A quinta havia sido reservada para a preparação psicológica e, portanto, a academia ia ficar fechada para os alunos do último ano intermediário.
Hoje eu combinei de passar o dia com a Carol e o Ângelo, e a noite com minha mãe. Eu havia pedido pro Ângelo pra mostrar a caverna pra Carol, e ele havia aceitado, íamos depois do almoço. Almoçaríamos na Beatriz, como um gesto de almoço final, já que tínhamos que nos preparar para o pior.
Eu estava trocando de roupa, coloquei meu traje vermelho que usava para eventos e fui para o restaurante. Ao chegar lá eles já estavam me esperando numa mesa no centro do restaurante.
-Olá Marcelo. - disse o Ângelo, um pouco apreensivo.
Ele estava com um quimono diferente, era um pouco mais justo ao corpo, lembrava um pouco um traje. Era azul claro com detalhes em branco. Já a Carol estava com um vestido azul escuro, com um decote que realçava seus seios e o símbolo da água na lateral do vestido, em preto (o símbolo da água é uma gota).
-Oi Ângelo, e oi Carol.
Minha saudação não foi o que posso dizer como alegre, mas não tinha como esta feliz naquela situação.
-Oi.
Ela também não estava muito calma.
-Vocês dois parecem nervosos.
O que eu disse era óbvio, dava pra sentir o nervosismo fluindo de todos nós, a apreensão, o medo...
-Você também. – respondeu o Ângelo.
-Acho que podemos esquecer isso por hoje. – disse a Carol.
Não foi preciso pensar duas vezes pra concordar com ela, aquilo estava acabando com a gente.
-É, você tem razão, vamos esquecer isso por hora, - eu disse - já pediram seus pratos?
-Estávamos esperando você. - respondeu a Carol.
Um sorriso brotou no rosto dela, precisávamos mesmo tentar nos distrair.
-Obrigado por esperarem, vou chamar o garçom.
Chamei com um gesto, desta vez não era o que o Ângelo conhecia, mas parecia tão prestativo quanto. A Beatriz sempre teve um excelente corpo de funcionários.
-Já escolheram?
Ele perguntou, enquanto tirava do bolso um bloco de anotações e uma caneta.
-Nachos. – eu disse.
-Paieja. – Ângelo disse.
-Salada verde com molho branco. – Carol disse.
-Já trago. - disse o garçom, acabando de anotar os pedidos e os levando pra cozinha.
-O lugar que vocês vão me mostrar... é perigoso? - a Carol perguntou de repente.
-É fora da cidade, mas não tem perigo. – disse o Ângelo.
-É muito bonito Carol, você vai ver.
Tudo bem que metade da beleza que eu via no lugar, era culpa da companhia, mas ainda não tirava o mérito da caverna.
-Assim espero. - ela respondeu.
Ficamos em silêncio algum tempo, era difícil ter conversa com a tensão no ar. Tal silêncio só foi quebrado quando o garçom trouxe a comida. Mais uma vez foi uma refeição silenciosa. Acabamos de comer, pagamos e fomos em direção ao portão sul. Quando passamos pelo portão de transporte o Ângelo o olhou de uma forma diferente, eu precisava me lembrar de perguntar sobre isso a ele ainda hoje. Adentramos por entre as árvores até que a Carol cortou o silêncio.
-Essas árvores são muito lindas.
Seu rosto parecia fascinado e perdido enquanto ela olhava pra cima.
-Esse lugar é especial Carol, as energias daqui são muito puras, é como se fosse um local sagrado, mas que não me proporciona dor.
Ele tocou uma árvore enquanto passava, seu rosto demonstrava que estava mais perdido em pensamentos do que a Carol.
-Como assim?
A pergunta pareceu pegar ele de surpresa, por isso ele demorou um pouco pra responder.
-Se fosse sagrado não me faria bem, sou em parte mago negro.
Apesar da naturalidade com que ele tinha falado, nunca tinha me passado isso pela cabeça, mas fazia sentido... mas então, ele não ia à igreja nunca?
-Ah sim, é verdade. - disse a Carol, interrompendo minha linha de raciocínio.
-Marcelo, você parece um tanto quanto longe...
Aquele par de olhos azuis claros me encarava, junto de uma tentativa meio frustrada de sorriso e um ar de insegurança.
-Um pouco, estou aproveitando o momento.
Aproveitar o momento era tudo que eu queria fazer. Aproveitar a companhia deles, daquelas árvores, dos meus pensamentos, do sopro leve do vento que tentava contornar as árvores. Eu só queria isso, aproveitar um pouco mais... Continuamos caminhando até chegar à caverna.
-Luz. – declarou o Ângelo, e novamente surgiu uma luz entre suas mãos – Vamos?
Caminhamos até chegar ao local dos cristais verdes.
-Bem, é aqui Carol.
A Carol ficou maravilhada, assim como eu, com o lugar.
-É tão maravilhoso, é...
Ela levou a mão ao rosto e mal podia se conter. Passou a mão pelos cristais enquanto via seu reflexo neles.
-Fico feliz que tenha gostado. - respondeu o Ângelo.
Eu não conseguia suportar aquilo, o pensamento de talvez perdê-los era como um veneno que me magoava cada vez mais.
-Eu amo muito vocês dois. – eu disse.
Eles me olharam de um jeito diferente, com ternura, como se o veneno que me corroesse também circulasse no sangue deles. Nós nos abraçamos, a Carol foi a primeira a começar a chorar, eu não resisti e nem o Ângelo.
-Vai dar tudo certo. – a Carol disse, mas mais pareceu uma súplica do que qualquer outra coisa...
O Ângelo não disse uma palavra sequer... ele só chorava, eu queria muito que ele dissesse algo...
-Ângelo...
-Eu... – ele começou, soluçando um pouco. – eu gostei muito de viver como as outras pessoas... eu não queria que acabasse agora...
-Não vai, - eu disse, beijando-o no rosto. – nós vamos ficar bem.
Minhas palavras foram uma súplica, eu queria por tudo no mundo que elas fossem verdade.
Entre lágrimas, soluços e silêncio ficamos lá o resto da tarde e começo da noite, um em cima do outro, fazendo carinho. De uma forma ou de outra, tínhamos que enfrentar nosso destino...
-Vamos, precisamos dormir bem. – disse a Carol, secando o rosto.
Como se eu fosse conseguir dormir hoje.
-É verdade, vamos... - respondeu o Ângelo, com a voz acusando um enterro...
-Vamos sim, sobre amanhã, boa sorte a nós.
Minhas palavras foram baixas, mas era o máximo que eu conseguia.
-Boa sorte. – eles responderam juntos.
Voltamos para a cidade, com menos peso na consciência. Deixamos a Carol na casa dela e depois o Ângelo me deixou em casa. Paramos e ficamos frente a frente, eu segurei a mão dele que como sempre estava fria, fui chegando mais perto, até que nossos lábios se encontraram uma vez mais e nos beijamos. Ficamos ali parados por algum tempo se olhando, quando o Ângelo me abraçou com força.
-Obrigado por tudo. Obrigado pela amizade, pelo carinho... - ele disse.
Seu rosto estava banhado pelas lágrimas, e eu senti meu ombro começando a ficar molhado.
-Obrigado por me mostrar o que é amar.
Encostei minha testa no seu cabelo bagunçado e me deixei chorar por mais algum tempo, até que eu me afastei um pouco dele
-Até amanhã...
As palavras nunca quiseram ser ditas, mas eu as forcei a ir.
-Até.
Eu ouvi essa última palavra do dia e o observei virando e indo pra sua casa.
Entrei em casa como se tivessem anunciado a morte de alguém, minha mãe ficou no meu quarto comigo, até que eu adormeci no colo dela.
Acordei no outro dia, tomei banho, escovei os dentes, tomei café, dei um abraço forte em minha mãe, disse a ela que a amava e fui pra a academia, sem parar na casa de poções. Eu não podia me desconcentrar, hoje não era o dia de pensar nos sentimentos, ou nas pessoas, eu precisava fazer isso pra ter a oportunidade de pensar um dia mais. Entrei na arena, já estavam distribuindo os calabouços, com o globo de uma semana atrás, porém era meu professor que estava com o globo, esperei na fila até que ele chegou em mim.
-Boa sorte Marcelo.
Peguei o papel dentro do globo, e a escrita do papel não podia ser verdade, meu coração começou a bater rápido e parte da minha concentração forçada cessou naquele momento.
-Caverna das Sombras...
Bem, era isso, eu ia pra Caverna das Sombras, mas não queria uma despedida com a Carol e o Ângelo, não queria preocupá-los.
-Professor, o senhor pode me dar o mapa?
As palavras quase não saíram, minha voz estava baixa e isso não era normal vindo de mim, não que eu fosse escandaloso mas... é, talvez eu estivesse entregando os pontos, mas eu não podia e não ia fazer isso, eu ia passar nessa prova e virar um membro da nação Jolnir.
-Seu mapa está ali com aquele mago, pode ir lá e... use tudo que aprendeu, eu confio em você.
Seu rosto era de tristeza. Ele já havia me contado como ele odiava esse dia do ano, como era ruim perder os alunos... mas essa era a forma que a nação julgava correta, então...
-Obrigado professor, por tudo.
Me virei e fui em direção ao mago, o qual era o professor do Ângelo.
-Qual mapa você precisa meu jovem?
Ele não estava olhando pra mim, estava muito ocupado tentando organizar todos os mapas que estavam com ele, mas seu rosto cansado mostrava que o dia parecia estar sendo longo, apesar de ainda ser cedo.
-Caverna... das Sombras.
Finalmente ele virou seu rosto em minha direção, suas rugas afundaram um pouco e seus lábios se contraíram levemente. Ele pegou um mapa manchado com algumas gotas de sangue e me entregou.
-É este aqui.
Tentei não pensar que talvez parte daquele sangue, agora seco, fosse da Carol, mas era impossível...
-Obrigado.
Andei em direção à saída da academia tentando ir por um caminho um pouco mais escondido pra não encontrar nenhum conhecido. Consegui sair da academia sem encontrar ninguém, agora era só fazer isso pelo resto do caminho até a saída oeste, que era para onde eu precisava ir.
O resto do caminho pela cidade foi por entre ruas sinuosas e afastadas do centro da cidade, até eu finalmente chegar ao portão oeste. Segundo o mapa, esta saída dava pra uma planície, seguida ao norte por uma cadeia de montanhas e ao sul por uma área desertificada. A Caverna das Sombras ficava na divisa dos dois, mas não era longe. Segui em frente tomando cuidado pra não ser pego de surpresa por algum monstro, até que avistei a entrada da Caverna. Aparentemente parecia uma mina abandonada e tinham dois lobos negros de guarda, era a hora de me preparar. Deixei a energia fluir e o fogo tomar conta das espadas. Um dos lobos me viu e correu em minha direção, o outro veio logo em seguida. Corri em direção a eles.
-Tornado ardente!
Girei com a espada em chamas, mas o primeiro lobo se desviou e pulou em cima de mim, também consegui me desviar, mas o outro lobo agora estava muito próximo, eu precisava acabar com o primeiro antes que o segundo chegasse. Neste instante o primeiro lobo tentou um segundo golpe.
-Estocada de chamas!
Eu investi com uma das espadas, acertando o lobo em cheio, mas o segundo lobo também me atacou, fazendo um arranhão no meu abdome, porém agora ele estava do meu lado.
-Corte flamejante!
O golpe não o acertou, mas o fogo o deixou cego e era isso que eu queria.
-Guilhotina!
Forcei as duas espadas de baixo pra cima, cortando-o em três pedaços. Eu nem tinha entrado e já estava arranhado, e estava ardendo bastante, por sorte o traje aguentou bem, se não teria sido um corte bem profundo. De qualquer forma, não importa, eu precisava acabar logo com isso. Vi se os lobos não tinham nada de valor, porque haviam me dito que aqui os monstros poderiam carregar alguns itens que poderiam ser revendidos na cidade, mas eles não tinham nada. Fui em direção à entrada.
Lá dentro estava escuro, a luz do fogo seria bastante útil. Caminhei atento a qualquer sinal, porém nenhum sinal apareceu. Se não fossem os lobos na entrada, eu diria que estava no lugar errado, porque tudo estava muito quieto, quieto demais...
Continuei caminhando até que ouvi um barulho e uma gota caiu no meu cabelo. De repente algo estava grudado no meu pescoço e estava chupando meu sangue! Segurei a criatura e a cortei em duas, era um morcego vampiro. Agora eu precisava ser mais rápido ainda, esse morcego era conhecido pelo veneno que injeta nas vítimas, que dentro de minutos começa a deixar a presa atordoada até ela desmaiar, era um veneno de imobilização. Além disso, meu pescoço estava sangrando.
Corri em frente, eu precisava urgentemente achar o chefe e matá-lo, antes que o efeito do veneno começasse. Só parei de correr quando avistei uma luz de fogo que não era a das minhas espadas. Tentei espiar. Era uma sala maior que o corredor que eu estava seguindo até agora, com uma cadeira de pedra, na qual estava “sentado” uma espécie de fantasma, parecia uma pessoa, porém com várias feridas e semitransparente. Além dele havia dois lobos negros e quatro morcegos no teto, minha única chance seria acabar com os morcegos de uma vez, mas não sei se eu iria conseguir produzir tanto fogo. Era a única chance e seria a que eu tentaria, minha pernas estavam começando a amolecer. Entrei na sala em direção aos quatro morcegos. Assim que eles me viram, voaram em minha direção, logo atrás vieram os lobos e o fantasma começou a evocar uma magia. Continuei correndo até que os quatro morcegos mostraram as presas, eles estavam muito perto de mim, se eu errasse, seria atacado.
-Fúria das espadas flamejantes!
O fogo das espadas se intensificou e eu comecei a fazer cortes no ar, cada corte lançando uma labareda de fogo. Acertei os quatro morcegos, mas os lobos pararam ao ver o ataque. Algo que eu não esperava aconteceu.
-Pesadelo. - disse o fantasma.
Eu me vi voltando pra casa, todo machucado e sem conseguir matar o chefe. A Carol e o Ângelo estavam deitados na frente da minha casa, seus rostos mais pálidos do que o normal. Eles estavam... mortos?!
-NÃÃÃÃOOOO!!!!
Um dos lobos mordeu a minha perna enquanto o outro mordeu meu braço e minha cabeça começou a latejar de dor.
-Tornado ardente!
Girei com as espadas em chamas, cortando ambos os lobos, mas agora além do pescoço eu tinha um braço e uma perna sangrando, fora o cansaço que estava se abatendo sobre mim, cada vez mais forte. O fantasma começou a evocar uma nova magia, eu não podia deixá-lo fazer isso. Corri em direção a ele, a cada passo minha perna dava uma pontada de pura dor, como se estivessem enfiando uma faca nela, mas agora não era hora de se importar com dor.
Quando eu cheguei bem próximo ao fantasma, gritamos ao mesmo tempo.
-Estocada de chamas!
-Lança negra!
Eu afundei a espada aonde deveria ser o coração dele e ele lançou algo que parecia uma agulha roxa, que perfurou meu peito. O fantasma desapareceu, deixando pra trás um broche roxo que eu entendi como a prova de que ele foi morto. Coloquei a mão no peito e minha mão ficou coberta com sangue, a dor e a fraqueza começaram a se intensificar.
Peguei o broche e caminhei de volta para a entrada, mas o fogo das espadas estava ficando cada vez mais fraco e a minha visão cada vez mais obscurecida, a caverna parecia não acabar e a cada passo eu sentia a vida fluindo pra fora de mim. Quando eu vi a luz do sol desisti de manter o fogo, agora eu era um alvo fácil, eu não conseguiria me defender de nada, mas não parei de andar mesmo que cambaleando.
A dor pulsava enquanto eu deixava meu rastro de sangue. De repente ouvi uma risada boba, parecia da minha mãe, mas estava acompanhada de outra, uma mais baixa e mais tímida. Eu nunca esqueceria o som daquela risada, tão fraca, mas tão cheia de vida. Atravessar a planície era quase suportável, ouvindo aquilo, pelo menos era o que minha mente achava, mas meu corpo discordava. A dor das feridas estava muito intensa e eu quase não enxergava mais, minhas pernas cambalearam de novo, mas eu não tive forças pra suportar meu peso, eu caí no chão. De relance eu vi o Ângelo correndo em minha direção, minha mente continuava a brincar de sonhar, mas se aquilo já fosse o que se tem depois da morte, eu seria eternamente feliz.

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Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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