A quinta havia sido reservada para a preparação psicológica e, portanto, a academia ia ficar fechada para os alunos do último ano intermediário.
Hoje eu combinei de passar o dia com a Carol e o Ângelo, e a noite com minha mãe. Eu havia pedido pro Ângelo pra mostrar a caverna pra Carol, e ele havia aceitado, íamos depois do almoço. Almoçaríamos na Beatriz, como um gesto de almoço final, já que tínhamos que nos preparar para o pior.
Eu estava trocando de roupa, coloquei meu traje vermelho que usava para eventos e fui para o restaurante. Ao chegar lá eles já estavam me esperando numa mesa no centro do restaurante.
-Olá Marcelo. - disse o Ângelo, um pouco apreensivo.
Ele estava com um quimono diferente, era um pouco mais justo ao corpo, lembrava um pouco um traje. Era azul claro com detalhes em branco. Já a Carol estava com um vestido azul escuro, com um decote que realçava seus seios e o símbolo da água na lateral do vestido, em preto (o símbolo da água é uma gota).
-Oi Ângelo, e oi Carol.
Minha saudação não foi o que posso dizer como alegre, mas não tinha como esta feliz naquela situação.
-Oi.
Ela também não estava muito calma.
-Vocês dois parecem nervosos.
O que eu disse era óbvio, dava pra sentir o nervosismo fluindo de todos nós, a apreensão, o medo...
-Você também. – respondeu o Ângelo.
-Acho que podemos esquecer isso por hoje. – disse a Carol.
Não foi preciso pensar duas vezes pra concordar com ela, aquilo estava acabando com a gente.
-É, você tem razão, vamos esquecer isso por hora, - eu disse - já pediram seus pratos?
-Estávamos esperando você. - respondeu a Carol.
Um sorriso brotou no rosto dela, precisávamos mesmo tentar nos distrair.
-Obrigado por esperarem, vou chamar o garçom.
Chamei com um gesto, desta vez não era o que o Ângelo conhecia, mas parecia tão prestativo quanto. A Beatriz sempre teve um excelente corpo de funcionários.
-Já escolheram?
Ele perguntou, enquanto tirava do bolso um bloco de anotações e uma caneta.
-Nachos. – eu disse.
-Paieja. – Ângelo disse.
-Salada verde com molho branco. – Carol disse.
-Já trago. - disse o garçom, acabando de anotar os pedidos e os levando pra cozinha.
-O lugar que vocês vão me mostrar... é perigoso? - a Carol perguntou de repente.
-É fora da cidade, mas não tem perigo. – disse o Ângelo.
-É muito bonito Carol, você vai ver.
Tudo bem que metade da beleza que eu via no lugar, era culpa da companhia, mas ainda não tirava o mérito da caverna.
-Assim espero. - ela respondeu.
Ficamos em silêncio algum tempo, era difícil ter conversa com a tensão no ar. Tal silêncio só foi quebrado quando o garçom trouxe a comida. Mais uma vez foi uma refeição silenciosa. Acabamos de comer, pagamos e fomos em direção ao portão sul. Quando passamos pelo portão de transporte o Ângelo o olhou de uma forma diferente, eu precisava me lembrar de perguntar sobre isso a ele ainda hoje. Adentramos por entre as árvores até que a Carol cortou o silêncio.
-Essas árvores são muito lindas.
Seu rosto parecia fascinado e perdido enquanto ela olhava pra cima.
-Esse lugar é especial Carol, as energias daqui são muito puras, é como se fosse um local sagrado, mas que não me proporciona dor.
Ele tocou uma árvore enquanto passava, seu rosto demonstrava que estava mais perdido em pensamentos do que a Carol.
-Como assim?
A pergunta pareceu pegar ele de surpresa, por isso ele demorou um pouco pra responder.
-Se fosse sagrado não me faria bem, sou em parte mago negro.
Apesar da naturalidade com que ele tinha falado, nunca tinha me passado isso pela cabeça, mas fazia sentido... mas então, ele não ia à igreja nunca?
-Ah sim, é verdade. - disse a Carol, interrompendo minha linha de raciocínio.
-Marcelo, você parece um tanto quanto longe...
Aquele par de olhos azuis claros me encarava, junto de uma tentativa meio frustrada de sorriso e um ar de insegurança.
-Um pouco, estou aproveitando o momento.
Aproveitar o momento era tudo que eu queria fazer. Aproveitar a companhia deles, daquelas árvores, dos meus pensamentos, do sopro leve do vento que tentava contornar as árvores. Eu só queria isso, aproveitar um pouco mais... Continuamos caminhando até chegar à caverna.
-Luz. – declarou o Ângelo, e novamente surgiu uma luz entre suas mãos – Vamos?
Caminhamos até chegar ao local dos cristais verdes.
-Bem, é aqui Carol.
A Carol ficou maravilhada, assim como eu, com o lugar.
-É tão maravilhoso, é...
Ela levou a mão ao rosto e mal podia se conter. Passou a mão pelos cristais enquanto via seu reflexo neles.
-Fico feliz que tenha gostado. - respondeu o Ângelo.
Eu não conseguia suportar aquilo, o pensamento de talvez perdê-los era como um veneno que me magoava cada vez mais.
-Eu amo muito vocês dois. – eu disse.
Eles me olharam de um jeito diferente, com ternura, como se o veneno que me corroesse também circulasse no sangue deles. Nós nos abraçamos, a Carol foi a primeira a começar a chorar, eu não resisti e nem o Ângelo.
-Vai dar tudo certo. – a Carol disse, mas mais pareceu uma súplica do que qualquer outra coisa...
O Ângelo não disse uma palavra sequer... ele só chorava, eu queria muito que ele dissesse algo...
-Ângelo...
-Eu... – ele começou, soluçando um pouco. – eu gostei muito de viver como as outras pessoas... eu não queria que acabasse agora...
-Não vai, - eu disse, beijando-o no rosto. – nós vamos ficar bem.
Minhas palavras foram uma súplica, eu queria por tudo no mundo que elas fossem verdade.
Entre lágrimas, soluços e silêncio ficamos lá o resto da tarde e começo da noite, um em cima do outro, fazendo carinho. De uma forma ou de outra, tínhamos que enfrentar nosso destino...
-Vamos, precisamos dormir bem. – disse a Carol, secando o rosto.
Como se eu fosse conseguir dormir hoje.
-É verdade, vamos... - respondeu o Ângelo, com a voz acusando um enterro...
-Vamos sim, sobre amanhã, boa sorte a nós.
Minhas palavras foram baixas, mas era o máximo que eu conseguia.
-Boa sorte. – eles responderam juntos.
Voltamos para a cidade, com menos peso na consciência. Deixamos a Carol na casa dela e depois o Ângelo me deixou em casa. Paramos e ficamos frente a frente, eu segurei a mão dele que como sempre estava fria, fui chegando mais perto, até que nossos lábios se encontraram uma vez mais e nos beijamos. Ficamos ali parados por algum tempo se olhando, quando o Ângelo me abraçou com força.
-Obrigado por tudo. Obrigado pela amizade, pelo carinho... - ele disse.
Seu rosto estava banhado pelas lágrimas, e eu senti meu ombro começando a ficar molhado.
-Obrigado por me mostrar o que é amar.
Encostei minha testa no seu cabelo bagunçado e me deixei chorar por mais algum tempo, até que eu me afastei um pouco dele
-Até amanhã...
As palavras nunca quiseram ser ditas, mas eu as forcei a ir.
-Até.
Eu ouvi essa última palavra do dia e o observei virando e indo pra sua casa.
Entrei em casa como se tivessem anunciado a morte de alguém, minha mãe ficou no meu quarto comigo, até que eu adormeci no colo dela.
Acordei no outro dia, tomei banho, escovei os dentes, tomei café, dei um abraço forte em minha mãe, disse a ela que a amava e fui pra a academia, sem parar na casa de poções. Eu não podia me desconcentrar, hoje não era o dia de pensar nos sentimentos, ou nas pessoas, eu precisava fazer isso pra ter a oportunidade de pensar um dia mais. Entrei na arena, já estavam distribuindo os calabouços, com o globo de uma semana atrás, porém era meu professor que estava com o globo, esperei na fila até que ele chegou em mim.
-Boa sorte Marcelo.
Peguei o papel dentro do globo, e a escrita do papel não podia ser verdade, meu coração começou a bater rápido e parte da minha concentração forçada cessou naquele momento.
-Caverna das Sombras...
Bem, era isso, eu ia pra Caverna das Sombras, mas não queria uma despedida com a Carol e o Ângelo, não queria preocupá-los.
-Professor, o senhor pode me dar o mapa?
As palavras quase não saíram, minha voz estava baixa e isso não era normal vindo de mim, não que eu fosse escandaloso mas... é, talvez eu estivesse entregando os pontos, mas eu não podia e não ia fazer isso, eu ia passar nessa prova e virar um membro da nação Jolnir.
-Seu mapa está ali com aquele mago, pode ir lá e... use tudo que aprendeu, eu confio em você.
Seu rosto era de tristeza. Ele já havia me contado como ele odiava esse dia do ano, como era ruim perder os alunos... mas essa era a forma que a nação julgava correta, então...
-Obrigado professor, por tudo.
Me virei e fui em direção ao mago, o qual era o professor do Ângelo.
-Qual mapa você precisa meu jovem?
Ele não estava olhando pra mim, estava muito ocupado tentando organizar todos os mapas que estavam com ele, mas seu rosto cansado mostrava que o dia parecia estar sendo longo, apesar de ainda ser cedo.
-Caverna... das Sombras.
Finalmente ele virou seu rosto em minha direção, suas rugas afundaram um pouco e seus lábios se contraíram levemente. Ele pegou um mapa manchado com algumas gotas de sangue e me entregou.
-É este aqui.
Tentei não pensar que talvez parte daquele sangue, agora seco, fosse da Carol, mas era impossível...
-Obrigado.
Andei em direção à saída da academia tentando ir por um caminho um pouco mais escondido pra não encontrar nenhum conhecido. Consegui sair da academia sem encontrar ninguém, agora era só fazer isso pelo resto do caminho até a saída oeste, que era para onde eu precisava ir.
O resto do caminho pela cidade foi por entre ruas sinuosas e afastadas do centro da cidade, até eu finalmente chegar ao portão oeste. Segundo o mapa, esta saída dava pra uma planície, seguida ao norte por uma cadeia de montanhas e ao sul por uma área desertificada. A Caverna das Sombras ficava na divisa dos dois, mas não era longe. Segui em frente tomando cuidado pra não ser pego de surpresa por algum monstro, até que avistei a entrada da Caverna. Aparentemente parecia uma mina abandonada e tinham dois lobos negros de guarda, era a hora de me preparar. Deixei a energia fluir e o fogo tomar conta das espadas. Um dos lobos me viu e correu em minha direção, o outro veio logo em seguida. Corri em direção a eles.
-Tornado ardente!
Girei com a espada em chamas, mas o primeiro lobo se desviou e pulou em cima de mim, também consegui me desviar, mas o outro lobo agora estava muito próximo, eu precisava acabar com o primeiro antes que o segundo chegasse. Neste instante o primeiro lobo tentou um segundo golpe.
-Estocada de chamas!
Eu investi com uma das espadas, acertando o lobo em cheio, mas o segundo lobo também me atacou, fazendo um arranhão no meu abdome, porém agora ele estava do meu lado.
-Corte flamejante!
O golpe não o acertou, mas o fogo o deixou cego e era isso que eu queria.
-Guilhotina!
Forcei as duas espadas de baixo pra cima, cortando-o em três pedaços. Eu nem tinha entrado e já estava arranhado, e estava ardendo bastante, por sorte o traje aguentou bem, se não teria sido um corte bem profundo. De qualquer forma, não importa, eu precisava acabar logo com isso. Vi se os lobos não tinham nada de valor, porque haviam me dito que aqui os monstros poderiam carregar alguns itens que poderiam ser revendidos na cidade, mas eles não tinham nada. Fui em direção à entrada.
Lá dentro estava escuro, a luz do fogo seria bastante útil. Caminhei atento a qualquer sinal, porém nenhum sinal apareceu. Se não fossem os lobos na entrada, eu diria que estava no lugar errado, porque tudo estava muito quieto, quieto demais...
Continuei caminhando até que ouvi um barulho e uma gota caiu no meu cabelo. De repente algo estava grudado no meu pescoço e estava chupando meu sangue! Segurei a criatura e a cortei em duas, era um morcego vampiro. Agora eu precisava ser mais rápido ainda, esse morcego era conhecido pelo veneno que injeta nas vítimas, que dentro de minutos começa a deixar a presa atordoada até ela desmaiar, era um veneno de imobilização. Além disso, meu pescoço estava sangrando.
Corri em frente, eu precisava urgentemente achar o chefe e matá-lo, antes que o efeito do veneno começasse. Só parei de correr quando avistei uma luz de fogo que não era a das minhas espadas. Tentei espiar. Era uma sala maior que o corredor que eu estava seguindo até agora, com uma cadeira de pedra, na qual estava “sentado” uma espécie de fantasma, parecia uma pessoa, porém com várias feridas e semitransparente. Além dele havia dois lobos negros e quatro morcegos no teto, minha única chance seria acabar com os morcegos de uma vez, mas não sei se eu iria conseguir produzir tanto fogo. Era a única chance e seria a que eu tentaria, minha pernas estavam começando a amolecer. Entrei na sala em direção aos quatro morcegos. Assim que eles me viram, voaram em minha direção, logo atrás vieram os lobos e o fantasma começou a evocar uma magia. Continuei correndo até que os quatro morcegos mostraram as presas, eles estavam muito perto de mim, se eu errasse, seria atacado.
-Fúria das espadas flamejantes!
O fogo das espadas se intensificou e eu comecei a fazer cortes no ar, cada corte lançando uma labareda de fogo. Acertei os quatro morcegos, mas os lobos pararam ao ver o ataque. Algo que eu não esperava aconteceu.
-Pesadelo. - disse o fantasma.
Eu me vi voltando pra casa, todo machucado e sem conseguir matar o chefe. A Carol e o Ângelo estavam deitados na frente da minha casa, seus rostos mais pálidos do que o normal. Eles estavam... mortos?!
-NÃÃÃÃOOOO!!!!
Um dos lobos mordeu a minha perna enquanto o outro mordeu meu braço e minha cabeça começou a latejar de dor.
-Tornado ardente!
Girei com as espadas em chamas, cortando ambos os lobos, mas agora além do pescoço eu tinha um braço e uma perna sangrando, fora o cansaço que estava se abatendo sobre mim, cada vez mais forte. O fantasma começou a evocar uma nova magia, eu não podia deixá-lo fazer isso. Corri em direção a ele, a cada passo minha perna dava uma pontada de pura dor, como se estivessem enfiando uma faca nela, mas agora não era hora de se importar com dor.
Quando eu cheguei bem próximo ao fantasma, gritamos ao mesmo tempo.
-Estocada de chamas!
-Lança negra!
Eu afundei a espada aonde deveria ser o coração dele e ele lançou algo que parecia uma agulha roxa, que perfurou meu peito. O fantasma desapareceu, deixando pra trás um broche roxo que eu entendi como a prova de que ele foi morto. Coloquei a mão no peito e minha mão ficou coberta com sangue, a dor e a fraqueza começaram a se intensificar.
Peguei o broche e caminhei de volta para a entrada, mas o fogo das espadas estava ficando cada vez mais fraco e a minha visão cada vez mais obscurecida, a caverna parecia não acabar e a cada passo eu sentia a vida fluindo pra fora de mim. Quando eu vi a luz do sol desisti de manter o fogo, agora eu era um alvo fácil, eu não conseguiria me defender de nada, mas não parei de andar mesmo que cambaleando.
A dor pulsava enquanto eu deixava meu rastro de sangue. De repente ouvi uma risada boba, parecia da minha mãe, mas estava acompanhada de outra, uma mais baixa e mais tímida. Eu nunca esqueceria o som daquela risada, tão fraca, mas tão cheia de vida. Atravessar a planície era quase suportável, ouvindo aquilo, pelo menos era o que minha mente achava, mas meu corpo discordava. A dor das feridas estava muito intensa e eu quase não enxergava mais, minhas pernas cambalearam de novo, mas eu não tive forças pra suportar meu peso, eu caí no chão. De relance eu vi o Ângelo correndo em minha direção, minha mente continuava a brincar de sonhar, mas se aquilo já fosse o que se tem depois da morte, eu seria eternamente feliz.

O domingo passou rápido, fui para a biblioteca ler mais sobre as técnicas que usavam espada e fogo ao mesmo tempo para poder treiná-las durante a semana, já que comecei a treinar as técnicas de espada flamejante há pouco tempo, e essas técnicas seriam muito importantes para a prova final. Não vi o Ângelo, mas teria o resto da semana. Não queria contar com o tempo que vinha após a prova final.
Na segunda fiz minha rotina até chegar à casa de poções. Não sabia se devia esperar a Carol, mas o Ângelo apareceria e isso era algo muito bom. Não demorou para que ele chegasse. Cumprimentamo-nos com um abraço apertado e um beijo na bochecha.
-Bom dia Marcelo. - ele disse com um sorriso no rosto.
-Bom dia. - respondi, era uma sensação muito boa estar perto dele.
-A Carol vem?
Isso era algo que eu também queria saber, seu rosto demonstrou um pouco de preocupação.
-Não sei.
Eu estava pensando nela quando ele disse algo.
-Acho que podemos esperar um pouco.
Seu rosto era um misto de preocupação e felicidade. Ele colocou as duas mãos no cabelo e o jogou pra trás, deixando-o ainda mais desarrumado do que de costume.
-Sim, podemos. - eu respondi rindo.
-O que você fez ontem? – ele questionou, me encarando.
Ele colocou as mãos nos bolsos e me olhou de forma muito inocente, realmente parecia que ele nem de longe era mal como as pessoas diziam que os magos negros eram.
-Fiquei estudando algumas técnicas. E você?
Ele pensou um pouco antes de falar.
-Durante o dia eu dormi, de noite eu tentei treinar um pouco.
Aquilo era algo incomum...
-Por que você não treinou durante o dia?
Aparentemente eu o tirei da própria linha de pensamento porque ele me olhou meio surpreso, meio assustado.
-Sou um mago que usa o poder do frio e da escuridão, a lua é a minha regente, eu funciono melhor à noite. - ele respondeu calmamente, mas um pouco apreensivo.
Era de se esperar que ele gostasse mais da noite, mas ainda assim isso levantava algumas dúvidas.
-Então viver à luz do dia te incomoda?
-Não exatamente, - ele disse, pensando um pouco sobre o assunto. - eu só me sinto melhor de noite, mas não é ruim viver com o sol... pelo menos quando não está muito quente... - ele respondeu olhando para o sol, que estava ficando cada vez mais alto no céu.
-Olá meninos. - disse a Carol, atrás de mim.
Foi muito reconfortante ouvir a voz da Carol, e ela parecia ótima.
-Oi Carol, você não tá totalmente recuperada não é mesmo?
Tentei segurar a risada ao dizer isso.
-Por que você diz isso Marcelo?
Ela realmente ainda parecia meio cansada e seu tom de voz estava calmo.
-Você cumprimentou que nem gente.
A cara dela foi a de mais pura indignação e ela começou a me estapear no braço enquanto eu não parava de rir.
-Ah, que amor que você é Marcelo e não quero ouvir sua opinião Ângelo, porque você vai defendê-lo.
-Não falei nada. - ele respondeu, rindo da situação.
Depois de uns 10 segundos me batendo, aparentemente ela estava satisfeita.
-Muito bom. Vamos? - disse a Carol com tom de autoridade, o que fez eu e o Ângelo rirmos ainda mais.
-Sim senhora. - eu respondi, quase caindo no chão de tanto rir.
Ela me deu língua e fomos. Ficamos conversando sobre nossos domingos até que o Ângelo precisou ir para o bloco A enquanto que eu e a Carol fomos para o bloco dos espadachins.
Passei a manhã tentando treinar alguns dos conceitos que aprendi com a Carol, mas eram muitos conceitos e de um nível de dificuldade muito elevado, provavelmente iria me consumir toda a semana, mas valeria à pena. O almoço veio rápido, ainda mais que eu o esperava ansiosamente. Avistei o Ângelo sentado numa mesa no canto do salão, ele já tinha pego seu almoço e estava nos esperando pra comer. Peguei minha comida com a Carol e nos juntamos a ele na mesa.
-Como foi a manhã de vocês dois? - ele perguntou.
-O Marcelo ficou treinando técnicas que ele havia aprendido, eu tentei ajudá-lo usando técnicas com água, e você? - respondeu a Carol, tentando ver se tinha pego tudo que queria pra comer.
-Tentei melhorar o foco e a rapidez das magias. - ele respondeu, não muito animado.
-Conseguiu? - eu perguntei.
-Hum, não muito bem, as magias estão demorando. - ele parecia bem preocupado com isso. Apesar de não gostar disso, era verdade, as magias dele estavam lentas pra serem evocadas e isso era um problema...
-Você tem uma semana Ângelo. - tentei encorajá-lo.
-Eu sei Marcelo, essa uma semana será para aperfeiçoamento.
Sua voz deixou claro que ele ia estudar freneticamente a semana toda, o que provavelmente não daria muito tempo pra nós... bem, talvez fosse melhor não pensar nisso.
-Você não pensa em reforçar o que seu professor deu nas últimas aulas? - perguntei, sem muito entusiasmo.
-Não.
Ele começou a me encarar depois de ter dito isso, de um jeito estranho, como se ele não tivesse entendido alguma coisa.
Conversamos mais um pouco enquanto comíamos, até que o sinal de voltarmos para a sala soou. Nós nos despedimos mais uma vez e fomos treinar.
A tarde passou tão rápida quanto a manhã. Eu e a Carol encontramos o Ângelo na saída e voltamos pra casa juntos. Deixamos a Carol na casa dela e fomos em direção à do Ângelo.
-Marcelo, o que aconteceu no almoço? Você ficou meio triste de repente.
A pergunta me pegou de surpresa e ele não tirava os olhos de mim.
-Ah, nada, eu só tava pensando nessa semana, e que... sei lá, talvez não tenhamos muito tempo pra... hum... ficar juntos.
Era difícil eu gaguejar pra falar algo, mas isso era realmente meio egoísta e constrangedor. Pro meu espanto ele não pensou pra responder.
-Acredito que não, podemos treinar juntos uma parte da noite e reservamos um tempo para... fazermos outras coisas que não sejam treinar.
Ele falou aquilo de um jeito espantosamente simples, como se já tivesse planejado isso antes de dizer, o que eu não duvido que ele tenha feito.
-Bem, pode ser. Treinamos na sua caverna?
Aparentemente isso também estava nos planos dele, ele assentiu.
-Sim. Busco-te depois do jantar, ok?
Seu rosto se abriu num sorriso, o tipo de sorriso para o qual era impossível dizer não.
-Claro, podemos fazer isso na terça e na quarta também.
Eu retribuí o sorriso de um jeito um tanto quanto sem vergonha.
-Por mim seria muito bom.
Começamos a rir no meio da rua com nosso pequeno flerte de sorrisos.
Levei ele até sua casa, nos despedimos com um beijo e eu voltei pra casa pra jantar. Hoje minha mãe tinha fritado um bife e parecia que tinha arroz!
Veja bem, depois do acidente a fauna e a flora foi dividida em normal e monstruosa, sendo assim, tínhamos uma quantidade limitada de diversificação de alimentos. É preciso considerar também que as plantações e as criações de animais eram muito bem protegidas e tudo mais... por essas e outras a comida se tornou algo caro, e arroz era algo que dificilmente tínhamos em casa, já que era considerado um alimento de gente rica.
-Mãe, você fez arroz...
O rosto dela se iluminou, com aquela aura de mãe cozinheira que fez algo que o filho vai gostar.
-Sim, meu anjo, hoje teremos um jantar especial.
Aquilo era um pouco esquisito...
-Temos algo pra comemorar?
Andei em direção à mesa enquanto falava.
-Não, mas precisamos aproveitar bem cada momento.
Por azar eu entendi o que ela queria dizer, ela também estava com medo da prova. Pensei em como ela ficaria arrasada se eu... não conseguisse. Meus olhos começaram a ficar marejados. Me contive antes das lágrimas saírem e olhei pra ela, aparentemente ela também tentava se conter. Falei algo pra segurar o choro.
-É verdade, vamos comer.
-Vamos. - ela disse rapidamente.
Tivemos um jantar que prometia ser silencioso, até que nasceu um sorriso tímido em seu rosto.
-Marcelo, você gosta do Ângelo, não é mesmo?
Eu quase engasguei quando ouvi aquilo.
-Acho que sim, não sei mãe, eu o conheço faz tão pouco tempo...
Ela se inclinou um pouco sobre a mesa, meu coração acelerou um pouco.
-Ah meu querido, você está se apaixonando! - ela disse, juntando as mãos no final da frase.
O jeito cantarolado e doce que ela usou pra falar aquilo me deixou meio perturbado. Eu sei que eu gostava de estar perto do Ângelo, que eu pensava bastante nele e... e talvez eu estivesse me apaixonando mesmo...
Olhei pra ela como se pedisse ajuda, porque era isso que eu queria nesse momento.
-Marcelo, não precisa ficar envergonhado, acontece com todo mundo.
O sorriso em seu rosto me acalmou um pouco.
-Mas mãe, - deixei o garfo de lado e continuei a falar - é diferente... não é igual às outras pessoas que eu fiquei. Ele é tímido, fala pouco, e tem os problemas dele... e apesar disso, eu sinto como se nunca tivesse visto ninguém tão bonito... e ele é o único que consegue me deixar sem palavras...
Tentei lembrar dos caras que eu já tinha ficado, algo que não foi muito legal, porque eu me considerei meio... bem... podemos dizer que nunca fui uma pessoa que quisesse compromisso. E ainda assim, de todos os que eu tinha ficado, eu nunca fui muito fã de tímidos. Mas com o Ângelo era diferente. Eu queria conquistá-lo, eu não queria ficar por ficar, eu queria mais que isso... na verdade, eu quero.
Me dei conta de que minha mãe não tirava os olhos de mim enquanto eu pensava, era como se ela conseguisse ver o que eu pensava...
-Marcelo, - finalmente ela começou - quando eu conheci o seu pai...
Por um instante percebi que ela não estava mais ali na sala, ela tinha voltado a 22 anos atrás.
-...ele era igual você. Ele nunca quis compromisso com as meninas, e eu gostava dele.
Ela juntou as mãos encima da mesa, olhando-as fixamente, novamente se perdendo no que sua memória continuava a reviver.
-Certo dia ele veio falar comigo, disse as mesmas palavras bonitas que ele dizia pra todas as meninas, e... pediu pra ficar comigo.
Seu rosto não estava muito feliz, mas não custava arriscar um palpite.
-E você disse que sim.
Ela mordeu os lábios e disse:
-Não Marcelo... eu disse que não.
Ok, isso era estranho. Se ela disse não, como é que eles me tiveram no fim das contas?
-Mas então...
-Eu vou terminar a história.
Me arrumei na cadeira e fiquei em silêncio, esperando que ela continuasse. Depois de um sorriso tímido, ela retomou o que estava dizendo:
-É claro que ele estava desacostumado a uma recusa, ele era lindo e todas as meninas sonhavam em ficar com ele. Obviamente eu não era exceção, mas eu não queria ficar com um galinha como ele, por isso recusei. Mas seu pai sempre foi bom no flerte, e não desistiu de mim por um bom tempo. Até que eu coloquei as cartas na mesa.
Sua voz tinha ficado um pouco mais triste nessa parte...
-Eu não aguentava aquela pressão, eu queria ficar com ele, mas ele certamente não gostava de mim da mesma forma, e eu não ia querer quebrar a cara.
Ela suspirou, era a primeira vez que ela me contava essa história, e não parecia ser o que eu imaginava de uma história de amor... De qualquer forma, ela continuou.
-Eu disse tudo isso pra ele. Disse que não ia ficar com ele porque ele não tinha compromisso nenhum, porque eu não confiava nele e porque no fim de tudo eu ia sair sofrendo feito uma idiota e sendo trocada por alguma outra mais bonita. A única resposta que ele me deu foi: Confie em mim, só uma vez, e eu nunca vou fazer você se arrepender da sua escolha.
Até eu fiquei emocionado com isso. O sorriso voltou ao seu rosto e ela estava absolutamente perdida em seus pensamentos.
-E eu confiei Marcelo. Eu confiei nele só uma vez, e só precisei de uma. Ele estava realmente apaixonado por mim, de verdade. Nós namoramos por dois anos, até um dia que ele me chamou pra um jantar romântico, pra comemorar nossos 2 anos de namoro. Foi quando ele me pediu em casamento.
Meu queixo quase caiu, quem diria... isso me deu algumas idéias, mas achei melhor deixar pra lá...
-E você aceitou?
-Sim, - sua expressão foi tão amorosa quanto a que ela deve ter feito no próprio dia - e foi a melhor decisão da minha vida. O resultado da nossa lua de mel está na minha frente agora.
Eu fiquei meio surpreso deles só terem “me feito” na lua de mel, mas pensando melhor, eles já deviam ter feito sexo antes, mas com preservativos... O que me lembrou da minha primeira vez, tinha sido com um outro espadachim lá da academia, enquanto os pais dele estavam fora. Tinha sido muito bom, mesmo que não fossemos tão íntimos quanto eu gostaria. Pensando bem, aquilo não teve muito amor... mas seria diferente com o Ângelo. Espera... eu to planejando sexo com o Ângelo?!
O barulho de alguém batendo na porta me tirou dessa linha de pensamento, ainda mais pelo fato de que provavelmente era o próprio Ângelo que estaria na porta. Minha mãe levantou pra atender enquanto eu levava os pratos pra pia. Quando o Ângelo entrou na cozinha eu não pude deixar de reparar melhor no corpo dele, e gostar do que vi. Seu olhar foi meio confuso e eu tentei tirar esses pensamentos da cabeça.
-Hum... você já está pronto pra ir?
Aparentemente ele estava um pouco cansado, sua voz fora arrastada, mas seu olhar era de felicidade e suspeita, algo que eu compreendi depois de eu ter olhado ele daquele jeito.
-Claro, vamos.
Eu falei com a minha mãe sobe o treino extra e ela concordou. Nós nos despedimos dela e saímos pelas ruas da cidade. Já era noite, e a lua estava brilhando num céu sem nuvens. Caminhamos por algum tempo sem se falar e eu notei que o rosto dele estava um pouco vermelho, o que eu presumi que fosse minha culpa.
-Ângelo, você tá bem?
Ele encarava o chão enquanto andava, o que fez com que eu não pudesse ver sua expressão na hora.
-Hum... claro, vai ser... legal, ter companhia.
Algo na voz dele dizia que ele estava nervoso demais pra estar tão bem quanto dizia.
-Ângelo, você é um péssimo mentiroso. - eu disse rindo um pouco, pra quebrar o clima pesado. O que deu certo, porque ele riu também.
-Você tem algum plano pra mim que eu não saiba?
Ouch, ele tinha notado o olhar nada discreto. É claro que eu tinha vários planos pra ele, ainda mais depois da conversa que tive, mas ele não precisava saber disso. Afinal, estávamos saindo no meio da noite e talvez ele ainda não tenha esquecido que me conhece a tão pouco tempo...
-Não tenho nenhum plano que você não saiba. - eu disse calmamente.
Tentei não sorrir, sempre menti exemplarmente, se é que posso dizer isso, mas mentir pra um mago que usa magia negra é um feito e tanto...
-Algo me diz que essa não é toda a verdade, mas às vezes o melhor é ser pego de surpresa.
O sorriso sem vergonha no rosto dele associado a essa frase me fez perder o ar e querer tomar alguma atitude. Eu o abracei por trás, envolvendo meus braços em volta da sua barriga e com meu queixo roçando a orelha dele. Caminhamos assim até estarmos já dentro da floresta e ele se virar e dizer do lado do meu pescoço:
-Se você é assim quando não tem nada planejado, então acho que vou ficar muito feliz quando eu fizer parte dos seus planos.
Ele parou, virou o corpo e pressionou seus lábios frios no meu pescoço, subindo até a minha boca, onde os meus lábios encontraram os dele. Nos beijamos por um breve momento, até que ele disse que ali não era seguro e que devíamos ir logo. Eu tive muita vontade de responder que ele que tinha começado, mas a sensação daquele frio gostoso no meu pescoço ainda não tinha passado e eu tinha gostado muito disso pra dizer que queria ter parado.
Continuamos andando até a caverna dele, onde mais uma vez ele precisou de magia pra conseguir ver algo. Quando finalmente estávamos na câmara dos cristais verdes ele libertou a magia negra. Eu saquei minhas espadas e deixei o fogo consumi-las. O Ângelo ficou observando minhas espadas com um olhar de tensão.
-O que foi?
Ele me olhou e eu vi um pouco de medo em seus olhos.
-Hum... nada, eu só não gosto muito de fogo...
Bem, era compreensível, ele era usuário de gelo, qualquer dano por fogo faria um mal muito grande a ele.
-Eu tomo uma distância maior, não se preocupe.
Minha voz foi calma, e o rosto dele dizia que tinha funcionado. Ele concordou e ficou do outro lado da sala.
Foi um treinamento diferente, porque apesar dos dois estarem concentrados, era óbvio que um nunca esquecia a presença do outro. O que era bom, porque nos dava força pra treinar com mais vontade.
Só paramos quando o Ângelo disse que faltavam 10 minutos pra meia-noite. Ambos estávamos suados.
-Marcelo, não chega perto de mim, não vou conseguir prender a magia negra por enquanto...
Ele estava com as mãos no quadril, arfando um pouco. Era estranho pensar em tanto cansaço quando ele só ficou parado. Mas eu lembrei de como era ficar um dia todo estudando numa biblioteca e aquilo devia ser semelhante... Caminhei em direção a ele, observando seu rosto.
-É a mesma coisa que dizer vem aqui?!
Eu comecei a rir, sentindo cada vez mais a força da magia negra. Agora, parado na frente do Ângelo eu podia ver o que eu ia perder se eu não passasse naquela prova. Acariciei seu rosto frio, ele me olhava com ternura enquanto colocava sua mão por cima da minha. Envolvi meus braços envolta de sua cintura e nos envolvemos em mais uma daquelas brigas de temperatura, onde meus lábios insistiam em aquecer os dele.
A terça e a quarta-feira passaram como um sonho, o sonho que precede o dia em que se acorda e vê o quão perto do fim pode estar a sua vida.

Não demoramos muito pra chegarmos à minha casa, minha mãe estava me esperando.
-Oi mãe. - eu disse alegremente ao chegar a casa.
-Oi, e você deve ser a pessoa com quem meu filho foi fazer nada, certo? Prazer Alessandra. - ela disse com um sorriso materno.
-Ah... prazer... Ângelo. - ele respondeu, bastante sem jeito.
-Vocês já almoçaram? - ela perguntou enquanto colocava uma carne na panela.
-Vamos almoçar na Beatriz. - eu respondi.
-Tudo bem então, não volte tarde.
Seu olhar foi de felicidade e advertência, o típico olhar que ela fazia quando eu saía pra qualquer lugar. Suspirei e disse:
-Te amo mãe. – eu disse, indo até ela.
-Também te amo querido, - ela me abraçou - tchau Ângelo.
-Até mais tarde. - ele respondeu cordialmente.
Pude notar que enquanto caminhávamos o Ângelo estava pensativo e por isso ele não estava falando muito. Resolvi tentar saber o que estava acontecendo.
-O que foi? Não está gostando do dia?
Ele me olhou meio incrédulo.
-Não, nossa, muito pelo contrário, é só que... - por um breve momento ele abaixou a cabeça e ficou pensativo - bem... não é muito comum eu ter dias assim, está sendo muito divertido, de verdade.
Achei que fosse uma boa hora pra quebrar a timidez.
-Neste caso você reconsidera o que você disse sobre viver ao lado de alguém pel...?
-Não, eu não reconsidero. - ele respondeu antes mesmo de eu terminar a pergunta.
Ele nem me deixou espaço pra argumentar!
-Por quê?
Meu rosto se transformou num misto de tristeza e dúvida.
-Porque eu não faria alguém que eu gosto sofrer. - ele respondeu, me encarando com seus intensos olhos azuis.
-Já pensou no fato de sua companhia superar o sofrimento? - eu tentei.
-Ainda causaria sofrimento.
Sua voz era implacável, como se já tivesse remoído esse pensamento várias vezes.
-Mas seria uma dor por algo bom. - eu admiti, tentando ser o mais convincente possível.
-Não vale à pena. - ele retrucou com ar triste.
-Isso não é você quem tem que decidir.
Ele abriu a boca pra falar algo, mas tornou a fechá-la, por um momento ele pensou no assunto e logo depois se pronunciou:
-Mas a parte de proporcionar dor ou não é e eu estou decidindo que não vou fazer ninguém sofrer.
Muito justo... sim, fui irônico.
-Exceto você?
Ele parou um pouco, me olhou e disse:
-É, exceto eu. – sua voz fora dura.
-Que justo.
Minha voz estava carregada pelo sarcasmo e por uma pontada de raiva.
-O resto do mundo acha. - ele disse calmamente.
-E quem se importa com o resto do mundo? - eu retruquei, minha voz estava quase saindo do volume normal...
-É altamente recomendável se importar, acredite.
Quanta hipocrisia!
-Engraçado, você se preocupa com o mundo, mas o mundo faz o mesmo por você?
Seu rosto se contorceu em dor, ele fechou os olhos e baixou um pouco a cabeça, respirou fundo e disse:
-Talvez seja melhor eu almoçar em casa...
A dor presente na sua voz foi como uma segunda facada na coxa, eu me senti muito mal por tê-lo magoado.
-Não, por favor... desculpe, eu só... acho muito injusto isso. - eu admiti.
-Marcelo, sempre foi assim e sempre será. Eu escolhi viver sozinho para não machucar ninguém, por que você não entende isso?
A pergunta mais parecia uma súplica. Seu rosto permanecia esculpido em tristeza e mágoa. Não pensei duas vezes, disse a verdade, ou o que eu achava que fosse...
-Porque ninguém foi feito pra viver sozinho. Porque a partir do momento que você veio falar comigo você desistiu da solidão, e agora é meio tarde Ângelo. Eu sempre gostei de você e o inverso também é verdade, e agora você quer jogar tudo isso fora pelo que o mundo vai pensar ou em como vou me sentir. Você já tem coisas demais pra pensar, pode deixar que com as minhas sensações eu me preocupo, e quando eu tiver que te dizer algo sobre elas eu direi, não precisarei que você pense mais nisso.
Posso dizer que ele permaneceu algum tempo sem palavras, quando finalmente respondeu, sua voz era um emaranhado de emoções.
-Você tem ideia do que está dizendo?
Não muita, na verdade... minha parte racional não estava muito ativa...
-Sim, eu tenho.
Ele sorriu. Isso era um: ok você venceu?
-Vamos para a casa da Carol antes que o bolo estrague.
É, isso respondia minha pergunta.
-Ok, ainda temos um longo dia. - respondi devolvendo o sorriso.
-É, temos... - ele disse pensativo, porém feliz.
O caminho até a casa da Carol foi silencioso, mas dessa vez ambos estavam com um sorriso no rosto, cada um por um motivo. Ao chegarmos à casa a mãe da Carol nos viu da janela e foi abrir a porta.
-Oh, Marcelo, que prazer vê-lo. - ela me recebeu animadamente.
-Olá, como a senhora está?
A mãe da Carol era uma maga. Seus cabelos cacheados e rubros iam até o ombro e ela era relativamente magra.
-Bem, e quem é o seu amigo? - ela perguntou olhando pro Ângelo.
-Ah, desculpe, esse é o Ângelo. - eu respondi com um aceno.
-Prazer, Madalena. - ela se apresentou fazendo uma leve curvatura dos joelhos.
-O prazer é meu. - ele respondeu fazendo um sinal de reverência bastante formal, colocando o braço direito a frente do corpo e virando o tronco pra frente.
-A Carol tá no quarto dela? - perguntei, tentando não pensar no porquê de tanta cordialidade da parte dos dois.
-Sim, podem subir. - ela disse abrindo a porta e nos dando passagem.
-Ok, isso é pra ela, foi minha mãe que fez. - e disse mostrando à ela o bolo.
-Que gracioso, mande lembranças a ela. - ela respondeu com um brando sorriso.
-Mandarei, vamos Ângelo?
Aparentemente eu o tirei de uma linha de pensamentos muito interessante, porque ele se assustou quando eu o chamei.
-Claro.
Subimos as escadas e encontramos a Carol, deitada na cama.
-Oi meninos. - ela disse com a voz um pouco baixa.
-Oi Carol, como você tá?
Meu tom de voz tinha ficado mais preocupado do que eu queria.
-Agora eu estou melhor, obrigado por vocês terem vindo. - ela respondeu sorrindo um pouco.
-Não há de que. - disse o Ângelo.
A Carol me lançou um olhar de "Ah, então você está saindo com o maguinho gelado", o qual eu revidei com um olhar de "Ahaaaammm". Ambos rimos.
-E depois sou eu que não preciso de voz para me comunicar. - ele disse fingindo um resmungo.
Dessa vez todos riram.
-Que dia você sai daí Carol? - perguntei ansiosamente.
-Ah Marcelo, me disseram que segunda eu já poderia ir pra academia, mas que teria que ir com calma. - ela respondeu com algum nojo na voz, como se estivesse imitando a voz do curandeiro que falara isso pra ela.
-Ok, tem um bolo lá embaixo te esperando. - eu disse e pisquei pra ela. Seu rosto se abriu num sorriso.
-E por que vocês deixaram o coitado lá embaixo? - ela disse usando uma voz de cortar o coração - Ele deve estar tão triste... sou a favor de trazê-lo pra cá.
-Tudo bem Carol, eu o trago para você. - disse o Ângelo.
Então ele fechou os olhos e disse:
-Levita.
Parecia que ele não tinha feito nada, mas alguns segundos depois nós vimos o bolo subindo as escadas...
-Nossa, que prático Ângelo. - eu disse admirado.
-Pois é, não quer ficar aqui em casa? - perguntou a Carol, olhando o bolo flutuando até nós - Minha mãe é péssima com levitação, quando alguém se esquece de levar a toalha pro banho é muito triste.
O rosto do Ângelo ficou um pouco vermelho, mas ele sorriu.
-Sinto-me um mordomo, contanto que ninguém me peça pra usar um vestidinho preto com babado, eu fico... fazer o quê?
Eu não aguentava mais rir, estar do lado do Ângelo e da Carol era a melhor coisa do mundo.
-Bem, Carol, aproveite seu bolo, eu e o Ângelo vamos almoçar na Beatriz. - eu disse e novamente pisquei pra ela.
-Ah, tudo bem então, divirtam-se.
Novamente recebi aquele olhar.
-Vamos nos divertir. - eu respondi com um sorriso no rosto.
-Que medo de vocês dois, vou descer. - ele disse rindo baixinho.
-Tudo bem Ângelo, também já tô descendo.
-Até segunda Carol. - eu disse
E a beijei no rosto.
-Bem, até mais Carol. - ele disse.
-Ângelo, você não vai se despedir direito de mim?
Ele se surpreendeu com a represália.
-Hum... estou indo.
Ele voltou e também a beijou no rosto.
-Praticamente um sorvete. - ela disse enquanto ele se afastava de seu rosto.
-Ah, você convive com um forno todo dia, mudar de ares às vezes é bom. - ele disse me lançando um olhar significativo.
-Obrigado Ângelo pela parte do forno. -respondi resmungando.
-De nada Marcelo, você sabe que eu te amo não é mesmo? - ele perguntou com um rosto de pura inocência.
-Sim. - respondi com um olhar sacana.
-Convencido. - ele disse com olhar sarcástico.
-Mas é verdade. - respondi como se aquilo fosse óbvio.
-Convencido. Tchau Carol. - ele disse, mandou um beijo pra ela no ar e começou a descer as escadas.
-É, tchau Carol. - despedi-me dela e lhe lancei um sorriso.
-Tchau meninos, se cuidem. - ela respondeu devolvendo o olhar.
Segui o Ângelo pelas escadas, nos despedimos da mãe da Carol e fomos em direção ao restaurante. Para minha surpresa quem começou a falar dessa vez não fui eu.
-O que fizeram com a Carol... isso sim foi injusto, como eles podem mandar pessoas para a Caverna das Sombras?
Ele estava encarando o chão, aparentemente pensativo, como sempre.
-Bem, pelo menos ninguém vai pra ele pra prova final, já que a Carol e o arqueiro mataram o chefe...
Uma coisa que eu aprendi era que sempre devemos ver o lado bom das coisas.
-Na verdade, não necessariamente, existe o intervalo de uma semana justamente para isso. Os clãs de monstros são rápidos na escolha de um novo chefe e uma semana é suficiente para que isso ocorra.
E isso quebrava a parte do lado bom das coisas...
-Isso quer dizer que alguém pode ir pra lá sozinho? - perguntei notavelmente assustado.
-Sim. - ele respondeu com certa dor na voz.
-Mas... se aconteceu aquilo com a Carol quando ela foi em dupla!
Agora eu concordava com ele, era absurdo mandarem alguém pra lá sozinho!
-É por isso que é injusto. O líder jolnir diz ser justo, mas esse sorteio não é justo, apenas escolhe quem vai e quem não vai morrer.
-É, mas o que podemos fazer? Migrar para a nação Delfos? Isso seria loucura.
-É, seria...
Por algum motivo ele estava perdido em pensamentos novamente.
-Você não pensa nisso não é mesmo? - perguntei, com certo medo da resposta.
-Hum, não, claro que não, eu tenho coisas que me prendem aqui.
Sua resposta não foi tão convincente.
-Por exemplo?
Seu rosto ficou vermelho de novo.
-Não quero responder isso.
Ele continuava a encarar o chão fielmente.
-Por quê?
-Porque tenho medo. - ele admitiu.
-Do que?
Ele ficou em silêncio por um tempo, como se estivesse avaliando a sua resposta.
-Tenho medo de te magoar, tenho medo de você descobrir que eu não sou uma pessoa legal. Tenho medo da minha escolha.
Deixei ele respirar um pouco antes de continuar, eu precisava ir com calma com ele.
-Qual foi a sua escolha?
Ele pensou um pouco, levantou a cabeça e me olhou. Seus profundos olhos azuis claros me deslumbraram por alguns segundos, até que ele respondeu:
-Ouvir meu coração...
Era bom conseguir fazer ele se abrir um pouco, a cada palavra eu sentia o peso saindo de suas costas.
-E o que ele disse? - perguntei calmamente.
-Diga “Olá” a ele. E foi isso que eu fiz. - ele respondeu com um sorriso tímido no rosto. Não sabia se devia ficar feliz ou triste.
-Você não quer estar comigo? - perguntei.
-Quero, mas é errado... - ele admitiu sem me olhar.
Aquilo me pegou desprevenido.
-Errado?
Ele ia responder quando olhou pra frente e viu o restaurante, pude ver seu suspiro de alívio.
-Já chegamos ao restaurante, podemos continuar essa conversa mais tarde?
Era óbvio que eu estava desnorteado, mas não dava pra continuar uma conversa como essa dentro de um restaurante.
-Claro...
Entramos no restaurante e sentamos numa mesa de canto, não demorou muito para sermos atendidos.
-Olá Marcelo e Ângelo, como estão? - perguntou a Beatriz, com um avental preso à cintura, um caderninho de pedidos na mão e um largo sorriso no rosto.
-Bem Beatriz, obrigado - respondeu o Ângelo.
-E você Marcelo?
Seu rosto era o de uma mulher cansada pelo trabalho, mas feliz por fazê-lo.
-Estou ótimo, o que temos pra almoçar hoje?
Ela abriu o seu caderninho e deu uma olhada rápida antes de me responder.
-Hoje estamos com o cardápio completo, podem escolher qualquer coisa.
-Que ótimo, então eu quero um cozido de salmão. - eu pedi.
-E você Ângelo?
-O de sempre. - ele respondeu com um sorriso no rosto.
-Tudo bem então, já peço pra alguém trazer. - ela disse e foi pra cozinha.
-Não sabia que você costumava comer aqui. - eu admiti.
-Eu não sou tão antissocial assim, você quase me ofende desse jeito.
O ruim do Ângelo é que às vezes não dava pra saber se ele estava sendo sarcástico ou se estava falando sério, apesar de a risadinha no canto da boca, como a que ele deu agora, ser sempre um indicativo do sarcasmo.
-Já decidiu o que vamos fazer depois? - perguntei esperançoso.
-Ainda não pensei nisso. - ele respondeu.
-Quando decidir avise.
-Tudo bem, acho que já tenho uma ideia.
Seu olhar estava longe, em algum lugar fora do meu alcance.
-Mesmo?
Achei estranho ele decidir repentinamente.
-Sim, será surpresa.
Um sorriso malvado brotou em seu rosto, o tipo de sorriso que eu esperava de mim, mas não dele. Normalmente ele não se expressava muito, no máximo um leve ar triste.
-Tudo bem. - respondi.
Ficamos algum tempo em silêncio, até que o garçom veio até nossa mesa.
-Senhores, seus pratos. - ele disse elegantemente.
-Muito obrigado, Fabrício.
O garçom era um guerreiro, e como todo guerreiro ele era bastante forte, tinha longos cabelos brancos presos numa trança fina jogada a frente de seus ombros.
-De nada Ângelo.
O olhar que o Ângelo deu a ele me deixou queimando de ciúmes, mas era besteira pensar nisso, gays não são tão fáceis de se achar assim. Tentei deixar isso pra lá e ver o que ele considerava “o de sempre”. Aparentemente era um peixe, mas não estava frito e parecia frio, além disso, tinha uma porção de arroz enrolado em uma planta.
-Você vai comer isso? - perguntei um pouco enojado.
-"Isso" é bom, você esperava que eu pedisse o que? Um cozido bem quente com pimenta? - ele perguntou sarcasticamente.
-Eu gosto. - respondi com um sorriso.
-Não ia me fazer muito bem. - ele disse enquanto colocava um daqueles bolinhos de arroz na boca.
-Ah não?
Ele fez um sinal pra que eu esperasse ele terminar o bolinho e respondeu:
-Comer coisas que esquentam não é uma boa idéia pra quem controla o gelo, você toma coisas geladas?
-Não gosto muito. - admiti.
-É que você não usa tanto o fogo, se usasse notaria a diferença que faz.
Sendo ele um mago, faria muito mais diferença pra ele que pra mim.
-Entendi.
Nós dois estávamos com fome então o almoço foi silencioso porque ninguém ia parar de comer pra falar. Quando acabamos cada um pagou o seu almoço, e paramos na frente do restaurante.
-Ângelo, pra onde?
Minha curiosidade estava quase visível.
-Siga-me.
Ele estava indo em direção ao portão Sul, ao lado do portão de transporte. Aquela era a conexão mais poderosa entre Jolnir e Delfos, quem passasse por ele estaria na nação do Delfos, por isso ele era bloqueado o tempo todo, só podendo ser usado no dia da formatura pelos líderes e pelos formandos que trocam de nação.
-O lugar que você está indo é fora da cidade? – perguntei um pouco receoso.
-Sim, é.
Ele respondeu muito feliz, como se estivesse me levando pro mundo da fantasia ou algo do tipo.
-Não é perigoso?
-Por que eu te levaria para um lugar perigoso? - sua expressão de felicidade se abrandou e sua voz veio carregada de um pouco de raiva, era difícil vê-lo nervoso.
Eu não respondi, realmente não havia um porquê de ele fazer isso. Andamos um pouco passando por algumas árvores até chegar à entrada de uma caverna.
-Bem, é aqui. - ele disse apontando para a caverna.
-Ok. - respondi, meio apreensivo, devo admitir.
Entramos na caverna e ela era meio escura.
-Luz. - evocou o Ângelo.
Um feixe de luz apareceu entre as mãos do Ângelo.
-Só o começo é escuro, não se preocupe. - ele disse me encarando com olhos um pouco mais sombrios, devido à falta de claridade.
Continuei andando, seguindo a luz que ele havia feito, enquanto que ele parecia estar completamente à vontade.
-Você vem muito aqui? - perguntei enquanto me desviava de umas pedras soltas no chão.
-Este é o meu refúgio do mundo, aqui eu fico em paz, eu sou eu mesmo e posso treinar sem olhares tortos. - ele respondeu contente, seu bom humor transbordava naquele lugar. Ele continuou:
-Não que eu vá relaxar hoje, porque você está aqui, então não vou deixar a magia negra livre, mas ainda assim aqui é muito bom de estar.
-Pode ficar a vontade. - respondi sem tentar pensar no efeito da aura dele.
Eu sabia que seria ruim, mas era melhor eu me acostumar.
-Hoje não. – ele disse firmemente.
Continuamos andando até chegar num lugar com muitos cristais verdes nas paredes e era muito claro. Havia uma abertura superior nessa parte da caverna que estava tapada por um bloco de gelo.
-Hum... quando chovia ficava úmido demais, então eu dei um jeito de a água não entrar mais. - ele se explicou olhando pro bloco de gelo.
-Isso é muito bonito. - eu admiti.
Os cristais refletiam a luz dando ao lugar uma atmosfera de vegetação, apesar de não haver nenhuma planta ali.
-Agora você conhece meu lugar especial. - ele disse, deixando a magia de luz de lado.
-Ninguém conhece esse lugar?
Era estranho pensar que um lugar como esse não vivia cheio de pessoas, era assustadoramente lindo.
-Se conhece nunca veio aqui enquanto eu estava e eu fico aqui um bom tempo. - ele disse enquanto passava a mão em alguns cristais.
-Como você descobriu?
Ele suspirou, como quem faz antes de contar uma longa história, pude ver seus olhos voltando no tempo enquanto ele se recordava sobre a descoberta.
-Eu tinha que treinar magia em algum lugar, por isso saí pela floresta procurando até achar esta caverna e ela foi a solução perfeita.
Ele relaxou os ombros e só então percebi que ele costumava andar de forma tensa, apesar de parecer sonhador era difícil vê-lo relaxado como ele estava agora.
- Aliás, por que você não flutua?
Essa era uma dúvida que eu tinha a muito tempo e nunca lembrei-me dela.
-Bem, por vários motivos: porque é gasto à toa de magia, afinal as pernas foram feitas para isso, porque ao contrário dos outros eu não vejo andar como algo inferior, mas sim como normal, e por fim porque sempre que eu uso magia tenho que controlar a magia negra mais rigidamente, então eu prefiro não ficar usando a toda hora.
Talvez esse fosse o motivo por ele andar tão tenso, ele tinha que controlar a magia negra.
-Entendi. – respondi, processando as informações.
-Também quero tirar uma dúvida.
Sua voz foi animada e ele aprecia prestes a contar que acabara de visitar uma enorme loja de doces. Era uma coisa engraçada nele, quando ele realmente ficava feliz, no fundo, parecia que ele era uma criança, talvez a criança que ele nunca fora.
-Diga. - respondi calmamente o observando com um sorriso no rosto.
-Você ficava na frente da casa de poções só para me ver? - ele perguntou com um sorriso bobo no rosto.
-Não, eu ia mais cedo pra te ver, mas eu ficava lá esperando a Carol. - respondi e pisquei pra ele.
-Ah...
Ele parou de me encarar e começou a andar tocando os cristais da parede. Olhando por esse ângulo ele era muito... encantador, pra não dizer outra coisa.
-Você é bonito sabia? - eu disse.
Apesar da intensa luz verde do local, nem isso conseguiu esconder a vermelhidão do rosto dele.
-Obrigado, você também. - ele respondeu sem me encarar.
Eu sentei no chão, ele veio até mim e fez o mesmo, então eu fui pra mais perto dele. Ele não se mexeu. Eu peguei na mão dele, e ele continuou imóvel.
-Ângelo?
-Sim?
Sua voz parecia trêmula e seu rosto estava indecifrável.
-Por que é errado estar comigo?
Ele abaixou a cabeça, respirou fundo e disse:
-Porque eu tenho cada vez mais certeza de que gosto de verdade de você.
Eu senti um alívio no peito, mas ao mesmo tempo um aperto.
-Gostar de mim não deve ser tão ruim, eu sou bonito.
Ele sorriu.
-Eu, naturalmente, sou uma pessoa que faz os outros sofrerem. Eu não quero te fazer sofrer Marcelo.
Não parecia que ele estava me contando isso, parecia que ele estava me pedindo...
-Ângelo.
-Sim?
-Olhe pra mim.
Ele permaneceu quieto por um momento, mas então levantou a cabeça e me olhou, seus olhos azuis claros estavam agora com um tom esverdeado.
-Relaxe. - eu disse.
Seu rosto ficou sombreado pela dor.
-Não posso...
-Por favor. – eu supliquei.
Ele suspirou, ficou alguns segundos parado, mas então relaxou. Seu cabelo adquiriu as mechas negras assim como seus olhos ficaram mais escuros. A aura negra se juntou à azul clara, e a sensação de medo e perda de calor veio novamente, mas eu estava preparado, respirei fundo, e olhei pra ele.
-Está tudo bem comigo.
Não era bem uma verdade, mas não era tão ruim como ele fazia parecer.
-Marcelo, você não pode fazer isso...
Suas mãos estavam mais quentes, dividir a magia entre o gelo e a escuridão o fazia ficar quase numa temperatura normal... eu disse quase.
-Não só posso como estou fazendo.
Cheguei mais perto dele, senti o frio emanando do seu corpo. A distância entre nossos rostos foi diminuindo, pude sentir seu hálito frio se aproximando, a maciez da sua pele contra minhas mãos. Eu o beijei.
-Eu não vou ficar longe de você Ângelo, independente do que aconteça.
Seu rosto deixou os tons de dor, tristeza e incerteza e se iluminou num sorriso que seria capaz de desarmar um exército inteiro. Dessa vez foi ele que tomou a iniciativa e me beijou, com mais vontade, como se ele finalmente estivesse quebrando as correntes que ele tinha se dado, ele me envolveu num abraço que eu esperava que fosse gélido, mas não era... era quente, era doce, e era diferente de tudo que eu já tinha experimentado antes. Tinha sentimento, eu podia sentir, ele realmente gostava de mim e eu gostava dele. Ficamos ali sentados, conversando em sussurros, como se contássemos segredos. Não me lembro de um momento que nós não se tocávamos de alguma forma, seja eu abraçado a ele, seja quando eu segurava sua mão. Passamos a tarde nos conhecendo melhor. De uma forma inocente, já que o Ângelo era absurdamente tímido. Porém, tudo precisa acabar uma hora.
-Ângelo, acho que precisamos ir.
Novamente parecia que eu o tinha tirado do seu pequeno mundo de sonhos, só que dessa vez eu acreditava mesmo que ele estivesse sonhando, afinal, até eu sonhei com isso.
-É, acho que sim. – ele respondeu, um pouco triste.
-Tudo bem, vou te deixar em casa. - eu disse e comecei a me levantar.
-Sua casa fica mais próxima ao portão Sul, eu te deixo em casa.
Sua voz tinha sido firme, diferente da voz baixa e insegura que ele normalmente tinha.
-Já que você pediu com tanto carinho... - eu disse rindo.
Ele piscou pra mim. Era muito raro ver o Ângelo tomando iniciativa, por isso era bom deixá-lo quando ele o fazia. Caminhamos de volta até que ele me deixou em casa, me deu um beijo na bochecha, me desejou boa noite e foi pra casa. Enquanto eu fui pra cama, já era noite e foi um dia bem longo, e muito bom.
-Marcelo, você vai comer algo? - ouvi minha mãe perguntando, provavelmente da cozinha.
-Não, mãe, vou dormir. - respondi.
-Tudo bem querido, boa noite. - ela disse com um ar carregado com um suspiro, ou talvez tenha sido impressão minha...
-Boa noite.
E mais uma vez o sono veio devagar, e trouxe com ele um sonho, um sonho com olhos azuis claros.

Quando acordei sabia exatamente o que fazer, levantei e fui ao banheiro, tomei banho, escovei os dentes, me troquei e fui tomar café da manhã.
-Bom dia meu querido. - disse minha mãe alegremente.
O bom humor dela era contagiante.
-Muito bom dia.
Ela me olhou com um olhar de suspeita.
-Você está bastante animadinho, algo especial hoje?
Meus planos foram passando pela minha mente como um filme.
-Não, nada.
Falei isso segurando a risada, sempre fui um ótimo mentiroso, mas dessa vez não deu certo.
-Ok, divirta-se fazendo nada hoje. - ela respondeu rindo.
-Obrigado mãe, te amo.
Terminei o café, dei-lhe um beijo no rosto e fui à casa de armaduras, pra verificar o estado do meu traje. Os arqueiros e espadachins usavam armaduras feitas de um tecido sintético que era resistente e não era muito pesado, enquanto que os guerreiros usavam grandes armaduras metálicas e os magos usavam uma armadura feita de um tecido extremamente leve e fino, mas que era fortalecido magicamente. Todos os equipamentos eram feitos a partir de matérias-primas obtidas de monstros, em calabouços ou até mesmo em jazidas.
-Bom dia Sr. Armando.
O senhor Armando era um mago um pouco gordo, já de certa idade e com cabelos e olhos roxos.
-Bom dia Marcelo, veio dar uma olhada na armadura ou quer comprar uma nova?
Como vendedor, obviamente ele iria preferir que eu comprasse uma nova, por isso ele sempre me dava essa opção.
-Hoje só quero dar um olhada nessa mesmo.
Ele fez a cara de decepção de sempre, quase imperceptível.
-Muito bem, vamos lá para dentro. – ele disse sorrindo.
Ele ficou fazendo os testes de sempre e disse que estava tudo bem, que só precisaria concertar o furo que havia na perna, algo que ele não demorou nem 5 minutos para arrumar.
-Muito obrigado.
Paguei o preço pelo reparo.
-De nada meu filho, volte sempre.
Hora de ir pra casa do Ângelo. Segui o endereço que ele havia me passado até chegar a uma casa cinza, um pouco velha, mas que tinha muitas plantas. Atravessei o jardim e bati na porta, uma mulher muito bonita, me atendeu, tinha olhos e cabelos verdes claros e pela sua altura devia ser uma arqueira.
-Olá, posso ajudá-lo?
Sua voz era doce mas ela agia de forma esguia, como se suspeitasse de algo em mim.
-Sim, posso falar com o Ângelo?
Ela me avaliou por um momento, mas com alguma ternura no olhar.
-Claro, já vou chamá-lo, qual é seu nome?
Eu realmente sentia como se ela estivesse me avaliando de alguma forma... o que era meio absurdo de pensar, mas...
-Marcelo. – respondi, um pouco mais tarde do que gostaria, eu não tinha porque demorar pra responder meu nome, mas por algum motivo sua forma de agir defensiva me intrigava.
-Tudo bem Marcelo, prazer em conhecê-lo então, sou Tânia. - ela disse com um sorriso, o qual eu retribui. Foi como um “Ok, você passou no teste”.
-O prazer é todo meu.
Ela entrou na casa deixando a porta entreaberta. Depois de alguns instantes a porta se abriu novamente e dessa vez apareceu um mago de pele clara, olhos e cabelos azuis claros e um sorriso no rosto.
-Bom dia. - ele disse, com a mesma expressão de estar perdido em pensamentos de sempre.
-Bom dia, é sua mãe?
Minha pergunta aparentemente tinha pego todo sua atenção, ele parecia inseguro.
-Sim, é sim.
Talvez eu já saiba de quem ele herdou o jeito estranho de agir...
-Ela é muito legal. - eu disse com um sorriso no rosto. Não era bem uma mentira, mas ela me deu um pouco de medo também.
-Sim, ela é. - ele respondeu, perdido em pensamentos novamente.
-Você tá ocupado hoje Ângelo?
A pergunta aparentemente o assustou.
-Não...
Ele me olhava com aquele rosto indecifrável.
-Então, posso te roubar por um dia? - perguntei com um sorriso atrevido.
Não sei se a expressão dele era de vergonha, alegria ou confusão. Vou dizer que era um misto dos três.
-Hum... acho que você tem esse direito, vou verificar com meus superiores. - ele respondeu com um sorriso tímido no rosto e voltou pra dentro da casa.
Pra um simples pedido de dar uma saída por um dia, até que ele demorou lá dentro...
-Desculpe a demora, - ele disse assim que voltou. – bem, posso sim, aonde vamos?
Dizer que parecia que eu tinha dado um presente a ele não seria exagero, ele pareceu bastante contente. Fico pensando se a alegria é por ter uma amizade, se é pelo passeio ou por mim. De qualquer jeito, deixei meus pensamentos e o respondi:
-Podemos ir à praça, depois almoço num restaurante e aí eu deixo você escolher pra onde quer ir.
-Quanta coisa, - ele começou a rir - mas aceito sim.
A praça não ficava muito longe da casa dele e como era sábado haveria várias pessoas lá, talvez tivéssemos a sorte de ver um mago fazendo magias bonitas.
Assim que chegamos à praça procuramos um banco pra sentar, e pra meu azar não tinha mago nenhum fazendo coisas legais aqui hoje.
-Poxa, que triste, achei que hoje tivesse algum mago aqui fazendo magias de exibição.
-É verdade, não vejo nenhum mago aqui hoje.
Não sei definir o olhar dele daquele momento, era quase como se ele estivesse ofendido e bem humorado ao mesmo tempo.
-Ah, você não conta, Ângelo.
Agora sim ele tinha um olhar de ofendido, o qual me fez rir.
-E por que não? – ele disse, colocando as mãos na cintura.
-Porque você não sabe fazer as coisas legais.
Ele ergueu uma sobrancelha, algo que eu sempre quis fazer e nunca consegui, e disse:
-Ah é? Observe.
Ele se levantou e andou até o meio da praça, parou e fechou os olhos. Sua aura azulada começou a se intensificar. De repente ele estava se movimentando como se estivesse dançando, e a temperatura começou a baixar. Começaram a surgir pequenos cristais em volta dele, acompanhando os movimentos das suas mãos. Como ele estava usando magia de gelo, seus movimentos eram leves e serenos, diferentemente da magia da terra que usava movimentos bruscos, ou a magia do fogo que usava movimentos de fúria. Os cristais começaram a se juntar, e a tomarem uma forma, até que ele parou de dançar. Ao seu lado agora existia um anjo, feito de gelo, e era lindo.
-Nossa... isso é... encantador. - eu disse admirado.
-Muito obrigado. - ele respondeu com uma voz baixa que só alguém muito tímido consegue fazer.
As pessoas que estavam assistindo, começaram a aplaudi-lo.
-Obrigado a todos... - ele disse, com o rosto vermelho.
Era óbvio que ele não estava acostumado àquilo, mas aparentemente fez-lhe muito bem. Em seguida ele voltou a sentar no banco, ao meu lado.
-Espero que isso tenha sido legal pra você... - ele disse com um sorriso bem largo no rosto.
-Ok, você já recebeu aplausos e tá até convencido, será que terei mais surpresas hoje?
Ambos rimos, era divertido esquecer a prova e o treinamento por algum tempo.
-Oi, você sabe fazer mais alguma coisa? Minhas filhas adoraram.
Era uma moça com duas crianças que pareciam extasiadas com tudo que aconteceu.
-Hum... eu posso tentar. - ele disse meio surpreso.
-Se não for muito incômodo, eu ficaria muito agradecida.
A abordagem da moça pareceu deixá-lo realmente muito assustado, o que me pareceu meio estranho.
-Não, não tem problema, - ele respondeu. – posso fazer sim.
Ele me lançou um olhar de ternura, se levantou e voltou para o meio da praça enquanto a mulher sentou ao meu lado e as crianças sentaram no chão.
-Ele é seu amigo não é? - ela me perguntara.
Fiquei tentando a dizer “Defina amizade.”, mas ao meu ver nós éramos.
-Sim, é.
Ela desviou sua atenção pro Ângelo, acariciando a cabeça das duas filhas.
-Deve ser fantástico conhecer alguém tão talentoso. – ela disse encantada.
-É, é sim. - respondi pensativo.
Desta vez ele demorou mais pra se mexer, sua aura estava um pouco maior, mas enfim ele estava fazendo os mesmos movimentos, porém dessa vez não surgiram cristais e sim uma névoa azulada que seguia fielmente suas mãos. Ele começou a rodopiar fazendo com que a névoa se transformasse num fio muito comprido que refletia a luz, era uma cena fantástica, até que o fio foi se enrolando nele e ele começou a congelar. Fiquei em choque, será que algo havia dado errado? Por que ele aceitou fazer se não tinha total controle sobre a magia? Agora, em seu lugar havia uma estátua de gelo... dele... Levantei-me e comecei a ir em sua direção, mas uma voz sussurrou em meu ouvido.
-Acalme-se, está tudo bem.
Olhei pra trás e não havia ninguém, voltei a olhar pro estátua de gelo e ela começou a emitir um brilho fraco e depois começou a se movimentar assim como Ângelo havia feito da primeira vez e novamente os cristais de gelo surgiram acompanhando os movimentos da sua mão formando outra estátua de gelo, novamente com a aparência do Ângelo. A primeira estátua ficou parada e seu brilho começou a diminuir enquanto que o mesmo brilhou começou a surgir na outra estátua. A segunda estátua começou a rodopiar e um fio começou a se formar em volta dela. A estátua começou a ficar menos transparente e mais branca, até que eu estava olhando novamente pro Ângelo rodopiando o seu fio comprido, e ao seu lado a estátua de gelo com sua imagem. Por fim, ele parou de rodar, estendeu os braços e o fio se estendeu fazendo um fino bloco de gelo envolta de si e de sua estátua. Ele olhou pra mim, sorriu e começou a andar em minha direção. Eu ia avisar que ele ia bater no globo de gelo, mas ele simplesmente o atravessou como se ele não existisse, assim como o globo permaneceu intacto, como se ele nunca tivesse o atravessado.
-Marcelo, eu ficaria feliz se você respirasse.
Olhando mais de perto ele estava meio ofegante e uma gota de suor escorreu da sua testa.
-Nossa... o que foi isso? - perguntei ainda surpreso.
-Hum... acho que você não gostou, né? - ele perguntou meio chateado.
Eu... eu não sei se gostei, eu... poxa, o que ele fez?!
-Eu fiquei preocupado. - admiti.
-Eu disse que estava tudo bem. – ele disse emburrado.
As crianças que estavam com a moça começaram a aplaudir. Em resposta foram surgindo aplausos de todos os cantos da praça, alguns começaram até a assobiar!
-Parabéns senhor mago. - eu disse contente.
-Obrigado, senhor espadachim. - ele respondeu com o rosto coberto pela vermelhidão.
-Isso foi maravilhoso! - disse a moça. - Muito obrigada.
-Não há de quê. - ele respondeu, claramente encabulado.
-Ok, agora já chega de você dar atenção aos outros, sou possessivo.
Ele começou a rir muito.
-Tudo bem, prometo ficar sentadinho aqui. – ele disse, se referindo ao banco onde estávamos antes.
-Bem melhor. - eu disse com um sorriso perverso no rosto.
Ele arqueou a sobrancelha.
-Devo comprar uma coleira também?
Comecei a rir, me recompus antes de continuar.
-Ah não, é muito caro, você não vai fugir, vai?
Ele pensou um pouco sobre o assunto, logo depois me encarou.
-Vou pensar no seu caso. - ele respondeu com um sorriso diferente, quase sexy. Quase...
-Você não fugiria de mim. – eu disse sorrindo.
Ele me olhou surpreso.
-Como pode ter tanta certeza?
Ora, que pergunta boba.
-Porque sou eu. - respondi como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Ele abriu a boca, mas logo depois a fechou sem emitir um único som.
-Nossa... vou me abster de fazer comentários.
Ele deu uma risada tímida, aliás, não só a risada, ele parecia ser muito tímido, e isso tinha que ser contornado.
-Você já tá com fome?
Eu acordei um pouco tarde, então agora já estava perto da hora do almoço.
-Devo admitir que usar magia me abriu o apetite, onde você quer comer?
Isso era algo que eu não tinha pensado ainda, assim como havia esquecido completamente que precisava pegar o bolo que minha mãe fez pra levar pra Carol.
-Bem, podemos almoçar no restaurante da Beatriz, é perto da minha casa, preciso pegar um bolo com minha mãe pra levar pra Carol.
Eu mencionar a Carol despertou sua atenção.
-Ela está bem?
Ele pareceu tão preocupado quanto os demais que souberam que ela foi pra Caverna das Sombras.
-Ela está se recuperando. - respondi tentando forçar um sorriso.
-Ah... bem, vamos então. – ele respondeu, não muito animado com aquilo.
-Sim, vamos.

Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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