bem, ele estava dizendo a verdade. Mas se era assim, então como eu...? Uma presença fraca de magia negra respondeu a pergunta inacabada.
-Miro, - eu comecei, tentando me acalmar um pouco - prometo explicar, mas agora não dá.
Sequei as lágrimas e tentei rastrear a fonte da magia. Infelizmente estava muito fraca, então não tive sucesso. O Miro me segurou pelos braços.
- O que tá acontecendo aqui?
Eu... não tinha certeza. Mas... na hora eu só conseguia ver uma possibilidade. Desvencilhei-me dele, entrei no quarto e sentei na minha cama. Coloquei as duas mãos no rosto, tentando pensar no que havia acontecido. Não havia dúvidas, eu havia sido atacado, de novo. Ele sentou na cama do Glaucos, ficando de frente para mim. Eu não sabia o que dizer... não verdade nem sabia se ia conseguir falar...
-Desculpe-me...
As lágrimas voltaram ao meu rosto.
-Ângelo, por favor, me diz logo o que aconteceu, eu to preocupado com você.
Era óbvio que ele estava preocupado, seu rosto indicava isso mais do que qualquer outra coisa, mas... como aquilo tinha acontecido?
-É que... quando eu fui abrir a porta, ouvi você e o Miro conversando...
Ele empalideceu um pouco, o que era estranho, já que sua pele era bronzeada.
-Mas isso é impossível!
Eu não o culpava por não estar entendendo nada, eu também não estava até alguns segundos atrás, mas antes de explicar eu precisava me acalmar e acalmá-lo.
-Eu sei... por favor, calma.
Aparentemente o efeito foi o oposto do esperado.
-Não consigo ficar calmo! – ele gritou enquanto levantava da cama. - Você entrou chorando aqui e agora me diz que era porque ouviu uma conversa que nunca existiu!
O medo e a angústia me tomaram, ele pareceu muito ameaçador.
-Miro, deixa eu terminar! E para de gritar comigo!
As lágrimas transbordavam do meu rosto, comecei a soluçar. Ele veio até mim e me abraçou.
-Desculpa Ângelo, desculpa, eu... perdi a cabeça, me desculpa, por favor.
Minha cabeça estava um completo caos. Que confusão foi essa em que me enfiaram?!
-Miro, - eu comecei, tentando miseravelmente manter algum controle. - alguém está usando magia negra contra mim. Essa pessoa me fez pensar que tinha ouvido uma conversa entre você e o Glaucos...
Compreensão passou pelos seus olhos, ele havia entendido o quão ruim podia ter sido.
-E sobre o que era a conversa? – ele perguntou calmamente.
Eu juro que tentei me controlar, mas aquela lembrança foi forte demais.
-Espera. - eu disse.
Tentei secar as lágrimas e me controlar. Respirei fundo e tentei contar...
-Vocês conversavam sobre mim... você disse que não queria nada sério, daí o Glaucos disse que você podia... – as próximas palavras doeram muito para serem ditas... - namorar alguém melhorzinho. Daí você disse que só está comigo porque eu fui fácil...
Ele ouviu tudo atentamente e incrédulo.
-Ângelo, eu... jamais diria isso. Tudo isso é mentira, eu quero algo sério com você e definitivamente você não foi fácil.
Aquilo me acalmou um pouco, mas eu ainda tremia um pouco de raiva.
-Eu vou descobrir quem está fazendo isso, e essa pessoa vai pagar muito caro, mas muito mesmo.
Nós nos encaramos por alguns instantes. Ele segurou minhas mãos com as deles e disse:
-Ângelo, acredite no que eu vou te dizer agora: Eu te amo, de verdade, e nada vai mudar isso.
Eu segurei seu rosto com as duas mãos e o beijei. Eu o beijei como se fosse a última coisa que eu fosse fazer na vida, como se nada mais importasse, porque naquela hora, não importava. Os sentimentos ruins foram me deixando, um a um, até que só o alívio e o amor me consumiam em seus braços.
Fui dormir antes de o Glaucos chegar, no colo do Miro. Eu estava exausto psicologicamente, como se não bastasse aquela pedra ficar sugando minha magia negra ainda tinha alguém me atacando psicologicamente. E pior do que tudo isso, era uma pessoa que me conhecia muito bem, porque a pessoa apostou que eu não entraria no quarto, o que era de se esperar de mim, mas eu entrei só para pegar as malas e acabar com aquilo. De qualquer forma o sono foi mais forte do que a tempestade de pensamentos.
Meu sonho desta noite foi diferente. Eu estava entre a luz e a escuridão, ambos os lados diziam: venha até aqui, não acredite nele. Eu estava confuso, eu nunca soube qual era o meu aliado, se a luz ou a escuridão. Uma garra negra provinda da luz me segurou pelo braço.
-Tarde demais jovem mago.
Acordei com o rosto coberto de suor, já era dia, mas ninguém estava acordado. O Glaucos estava se remexendo na cama, como se estivesse tendo um pesadelo, só então percebi que minha magia negra estava livre. Eu a prendi rapidamente e o Glaucos voltou a dormir tranquilamente. Isso estava ficando fora de controle...
Fui até o banheiro e me olhei no espelho. Aparentemente eu tinha acabado de lutar com alguém, apesar de eu ter acabado de acordar.
Fiz a rotina diária de todos os dias, guardando em segredo os meus sonhos. Durante o dia prestei o dobro da atenção nas pessoas, mas nada parecia fora do comum, só a Higéia que parecia mais cansada que o normal, o que não era difícil de entender, ela andara treinando muito forte com o Pharos. Não sei se isso poderia ser considerado algo estranho para ser comentado com o Glaucos, não parecia ser com o que ele estava se preocupando...
O treino da tarde estava quase no fim quando o Caronte tocou num assunto inesperado.
-Você está tendo problemas.
Eu teria ficado menos assustado se ele tivesse perguntado, o que não foi o caso.
-Como você sabe?
Algo em seus olhos me dizia que sim, definitivamente ele sabia. Mas eu não havia sido atacado na presença dele, não que eu soubesse da presença dele, pelo menos.
-Está mais fácil ver seus sentimentos, sua defesa está bastante frágil. – ele disse daquela forma meio sem emoção.
Ah é... isso também fazia sentido. O ruim de conversar com o Caronte, é que quase sempre ele estava certo e ainda por cima ele conseguia provar que eu estava errado. Isso era muito frustrante.
-É... eu estou tendo problemas...
O peso da preocupação pairou sobre seu rosto.
-Quer falar sobre isso?
Eu pensei nas possibilidades, se eu falasse o que tinha acontecido e ele fosse o responsável, talvez eu conseguisse notar a culpa em seu rosto, contudo, se não fosse ele, talvez ele pudesse me ajudar. E se eu não contasse, demonstraria que não confiava nele, não que eu confiasse, mas eu queria muito confiar.
-Alguém anda me atacando... – eu admiti.
Foi difícil falar. E mais difícil foi ver que ele não ficou surpreso com aquilo, ele só parecia... preocupado, talvez chateado, não dava para saber ao certo.
-Hum... e você suspeita de mim?
Não consegui responder, era muito difícil fazê-lo. Eu... eu suspeitava... mas eu não queria!
-Desculpe...
Eu não consegui encará-lo, eu estava envergonhado de mim mesmo. Eu gostava dele, eu o considerava um verdadeiro amigo e... apesar disso, não existia outra pessoa que conseguiria me atacar daquela forma... Ver a tristeza em seu olhar doeu muito.
-Ângelo... – sua voz era baixa, quase melancólica. - não sou eu quem está fazendo isso. Pode ser difícil de acreditar, mas não sou eu.
Ele não ia precisar dizer isso uma segunda vez. Eu ia acreditar nele, eu queria e eu ia!
-Eu... acredito em você.
Era verdade, as palavras dele de alguma forma me convenceram, eu nunca acreditei que fosse ele e era um alívio pensar assim.
-Caronte, você sabe quem é?
Ele balançou a cabeça, meio frustrado.
-Não... eu não consigo achar quem está fazendo isso, o rastro é fraco demais, o que é estranho, porque estão investindo duro contra você.
Sim, isso também não fazia sentido para mim e... espera, o que foi que ele disse?
-Espera, como você sabe disso?
Ele foi pego de surpresa.
-Eu... - seu rosto ficou vermelho - andei te vigiando.
Isso talvez explicasse algumas coisas.
-Você entrou em alguns sonhos meus?
Era notável o desconforto dele com o assunto, mas eu precisava de esclarecimentos...
-Sim...
Às vezes havia a presença de escuridão nos meus sonhos, a qual eu considerava ser a presença do atacante, mas isso mudava um pouco as coisas.
-Esse tempo todo você estava tentando me proteger?!
Ele concordou com a cabeça, sem me olhar nos olhos. Meu rosto ficou muito vermelho, como eu pude suspeitar de quem estava tentando me proteger o tempo todo?!
-Eu... nem sei o que dizer... desculpe-me Caronte, por suspeitar de você...
Um pequeno sorriso se formou em seu rosto, mas não foi o suficiente para apagar a tristeza que ali havia.
-Acho que já estou acostumado.
Eu sabia como ele se sentia, e eu não queria que ele se sentisse daquele jeito. Eu o abracei, ele retribuiu.
-Obrigado por me ajudar. - eu disse.
-É o mínimo que posso fazer por um amigo. E é bom saber que tenho algum.
O sinal soou, hora da minha visita à biblioteca.
-Vai lá Ângelo, prometo não contar a ninguém do livro.
Ele piscou para mim, eu fiquei boquiaberto.
-Caronte! O que mais você sabe?!
Fico feliz por ter alguém querendo minha segurança, mas até onde estava indo a invasão de privacidade?
-Hey, isso eu não descobri te vigiando, eu só fui à biblioteca e tinha um rastro de magia negra diferente atrás dos livros. Quando vou olhar, lá está um livro da seção reservada.
Olhei para os lados para ver se ninguém o tinha ouvido, por sorte não.
-Ok, ok, não conta para ninguém, não pude lê-lo ainda.
Ele abriu um sorriso.
-Tranquilo, até amanhã Ângelo... pelo menos eu espero.
Eu já estava estranhando a falta de pessimismo, a última frase me lembrou com quem eu estava de fato conversando. Seria cômico, se não fosse trágico.
-Até.
Esperei todos saírem para seguir o professor até a biblioteca. Assim como das outras duas vezes eu fiquei marcando os livros até as 18:50. Hoje eu estava mais apreensivo que nos outros dias, eu não sabia ainda qual era minha tarefa final, e ela era amanhã! De qualquer forma entrei na seção reservada pela terceira vez, e pela terceira vez fiz o encantamento na pedra. Porém hoje ela estava diferente, estava mais acinzentada, como se tivesse virado cinzas. E a cada segundo que se passava ela ficava mais cinza.
Prestei atenção aos olhos do professor, porém algo quase me desconcentrou. A pedra começou a brilhar mais intensamente e os laços branco e negro rodaram mais rapidamente, até que ambos se fundiram em um só, num laço prateado. Senti um puxão nas mãos, a magia negra emanava de mim para a pedra muito velozmente, o que me deixou tonto. O laço prata ficou rodopiando encima da pedra até se transformar numa réplica da lua. A réplica desceu até a pedra e a banhou com magia. A pedra em resposta brilhou ainda mais intensamente. O professor abriu os olhos. Soltamos a pedra e paramos o encantamento. Agora a pedra estava realmente coberta por fuligem, mas os espaços que não estavam tampados por cinzas brilhavam com uma luz prateada.
-Nossa... isso foi difícil, mas conseguimos. - ele disse entusiasmado.
Se ele dizia, eu não ia contrariá-lo.
-Professor, o que exatamente nós conseguimos?
Eu sabia que tínhamos feito algo, minha cabeça não podia estar rodando por nada.
-Ah Ângelo, isso é uma surpresa, prometo te contar amanhã, hoje você deve estar cansado, o ato final precisou de muita magia, não é mesmo?
Fiz que sim com a cabeça.
-Muito bem Ângelo, a tarefa de amanhã não será uma tarefa, será uma aula extra. Vamos fazê-la na sala depois do treino, você precisará dessa aula depois do que fizemos aqui.
Ah, tudo bem, eu nem estava curioso mesmo.
-Hum... ok. Neste caso, até amanhã.
Ele sorriu.
-Até.
Depois daquilo até andar foi cansativo, eu não sabia se ainda tinha magia negra dentro de mim. Não que eu ficaria triste se eu perdesse toda a magia negra, mas era desgastante quando ela se esgotava. Cheguei em casa acabado. Abri a porta e já fui direto para a cama.
-Boa noite pra você também zumbi. - disse o Glaucos.
A voz dele veio como um eco muito distante...
-Eu não vou jantar, preciso dormir.
Minha voz foi arrastada. Meus olhos já estavam fechados e meu corpo reclamava por qualquer movimento.
-Nossa, foi tão cansativo assim? - perguntou o Miro.
Como eu queria que tivesse sido só cansativo. Aquilo foi de matar!
-Foi muito, muito ruim...
Eu senti meus sentidos se desligando contra a minha vontade, quando uma mão me sacudiu um pouco.
-Ângelo, você não pode dormir com o quimono. - disse o Glaucos.
Meu primeiro pensamento foi queimar a droga do quimono, pelo menos seria rápido. Infelizmente eu ainda estava dentro dele, então não seria uma boa ideia. Contra toda a minha vontade, eu me levantei e comecei a tirar a roupa, lentamente. O Glaucos olhou para o Miro e disse:
-Quer um babador? Posso trazer algum aperitivo e suco também.
Apesar de ter ficado imensamente envergonhado, eu ri. Coloquei uma roupa meio velha e voltei a deitar.
-Perdão meninos, mas hoje não vou conseguir conversar.
Ouvi o Miro respondendo, mas meus olhos já estavam se fechando. Sua voz ficava mais baixa, até que não passou de um sussurro leve, que não demorou a desaparecer.
Foi uma noite sem sonhos.

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Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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