Não demoramos muito pra chegarmos à minha casa, minha mãe estava me esperando.
-Oi mãe. - eu disse alegremente ao chegar a casa.
-Oi, e você deve ser a pessoa com quem meu filho foi fazer nada, certo? Prazer Alessandra. - ela disse com um sorriso materno.
-Ah... prazer... Ângelo. - ele respondeu, bastante sem jeito.
-Vocês já almoçaram? - ela perguntou enquanto colocava uma carne na panela.
-Vamos almoçar na Beatriz. - eu respondi.
-Tudo bem então, não volte tarde.
Seu olhar foi de felicidade e advertência, o típico olhar que ela fazia quando eu saía pra qualquer lugar. Suspirei e disse:
-Te amo mãe. – eu disse, indo até ela.
-Também te amo querido, - ela me abraçou - tchau Ângelo.
-Até mais tarde. - ele respondeu cordialmente.
Pude notar que enquanto caminhávamos o Ângelo estava pensativo e por isso ele não estava falando muito. Resolvi tentar saber o que estava acontecendo.
-O que foi? Não está gostando do dia?
Ele me olhou meio incrédulo.
-Não, nossa, muito pelo contrário, é só que... - por um breve momento ele abaixou a cabeça e ficou pensativo - bem... não é muito comum eu ter dias assim, está sendo muito divertido, de verdade.
Achei que fosse uma boa hora pra quebrar a timidez.
-Neste caso você reconsidera o que você disse sobre viver ao lado de alguém pel...?
-Não, eu não reconsidero. - ele respondeu antes mesmo de eu terminar a pergunta.
Ele nem me deixou espaço pra argumentar!
-Por quê?
Meu rosto se transformou num misto de tristeza e dúvida.
-Porque eu não faria alguém que eu gosto sofrer. - ele respondeu, me encarando com seus intensos olhos azuis.
-Já pensou no fato de sua companhia superar o sofrimento? - eu tentei.
-Ainda causaria sofrimento.
Sua voz era implacável, como se já tivesse remoído esse pensamento várias vezes.
-Mas seria uma dor por algo bom. - eu admiti, tentando ser o mais convincente possível.
-Não vale à pena. - ele retrucou com ar triste.
-Isso não é você quem tem que decidir.
Ele abriu a boca pra falar algo, mas tornou a fechá-la, por um momento ele pensou no assunto e logo depois se pronunciou:
-Mas a parte de proporcionar dor ou não é e eu estou decidindo que não vou fazer ninguém sofrer.
Muito justo... sim, fui irônico.
-Exceto você?
Ele parou um pouco, me olhou e disse:
-É, exceto eu. – sua voz fora dura.
-Que justo.
Minha voz estava carregada pelo sarcasmo e por uma pontada de raiva.
-O resto do mundo acha. - ele disse calmamente.
-E quem se importa com o resto do mundo? - eu retruquei, minha voz estava quase saindo do volume normal...
-É altamente recomendável se importar, acredite.
Quanta hipocrisia!
-Engraçado, você se preocupa com o mundo, mas o mundo faz o mesmo por você?
Seu rosto se contorceu em dor, ele fechou os olhos e baixou um pouco a cabeça, respirou fundo e disse:
-Talvez seja melhor eu almoçar em casa...
A dor presente na sua voz foi como uma segunda facada na coxa, eu me senti muito mal por tê-lo magoado.
-Não, por favor... desculpe, eu só... acho muito injusto isso. - eu admiti.
-Marcelo, sempre foi assim e sempre será. Eu escolhi viver sozinho para não machucar ninguém, por que você não entende isso?
A pergunta mais parecia uma súplica. Seu rosto permanecia esculpido em tristeza e mágoa. Não pensei duas vezes, disse a verdade, ou o que eu achava que fosse...
-Porque ninguém foi feito pra viver sozinho. Porque a partir do momento que você veio falar comigo você desistiu da solidão, e agora é meio tarde Ângelo. Eu sempre gostei de você e o inverso também é verdade, e agora você quer jogar tudo isso fora pelo que o mundo vai pensar ou em como vou me sentir. Você já tem coisas demais pra pensar, pode deixar que com as minhas sensações eu me preocupo, e quando eu tiver que te dizer algo sobre elas eu direi, não precisarei que você pense mais nisso.
Posso dizer que ele permaneceu algum tempo sem palavras, quando finalmente respondeu, sua voz era um emaranhado de emoções.
-Você tem ideia do que está dizendo?
Não muita, na verdade... minha parte racional não estava muito ativa...
-Sim, eu tenho.
Ele sorriu. Isso era um: ok você venceu?
-Vamos para a casa da Carol antes que o bolo estrague.
É, isso respondia minha pergunta.
-Ok, ainda temos um longo dia. - respondi devolvendo o sorriso.
-É, temos... - ele disse pensativo, porém feliz.
O caminho até a casa da Carol foi silencioso, mas dessa vez ambos estavam com um sorriso no rosto, cada um por um motivo. Ao chegarmos à casa a mãe da Carol nos viu da janela e foi abrir a porta.
-Oh, Marcelo, que prazer vê-lo. - ela me recebeu animadamente.
-Olá, como a senhora está?
A mãe da Carol era uma maga. Seus cabelos cacheados e rubros iam até o ombro e ela era relativamente magra.
-Bem, e quem é o seu amigo? - ela perguntou olhando pro Ângelo.
-Ah, desculpe, esse é o Ângelo. - eu respondi com um aceno.
-Prazer, Madalena. - ela se apresentou fazendo uma leve curvatura dos joelhos.
-O prazer é meu. - ele respondeu fazendo um sinal de reverência bastante formal, colocando o braço direito a frente do corpo e virando o tronco pra frente.
-A Carol tá no quarto dela? - perguntei, tentando não pensar no porquê de tanta cordialidade da parte dos dois.
-Sim, podem subir. - ela disse abrindo a porta e nos dando passagem.
-Ok, isso é pra ela, foi minha mãe que fez. - e disse mostrando à ela o bolo.
-Que gracioso, mande lembranças a ela. - ela respondeu com um brando sorriso.
-Mandarei, vamos Ângelo?
Aparentemente eu o tirei de uma linha de pensamentos muito interessante, porque ele se assustou quando eu o chamei.
-Claro.
Subimos as escadas e encontramos a Carol, deitada na cama.
-Oi meninos. - ela disse com a voz um pouco baixa.
-Oi Carol, como você tá?
Meu tom de voz tinha ficado mais preocupado do que eu queria.
-Agora eu estou melhor, obrigado por vocês terem vindo. - ela respondeu sorrindo um pouco.
-Não há de que. - disse o Ângelo.
A Carol me lançou um olhar de "Ah, então você está saindo com o maguinho gelado", o qual eu revidei com um olhar de "Ahaaaammm". Ambos rimos.
-E depois sou eu que não preciso de voz para me comunicar. - ele disse fingindo um resmungo.
Dessa vez todos riram.
-Que dia você sai daí Carol? - perguntei ansiosamente.
-Ah Marcelo, me disseram que segunda eu já poderia ir pra academia, mas que teria que ir com calma. - ela respondeu com algum nojo na voz, como se estivesse imitando a voz do curandeiro que falara isso pra ela.
-Ok, tem um bolo lá embaixo te esperando. - eu disse e pisquei pra ela. Seu rosto se abriu num sorriso.
-E por que vocês deixaram o coitado lá embaixo? - ela disse usando uma voz de cortar o coração - Ele deve estar tão triste... sou a favor de trazê-lo pra cá.
-Tudo bem Carol, eu o trago para você. - disse o Ângelo.
Então ele fechou os olhos e disse:
-Levita.
Parecia que ele não tinha feito nada, mas alguns segundos depois nós vimos o bolo subindo as escadas...
-Nossa, que prático Ângelo. - eu disse admirado.
-Pois é, não quer ficar aqui em casa? - perguntou a Carol, olhando o bolo flutuando até nós - Minha mãe é péssima com levitação, quando alguém se esquece de levar a toalha pro banho é muito triste.
O rosto do Ângelo ficou um pouco vermelho, mas ele sorriu.
-Sinto-me um mordomo, contanto que ninguém me peça pra usar um vestidinho preto com babado, eu fico... fazer o quê?
Eu não aguentava mais rir, estar do lado do Ângelo e da Carol era a melhor coisa do mundo.
-Bem, Carol, aproveite seu bolo, eu e o Ângelo vamos almoçar na Beatriz. - eu disse e novamente pisquei pra ela.
-Ah, tudo bem então, divirtam-se.
Novamente recebi aquele olhar.
-Vamos nos divertir. - eu respondi com um sorriso no rosto.
-Que medo de vocês dois, vou descer. - ele disse rindo baixinho.
-Tudo bem Ângelo, também já tô descendo.
-Até segunda Carol. - eu disse
E a beijei no rosto.
-Bem, até mais Carol. - ele disse.
-Ângelo, você não vai se despedir direito de mim?
Ele se surpreendeu com a represália.
-Hum... estou indo.
Ele voltou e também a beijou no rosto.
-Praticamente um sorvete. - ela disse enquanto ele se afastava de seu rosto.
-Ah, você convive com um forno todo dia, mudar de ares às vezes é bom. - ele disse me lançando um olhar significativo.
-Obrigado Ângelo pela parte do forno. -respondi resmungando.
-De nada Marcelo, você sabe que eu te amo não é mesmo? - ele perguntou com um rosto de pura inocência.
-Sim. - respondi com um olhar sacana.
-Convencido. - ele disse com olhar sarcástico.
-Mas é verdade. - respondi como se aquilo fosse óbvio.
-Convencido. Tchau Carol. - ele disse, mandou um beijo pra ela no ar e começou a descer as escadas.
-É, tchau Carol. - despedi-me dela e lhe lancei um sorriso.
-Tchau meninos, se cuidem. - ela respondeu devolvendo o olhar.
Segui o Ângelo pelas escadas, nos despedimos da mãe da Carol e fomos em direção ao restaurante. Para minha surpresa quem começou a falar dessa vez não fui eu.
-O que fizeram com a Carol... isso sim foi injusto, como eles podem mandar pessoas para a Caverna das Sombras?
Ele estava encarando o chão, aparentemente pensativo, como sempre.
-Bem, pelo menos ninguém vai pra ele pra prova final, já que a Carol e o arqueiro mataram o chefe...
Uma coisa que eu aprendi era que sempre devemos ver o lado bom das coisas.
-Na verdade, não necessariamente, existe o intervalo de uma semana justamente para isso. Os clãs de monstros são rápidos na escolha de um novo chefe e uma semana é suficiente para que isso ocorra.
E isso quebrava a parte do lado bom das coisas...
-Isso quer dizer que alguém pode ir pra lá sozinho? - perguntei notavelmente assustado.
-Sim. - ele respondeu com certa dor na voz.
-Mas... se aconteceu aquilo com a Carol quando ela foi em dupla!
Agora eu concordava com ele, era absurdo mandarem alguém pra lá sozinho!
-É por isso que é injusto. O líder jolnir diz ser justo, mas esse sorteio não é justo, apenas escolhe quem vai e quem não vai morrer.
-É, mas o que podemos fazer? Migrar para a nação Delfos? Isso seria loucura.
-É, seria...
Por algum motivo ele estava perdido em pensamentos novamente.
-Você não pensa nisso não é mesmo? - perguntei, com certo medo da resposta.
-Hum, não, claro que não, eu tenho coisas que me prendem aqui.
Sua resposta não foi tão convincente.
-Por exemplo?
Seu rosto ficou vermelho de novo.
-Não quero responder isso.
Ele continuava a encarar o chão fielmente.
-Por quê?
-Porque tenho medo. - ele admitiu.
-Do que?
Ele ficou em silêncio por um tempo, como se estivesse avaliando a sua resposta.
-Tenho medo de te magoar, tenho medo de você descobrir que eu não sou uma pessoa legal. Tenho medo da minha escolha.
Deixei ele respirar um pouco antes de continuar, eu precisava ir com calma com ele.
-Qual foi a sua escolha?
Ele pensou um pouco, levantou a cabeça e me olhou. Seus profundos olhos azuis claros me deslumbraram por alguns segundos, até que ele respondeu:
-Ouvir meu coração...
Era bom conseguir fazer ele se abrir um pouco, a cada palavra eu sentia o peso saindo de suas costas.
-E o que ele disse? - perguntei calmamente.
-Diga “Olá” a ele. E foi isso que eu fiz. - ele respondeu com um sorriso tímido no rosto. Não sabia se devia ficar feliz ou triste.
-Você não quer estar comigo? - perguntei.
-Quero, mas é errado... - ele admitiu sem me olhar.
Aquilo me pegou desprevenido.
-Errado?
Ele ia responder quando olhou pra frente e viu o restaurante, pude ver seu suspiro de alívio.
-Já chegamos ao restaurante, podemos continuar essa conversa mais tarde?
Era óbvio que eu estava desnorteado, mas não dava pra continuar uma conversa como essa dentro de um restaurante.
-Claro...
Entramos no restaurante e sentamos numa mesa de canto, não demorou muito para sermos atendidos.
-Olá Marcelo e Ângelo, como estão? - perguntou a Beatriz, com um avental preso à cintura, um caderninho de pedidos na mão e um largo sorriso no rosto.
-Bem Beatriz, obrigado - respondeu o Ângelo.
-E você Marcelo?
Seu rosto era o de uma mulher cansada pelo trabalho, mas feliz por fazê-lo.
-Estou ótimo, o que temos pra almoçar hoje?
Ela abriu o seu caderninho e deu uma olhada rápida antes de me responder.
-Hoje estamos com o cardápio completo, podem escolher qualquer coisa.
-Que ótimo, então eu quero um cozido de salmão. - eu pedi.
-E você Ângelo?
-O de sempre. - ele respondeu com um sorriso no rosto.
-Tudo bem então, já peço pra alguém trazer. - ela disse e foi pra cozinha.
-Não sabia que você costumava comer aqui. - eu admiti.
-Eu não sou tão antissocial assim, você quase me ofende desse jeito.
O ruim do Ângelo é que às vezes não dava pra saber se ele estava sendo sarcástico ou se estava falando sério, apesar de a risadinha no canto da boca, como a que ele deu agora, ser sempre um indicativo do sarcasmo.
-Já decidiu o que vamos fazer depois? - perguntei esperançoso.
-Ainda não pensei nisso. - ele respondeu.
-Quando decidir avise.
-Tudo bem, acho que já tenho uma ideia.
Seu olhar estava longe, em algum lugar fora do meu alcance.
-Mesmo?
Achei estranho ele decidir repentinamente.
-Sim, será surpresa.
Um sorriso malvado brotou em seu rosto, o tipo de sorriso que eu esperava de mim, mas não dele. Normalmente ele não se expressava muito, no máximo um leve ar triste.
-Tudo bem. - respondi.
Ficamos algum tempo em silêncio, até que o garçom veio até nossa mesa.
-Senhores, seus pratos. - ele disse elegantemente.
-Muito obrigado, Fabrício.
O garçom era um guerreiro, e como todo guerreiro ele era bastante forte, tinha longos cabelos brancos presos numa trança fina jogada a frente de seus ombros.
-De nada Ângelo.
O olhar que o Ângelo deu a ele me deixou queimando de ciúmes, mas era besteira pensar nisso, gays não são tão fáceis de se achar assim. Tentei deixar isso pra lá e ver o que ele considerava “o de sempre”. Aparentemente era um peixe, mas não estava frito e parecia frio, além disso, tinha uma porção de arroz enrolado em uma planta.
-Você vai comer isso? - perguntei um pouco enojado.
-"Isso" é bom, você esperava que eu pedisse o que? Um cozido bem quente com pimenta? - ele perguntou sarcasticamente.
-Eu gosto. - respondi com um sorriso.
-Não ia me fazer muito bem. - ele disse enquanto colocava um daqueles bolinhos de arroz na boca.
-Ah não?
Ele fez um sinal pra que eu esperasse ele terminar o bolinho e respondeu:
-Comer coisas que esquentam não é uma boa idéia pra quem controla o gelo, você toma coisas geladas?
-Não gosto muito. - admiti.
-É que você não usa tanto o fogo, se usasse notaria a diferença que faz.
Sendo ele um mago, faria muito mais diferença pra ele que pra mim.
-Entendi.
Nós dois estávamos com fome então o almoço foi silencioso porque ninguém ia parar de comer pra falar. Quando acabamos cada um pagou o seu almoço, e paramos na frente do restaurante.
-Ângelo, pra onde?
Minha curiosidade estava quase visível.
-Siga-me.
Ele estava indo em direção ao portão Sul, ao lado do portão de transporte. Aquela era a conexão mais poderosa entre Jolnir e Delfos, quem passasse por ele estaria na nação do Delfos, por isso ele era bloqueado o tempo todo, só podendo ser usado no dia da formatura pelos líderes e pelos formandos que trocam de nação.
-O lugar que você está indo é fora da cidade? – perguntei um pouco receoso.
-Sim, é.
Ele respondeu muito feliz, como se estivesse me levando pro mundo da fantasia ou algo do tipo.
-Não é perigoso?
-Por que eu te levaria para um lugar perigoso? - sua expressão de felicidade se abrandou e sua voz veio carregada de um pouco de raiva, era difícil vê-lo nervoso.
Eu não respondi, realmente não havia um porquê de ele fazer isso. Andamos um pouco passando por algumas árvores até chegar à entrada de uma caverna.
-Bem, é aqui. - ele disse apontando para a caverna.
-Ok. - respondi, meio apreensivo, devo admitir.
Entramos na caverna e ela era meio escura.
-Luz. - evocou o Ângelo.
Um feixe de luz apareceu entre as mãos do Ângelo.
-Só o começo é escuro, não se preocupe. - ele disse me encarando com olhos um pouco mais sombrios, devido à falta de claridade.
Continuei andando, seguindo a luz que ele havia feito, enquanto que ele parecia estar completamente à vontade.
-Você vem muito aqui? - perguntei enquanto me desviava de umas pedras soltas no chão.
-Este é o meu refúgio do mundo, aqui eu fico em paz, eu sou eu mesmo e posso treinar sem olhares tortos. - ele respondeu contente, seu bom humor transbordava naquele lugar. Ele continuou:
-Não que eu vá relaxar hoje, porque você está aqui, então não vou deixar a magia negra livre, mas ainda assim aqui é muito bom de estar.
-Pode ficar a vontade. - respondi sem tentar pensar no efeito da aura dele.
Eu sabia que seria ruim, mas era melhor eu me acostumar.
-Hoje não. – ele disse firmemente.
Continuamos andando até chegar num lugar com muitos cristais verdes nas paredes e era muito claro. Havia uma abertura superior nessa parte da caverna que estava tapada por um bloco de gelo.
-Hum... quando chovia ficava úmido demais, então eu dei um jeito de a água não entrar mais. - ele se explicou olhando pro bloco de gelo.
-Isso é muito bonito. - eu admiti.
Os cristais refletiam a luz dando ao lugar uma atmosfera de vegetação, apesar de não haver nenhuma planta ali.
-Agora você conhece meu lugar especial. - ele disse, deixando a magia de luz de lado.
-Ninguém conhece esse lugar?
Era estranho pensar que um lugar como esse não vivia cheio de pessoas, era assustadoramente lindo.
-Se conhece nunca veio aqui enquanto eu estava e eu fico aqui um bom tempo. - ele disse enquanto passava a mão em alguns cristais.
-Como você descobriu?
Ele suspirou, como quem faz antes de contar uma longa história, pude ver seus olhos voltando no tempo enquanto ele se recordava sobre a descoberta.
-Eu tinha que treinar magia em algum lugar, por isso saí pela floresta procurando até achar esta caverna e ela foi a solução perfeita.
Ele relaxou os ombros e só então percebi que ele costumava andar de forma tensa, apesar de parecer sonhador era difícil vê-lo relaxado como ele estava agora.
- Aliás, por que você não flutua?
Essa era uma dúvida que eu tinha a muito tempo e nunca lembrei-me dela.
-Bem, por vários motivos: porque é gasto à toa de magia, afinal as pernas foram feitas para isso, porque ao contrário dos outros eu não vejo andar como algo inferior, mas sim como normal, e por fim porque sempre que eu uso magia tenho que controlar a magia negra mais rigidamente, então eu prefiro não ficar usando a toda hora.
Talvez esse fosse o motivo por ele andar tão tenso, ele tinha que controlar a magia negra.
-Entendi. – respondi, processando as informações.
-Também quero tirar uma dúvida.
Sua voz foi animada e ele aprecia prestes a contar que acabara de visitar uma enorme loja de doces. Era uma coisa engraçada nele, quando ele realmente ficava feliz, no fundo, parecia que ele era uma criança, talvez a criança que ele nunca fora.
-Diga. - respondi calmamente o observando com um sorriso no rosto.
-Você ficava na frente da casa de poções só para me ver? - ele perguntou com um sorriso bobo no rosto.
-Não, eu ia mais cedo pra te ver, mas eu ficava lá esperando a Carol. - respondi e pisquei pra ele.
-Ah...
Ele parou de me encarar e começou a andar tocando os cristais da parede. Olhando por esse ângulo ele era muito... encantador, pra não dizer outra coisa.
-Você é bonito sabia? - eu disse.
Apesar da intensa luz verde do local, nem isso conseguiu esconder a vermelhidão do rosto dele.
-Obrigado, você também. - ele respondeu sem me encarar.
Eu sentei no chão, ele veio até mim e fez o mesmo, então eu fui pra mais perto dele. Ele não se mexeu. Eu peguei na mão dele, e ele continuou imóvel.
-Ângelo?
-Sim?
Sua voz parecia trêmula e seu rosto estava indecifrável.
-Por que é errado estar comigo?
Ele abaixou a cabeça, respirou fundo e disse:
-Porque eu tenho cada vez mais certeza de que gosto de verdade de você.
Eu senti um alívio no peito, mas ao mesmo tempo um aperto.
-Gostar de mim não deve ser tão ruim, eu sou bonito.
Ele sorriu.
-Eu, naturalmente, sou uma pessoa que faz os outros sofrerem. Eu não quero te fazer sofrer Marcelo.
Não parecia que ele estava me contando isso, parecia que ele estava me pedindo...
-Ângelo.
-Sim?
-Olhe pra mim.
Ele permaneceu quieto por um momento, mas então levantou a cabeça e me olhou, seus olhos azuis claros estavam agora com um tom esverdeado.
-Relaxe. - eu disse.
Seu rosto ficou sombreado pela dor.
-Não posso...
-Por favor. – eu supliquei.
Ele suspirou, ficou alguns segundos parado, mas então relaxou. Seu cabelo adquiriu as mechas negras assim como seus olhos ficaram mais escuros. A aura negra se juntou à azul clara, e a sensação de medo e perda de calor veio novamente, mas eu estava preparado, respirei fundo, e olhei pra ele.
-Está tudo bem comigo.
Não era bem uma verdade, mas não era tão ruim como ele fazia parecer.
-Marcelo, você não pode fazer isso...
Suas mãos estavam mais quentes, dividir a magia entre o gelo e a escuridão o fazia ficar quase numa temperatura normal... eu disse quase.
-Não só posso como estou fazendo.
Cheguei mais perto dele, senti o frio emanando do seu corpo. A distância entre nossos rostos foi diminuindo, pude sentir seu hálito frio se aproximando, a maciez da sua pele contra minhas mãos. Eu o beijei.
-Eu não vou ficar longe de você Ângelo, independente do que aconteça.
Seu rosto deixou os tons de dor, tristeza e incerteza e se iluminou num sorriso que seria capaz de desarmar um exército inteiro. Dessa vez foi ele que tomou a iniciativa e me beijou, com mais vontade, como se ele finalmente estivesse quebrando as correntes que ele tinha se dado, ele me envolveu num abraço que eu esperava que fosse gélido, mas não era... era quente, era doce, e era diferente de tudo que eu já tinha experimentado antes. Tinha sentimento, eu podia sentir, ele realmente gostava de mim e eu gostava dele. Ficamos ali sentados, conversando em sussurros, como se contássemos segredos. Não me lembro de um momento que nós não se tocávamos de alguma forma, seja eu abraçado a ele, seja quando eu segurava sua mão. Passamos a tarde nos conhecendo melhor. De uma forma inocente, já que o Ângelo era absurdamente tímido. Porém, tudo precisa acabar uma hora.
-Ângelo, acho que precisamos ir.
Novamente parecia que eu o tinha tirado do seu pequeno mundo de sonhos, só que dessa vez eu acreditava mesmo que ele estivesse sonhando, afinal, até eu sonhei com isso.
-É, acho que sim. – ele respondeu, um pouco triste.
-Tudo bem, vou te deixar em casa. - eu disse e comecei a me levantar.
-Sua casa fica mais próxima ao portão Sul, eu te deixo em casa.
Sua voz tinha sido firme, diferente da voz baixa e insegura que ele normalmente tinha.
-Já que você pediu com tanto carinho... - eu disse rindo.
Ele piscou pra mim. Era muito raro ver o Ângelo tomando iniciativa, por isso era bom deixá-lo quando ele o fazia. Caminhamos de volta até que ele me deixou em casa, me deu um beijo na bochecha, me desejou boa noite e foi pra casa. Enquanto eu fui pra cama, já era noite e foi um dia bem longo, e muito bom.
-Marcelo, você vai comer algo? - ouvi minha mãe perguntando, provavelmente da cozinha.
-Não, mãe, vou dormir. - respondi.
-Tudo bem querido, boa noite. - ela disse com um ar carregado com um suspiro, ou talvez tenha sido impressão minha...
-Boa noite.
E mais uma vez o sono veio devagar, e trouxe com ele um sonho, um sonho com olhos azuis claros.

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Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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