Quando cheguei em casa já haviam pedido a janta, mas estavam me esperando para comer.
-Ângelo, o que você teve que fazer? - perguntou o Miro.
Contei a eles sobre os livros e também sobre a pedra.
-O que vocês acham que pode ser?
Eles pareceram pensativos, mas assim como eu, não sabiam o que era.
-Não sei Ângelo, – disse o Glaucos – mas toda magia que usa magia branca e negra ao mesmo tempo é sinal de algo poderoso.
Isso era verdade. Era quase impossível juntar um mago branco e um negro no mesmo lugar, normalmente os magos negros são da Penumbra e os magos brancos são jolnirs ou delfis.
-Vocês não acham que possa ser algo ruim não é?
O jeito estranho do professor me deixava na dúvida de vez em quando.
-Acho que não, – disse o Miro – afinal, ele é seu professor.
Confiar nas autoridades era um ensinamento antigo em Jolnir, aparentemente aqui também. Eu nunca fui muito bom com essa regra, por saber o quão manipulável as pessoas podem ser. Mas era um ponto a se considerar.
-É, você tem razão, preciso ter mais fé nele.
Minha frase foi mais um pedido para comigo mesmo do que uma resposta ao Miro. O Glaucos me olhava com alguma firmeza, o que não gostei muito. Tentei desviar o olhar, até que encontrei os olhos do Miro, que diziam que ele queria algo.
-Então... podemos comer? - disse o Miro.
Isso explicava a cara.
-Podemos. - eu respondi rindo.
Jantamos e depois o Glaucos foi ver uns amigos que moravam no andar de cima. Fiquei sozinho no quarto com o Miro. Ele veio até a minha cama, se sentou e ficou me olhando. Preciso admitir, eu senti muito a falta dele durante o dia e ter ele só para mim de novo era muito bom. Deitei no colo dele.
-Ah não Ângelo, sua cama é pequena, eu não consigo deitar direito.
Ele me pegou no colo e me levou até a cama dele.
-Aqui é melhor.
Ele me deitou em sua cama e depois ficou ao meu lado, também deitado. Eu peguei a mão dele com as minhas. Como era bom tê-lo pertinho, sentir seu calor e ter a sensação de estar protegido.
-Você tá calado. – ele disse enquanto acariciava meu cabelo com a mão livre.
-Eu estava pensando em algumas coisas.
Ele ficou pensativo por uns instantes, mas logo seu rosto se abriu num pequeno sorriso. Invadir a mente para saber o que ele tinha pensado seria algo ruim?
Seria.
-Que tipo de coisas você tava pensando?
Meu rosto ficou vermelho. Pensar no corpo dele tão perto, mesmo que ele estivesse com a armadura, era... tentador.
-Hum... nada.
Ele ficou de lado, acho que eu nunca pude reparar tão bem em seu rosto. Era lindo, mas normalmente eu tinha que olhar para cima para vê-lo, então não o fazia com tanta frequência.
-Miro, você é lindo.
Aquilo o pegou de surpresa, ele passou a mão pelo meu rosto, chegando até o meu pescoço. Seu olhar tão sonhador...
-Brigado Ângelo, você também é.
Eu acariciei seu rosto com a mão livre. Seus olhos vermelhos não focavam outra coisa se não a mim. Ele chegou mais perto, agora nossos narizes quase se tocavam, mas a proximidade entre os rostos foi ficando cada vez menor, até que ele me beijou. Segurei o pescoço dele com a mão com um pouco mais de força, ele se arrepiou um pouco. Eu ri.
-Problemas com o pescoço?
Minha voz tinha sido tão inocente, mascarando o quão saltitante eu estava.
-Talvez, e você? Onde tem problema?
Dizer não teria a menor graça...
-Por que você não tenta descobrir?
Aquilo o surpreendeu. Na verdade, surpreendeu até a mim, desde quando eu conseguia falar algo assim?
-Achei que você nunca ia pedir.
Ele foi beijando meu pescoço, até chegar na nuca. Eu me arrepiei com aquilo.
-Huumm...
Tinha uma coisa que eu tinha muita vontade de fazer, mas morria de vergonha. Respirei fundo e coloquei minha mão na barriga dele, por debaixo da armadura. Era dura. Ele fez menção de tirar a armadura, meu rosto ficou extremamente vermelho.
-Não, não tira!
Sim, eu fiquei meio desesperado.
-Mas...
Nós dois na cama dele enquanto ele fica sem armadura? Muito tentador, até demais. Eu realmente não estava pronto para isso, de jeito nenhum!
-Não. Por favor, não.
Ele parecia meio confuso, acho que ele não esperava que minha timidez fosse tão grande assim.
-Mas você me vê sem armadura todo dia...
-Sim, quando eu não estou deitado com você, é imensamente diferente.
Ele processou a informação por alguns momentos.
-Ah, eu não vejo diferença.
A sua cara de inocente declarava que ele não via mesmo. A minha de santa imaculada, e acredite ou não eu sei fazer essa cara, dizia o total oposto.
-Eu vejo, continue vestido.
Ele deu de ombros, voltando a deitar na cama.
-Ok, você manda.
Ele fez um sorriso sem vergonha que eu tinha certeza que ele aprendera com o Glaucos.
-Nem quero imaginar o que se passa na sua cabeça neste momento.
Ele me abraçou, com um pouco mais de força. Não doeu, foi... diferente, acho que foi o melhor abraço que eu já recebera na vida, não que eu tenha recebido muitos...
Comecei a bagunçar o cabelo dele, ou pelo menos o que tinha. O cabelo dele era quase raspado, não tinha lá tanta graça, mas ainda era gostoso. Fiz algo que nunca pensei em fazer, sentei e o deitei no meu colo. Foi uma cena estranha, porém engraçada, dava a impressão de que tinha algo errado.
-Você não acha que sou um pouco grandinho pra você não?
Talvez, mas ele não precisava saber disso.
-Acho que se eu pensasse assim não estaria com você agora.
Ele ficou quieto, eu o beijei na testa e continuei tentando bagunçar seu cabelo, apesar de o cabelo não se mexer.
-Você acha que vai dar certo?
Sua pergunta foi estranha, e me pegou de surpresa.
-O quê?
Ele levantou um pouco a cabeça para me olhar nos olhos.
-Nós.
Eu precisava ser sincero com ele, depois do que passei com o Marcelo, eu não tinha tanta fé em relacionamentos longos, nossas vidas eram um tanto quanto arriscadas.
-Eu não sei...
Acho que não era a resposta que ele esperava, aquilo parecia tê-lo chateado um pouco...
-Não digo isso por mim, eu sempre estarei ao seu lado, mas...
Mas era muito difícil ignorar tudo que podia dar errado só para manter a salvo o sonho de uma vida feliz e duradoura ao lado dele.
-Você diz isso por causa do Marcelo?
Bem, aparentemente ele entendeu meu ponto de vista.
-É...
Ele se levantou e ficou de joelhos na cama, de frente para mim. Segurou meu rosto com as duas mãos e disse:
-Pelo menos vamos aproveitar ao máximo um ao outro enquanto temos oportunidade, é o que podemos fazer.
Seus olhos miravam o meu com ternura, como era bom sentir-se amado...
-Você está certo. – respondi sorrindo.
-Ótimo. – ele disse, retribuindo o sorriso.
Ele se levantou e começou a tirar a armadura. Fiquei boquiaberto.
-O que você pensa que está fazendo?! – perguntei, com a voz numa altura um pouco maior que o normal...
-Eu vou me trocar... – ele disse tranquilamente. - você disse que eu não podia ficar só de bermuda, mas não disse que eu precisava ficar com a armadura.
Ponto para ele.
-Ah... ok.
Fiquei assistindo ele tirando a armadura e pegando uma roupa mais leve no armário dele. Tentei disfarçar um pouco para não parecer que eu estava babando muito, então mantive a cara de apreensivo.
-Que medo é esse? - ele perguntou enquanto colocava a camisa. - Eu não mordo, só quando pedem.
E era aí que residia o problema.
-Então... vai que eu caio na tentação de pedir.
Falar antes de pensar não era um hábito meu, mas até que não estava sendo de todo mau.
Ele fez cara de safado e começou a rir. Apesar da vergonha eu ri também, era uma situação nova, mas muito engraçada. Resolvi me trocar também, mas com magia.
-Troca.
Coloquei uma bermuda azul clara e uma camiseta preta. O desapontamento no rosto dele era evidente.
-Poxa Ângelo, você se troca rápido demais, nem consigo aproveitar o momento.
Meu rosto ficou vermelho de novo.
-Você podia parar de dizer coisas constrangedoras.
O jeito como ele mordeu os lábios me deu uma leve impressão que não seria hoje que meu pedido ia ser atendido.
-Mas é muito divertido te ver vermelho.
Ah, claro, não tem o que fazer? Deixe o Ângelo vermelho, é engraçado.
-Daqui a pouco vou te deixar roxo, daí você vai ver.
Tentei manter uma cara de bravo, mas que olhar foi aquele que ele fez?!
-Uau, que selvagem você.
Quem ficou roxo foi eu, de vergonha. A intenção da frase definitivamente não era essa!
-Aaahhh, eu não quis dizer isso.
Deitei na minha cama e escondi o rosto com o travesseiro, ele começou a rir muito. Senti o peso dele quando ele deitou ao meu lado.
-Ângelo, você é muito tímido, isso é muito engraçado.
Eu ia realmente bater nele, não tinha graça mais ele ficar me zuando.
-Seu... bobo.
Sim, foi o máximo que consegui na hora.
-Mas você gosta.
É, realmente... mas espera, não, eu tinha que estar bravo com ele.
-Que convencido.
Tirei o travesseiro para ver o que ele estava fazendo. Para minha pequena surpresa eu estava, de certa forma, preso, porque do jeito que ele estava não dava para eu sair, apesar de ele não estar literalmente em cima de mim, se não eu estaria esmagado agora.
-O que...?
Eu teria terminado a pergunta, se ele não tivesse abaixado a cabeça e me beijado. Segurei o pescoço dele com as duas mãos, até lembrar que eu ainda estava bravo com ele.
-Então eu sou o tímido...
Mordi seu lábio, não com muita força, mas o suficiente para descontar um pouquinho da raiva. Ele me olhou de um jeito estranho, sorrindo.
-Viu como você é selvagem?
Isso com certeza explicava o olhar.
-Devo lhe dizer que não gosto da sensação de estar preso.
Ele beijou o meu pescoço, logo abaixo da minha orelha e sussurrou:
-Mas você não tá preso.
Como não?! Se ele parasse de apoiar o próprio peso com os braços ele cairia encima de mim! E ele era pesado!
-Levando em conta que ainda não sei me teleportar, então estou sim.
Ele riu e disse:
-Estou no comando.
Um sorriso enorme se abriu em seu rosto.
-Ah, eu tenho medo dessas coisas.
Ambos rimos.
-Como é muito bom estar com você, você me faz bem. – ele disse.
Meu coração acelerou, foi tão fofo!
-Aaahh, que lindooooo.
Eu apertei as bochechas dele, o que o fez ficar envergonhado. Não acredito que ele ficou envergonhado com isso!
-De tudo que eu faço, você fica envergonhado com eu apertando suas bochechas?
Ele deu um sorriso tímido e virou o rosto.
-É que minha família fazia isso quando eu era criança.
Eu me lembrei da imagem dele que vi no lago, de quando ele era menor. Tentei imaginar uma tia apertando as bochechas dele, como aquela cena era engraçada. Comecei a chorar de rir.
-Daí agora que você é um hominho você sente vergonha?
O rosto dele ficou ainda mais vermelho, enquanto eu gargalhava.
-Ok, já sei como você se sente, já pode parar Ângelo.
Enfim, a doce sensação da vingança. Muaaahahahahaaaa
-Ah, não mesmo.
Ele saiu de cima de mim, meio sem jeito e ficou sentado na cama. Sentei-me de frente para ele, tentando controlar os risos. Ele ficou me encarando enquanto eu me controlava.
-Pronto? – ele perguntou, com um olhar que estava entre a vergonha e um algo a mais que não consegui captar.
-Acho que sim. – eu disse enquanto secava uma lágrima que caia do meu rosto.
-Talvez fosse melhor eu já ficar com minha roupa de dormir, - ele disse calmamente. - é mais leve. Você não acha?
Eu entendi o leve tom ameaçador. Meu sangue também, ele lembrou com mais entusiasmo das minhas bochechas.
-Ok, parei.
Eu me aproximei um pouco mais dele e o abracei, colocando minha cabeça no seu peito. Ele me abraçou de volta, acariciando meu cabelo.
-Sabe, - ele começou. - você podia dormir na minha cama hoje.
Afastei-me um pouco dele. Analisando o verbo dormir como tendo o sentido ter uma noite de sono, não teria problema, se morássemos só nós dois.
-Acho melhor não... um dia que o Glaucos não estiver nós fazemos isso.
Sua expressão aparentava demonstrar que ele havia me entendido, até ele abrir a boca.
-Mas é só pra dormir mesmo Ângelo.
A inocência em seus olhos era quase irritante. Dava a impressão de que eu era o sem vergonha da situação!
-Eu sei que é só para dormir! Se não eu nem teria falado sobre outro dia. O que mais poderia ser?
-Ah poderíamos também... - eu diria que ele ia falar, mas quando olhou minha cara de “Fala que eu te arrebento” ele desistiu – fazer uma guerra de travesseiros.
Ele foi rápido, tenho que admitir.
-Ah não, eu ia perder.
Mago esquelético contra guerreiro numa guerra de travesseiros. Resultado totalmente imprevisível.
-Por que você diz isso?
Novamente aquele olhar de criança inocente, se segurando para não rir.
-Quanto você pesa?
Ele mordeu os lábios antes de responder.
-120Kg.
Ok, eu sabia que ele era pesado, mas 120Kg?! Era quase o dobro do meu peso!
-Levando em conta que eu tenho 64Kg, você tem praticamente o dobro do meu peso.
Ele deu de ombros, se divertindo com a situação.
-E quanto você tem de altura?
-Ah... – ele começou, num tom de voz não muito animado. - 1,95m, mas o Glaucos tem 2,02m.
Eu queria ter mais amigos baixos por aqui...
-E eu tenho 1,75m. Agora vamos avaliar. Como uma pessoa derruba outra com o dobro da massa e que ainda por cima é 20cm mais alta, tudo isso com um travesseiro?
Ele pensou nisso por algum tempo, até voltar a me olhar com um pequeno sorriso no rosto.
-Eu confio em você.
Eu ri com a cara que ele fez.
-Não, eu não vou fazer guerra de travesseiros e nem vou dormir com você, hoje.
Ele começou a fazer bico, nós dois rimos.
-Então podemos fazer isso outro dia.
É claro que podíamos fazer isso outro dia, dormir com ele seria muito bom.
-Sim, nós podemos dormir juntos um dia. – eu disse sorrindo.
-Já estão planejando esse tipo de coisa? Vocês não perdem tempo mesmo.
Era o Glaucos, ele entrou no quarto rindo. Meu rosto ficou muito vermelho.
-Não é exatamente o que você está pensando...
Bem, eu podia tentar explicar, ou podia deixá-lo pensando o que quisesse. O Miro escolheu por mim.
-Relaxa Glaucos, se fosse o dormir que você pensou, o Ângelo teria feito bem mais do que só ficar vermelho.
Apesar de ele estar coberto de razão, não foi a explicação mais sutil que poderia ter sido dada.
-Obrigado pela parte que me toca. – eu disse, sarcasticamente.
-De nada Ângelo, é sempre um prazer. – ele disse, sorrindo.
O Glaucos revirou os olhos e foi até sua cama. Ele parecia meio abatido ou triste, algo assim... Ele se sentou, colocando as duas mãos na frente do rosto e tirando o cabelo da testa. Sentei-me ao seu lado.
-O que houve?
Eu não queria acreditar que essa chateação fosse por minha causa e do Miro, não fazia muito sentido...
-É a Higéia, às vezes ela é estranha. - ele admitiu.
Em parte isso me tranqüilizava, mas... eu nunca havia reparado em nada estranho nela, e nós estudávamos juntos todos os dias.
-Em que sentido?
Ele cruzou as pernas e ficou meio pensativo.
-Certas vezes... ela fica pensativa demais, como se estivesse paralisada. É rápido, mas eu pude perceber.
Talvez isso explicasse o porquê de eu nunca ter reparado, nós não tínhamos tanto contato assim, já que eu treinava com o Caronte.
-Hum... vou prestar atenção nela, se eu ver algo errado, eu te aviso.
Ele descruzou as pernas e me deu um sorriso. Era bom vê-lo mais calmo.
-Obrigado Ângelo.
Ele me abraçou de lado.
-Não tem de quê. Mas, já está tarde, acho que podemos ir dormir. - olhei para o Miro, que começou a rir – E quando eu digo dormir é dormir mesmo e cada um em sua respectiva cama.
Ele riu mais alto, o Glaucos deu de ombros.
-Amigos gays... como entendê-los?
Eu ri e voltei para minha cama. Conversamos um pouco mais, até que eles se trocaram e pegaram no sono. Não demorou muito para que o sono me consumisse também. Por sorte, foi uma noite sem sonhos.

Aquela foi uma boa noite. Não porque eu estava com a alma tranquila e nem porque agora eu olhava para o Miro sem culpa, mas sim porque agora eu sabia que não estava magoando ninguém, e isso era tudo que eu precisava para ser feliz, pelo menos por enquanto.
Fiquei pensativo sobre a presença da magia negra, porque me lembrava da voz, que fazia alguns dias que havia me deixado em paz. Nós já havíamos jantado e eu estava deitado enquanto pensava nisso, o Glaucos estava lendo um livro e o Miro parecia estar querendo alguma coisa, porque ele parecia inquieto.
-Miro, o que foi? Tenho certeza que você está aprontando alguma coisa.
-Claro que não. – ele disse sorrindo.
Aquele sorriso o desmentiu na hora. Nós nos encaramos por alguns segundos, e era como se conseguíssemos conversar sem palavras. Estávamos revendo nossa tarde, ou pelo menos era o que eu achava. O pequeno momento foi interrompido quando ele se levantou e veio até a minha cama, usando o “pijama” dele. Eu sussurrei:
-Nada de ficar aqui, como você se sentiria se o Glaucos fizesse isso com você?
Ser a parte racional de um relacionamento era muito complicado, ainda mais quando ele ficava tão perto de mim, e usando só aquela bermuda. Mas alguém tinha que fazer esse trabalho, infelizmente.
-Eu sei, relaxa, eu não to fazendo nada demais.
Realmente estar com pouco roupa na cama da pessoa que você beijou a poucas horas não é nada demais, provavelmente o Glaucos pensava a mesma coisa já que todos somos puros e inocentes mesmo. Sim, isso foi uma ironia.
-Eu não confio muito no seu senso de não fazer nada.
Ele me olhou daquela forma fofa, que quase teria me feito desistir da posição de racional, se o corpo dele não desviasse tanto a minha atenção e me lembrasse da realidade dos fatos.
-Ok, mudando de assunto, - já que eu estava começando a perder o controle da situação. – eu senti magia negra na floresta hoje.
Vi seus olhos voltando algumas horas atrás, provavelmente tentando captar algum sinal disso.
-Ah, então foi isso que te deixou perturbado antes de voltarmos.
Ele pareceu preocupado com isso também.
-Sim... mas nem imagino de onde veio.
Admitir aquilo era frustrante, era muito ruim ser vítima de ataques e não ter como revidar, já que eu não fazia a mínima ideia de quem estava por trás disso ou mesmo o porquê.
-Ângelo, - era o Glaucos, ele tinha fechado o livro dele - você me deve uma explicação sobre suor no rosto.
-Ah é, - complementou o Miro - você também precisa me contar o que aconteceu entre você e...
Eu havia me esquecido deste detalhe, eu realmente devia aos dois algumas explicações, e agora que as coisas estavam meio que resolvidas, eu poderia dá-la sem muitos problemas.
-Tudo bem, as duas histórias são a mesma.
Contei a eles sobre a caverna dos sonhos, sobre meu encontro com o Marcelo e sobre a pedra. Também contei sobre meu orbe e sobre o trato com o professor.
-Ângelo, você usou duas magias ao mesmo tempo! E ainda achou uma pedra rara! - o Glaucos disse.
É, havia sido um dia e tanto, aconteceu muita coisa ao mesmo tempo. Fiquei feliz pelas minhas conquistas, mas eu jamais ia conseguir admitir que foi fácil deixar o Marcelo ir de verdade, mas foi o melhor a ser feito.
-Sim, foi muito divertido. Extremamente cansativo, mas muito bom. E voar é uma das melhores coisas do mundo...
Lembrar daquela sensação de liberdade era surreal, não havia nada comparado àquilo, era simplesmente maravilhoso. A parte ruim é que aquilo me consumiu muito.
-Mas o que você vai ter que fazer em troca do metal? E que metal é? - o Miro disse.
Essa era uma boa pergunta. Depois de tanta coisa, eu nem tinha pensado nisso.
-Eu não sei... espero que não sejam tarefas complicadas.
Meus olhos começaram a ficar pesados, havia sido um dia muito longo e cansativo.
-Hum... acho que preciso dormir, - eu disse enquanto bocejava e me espreguiçava um pouco - foi um dia muito cansativo e... cheio.
Olhei para o Miro, ele sorriu e disse:
-É, boa noite.
Ele me beijou no rosto. Pude ver o Glaucos fazendo um gesto de vômito.
-Ah Glaucos, não enche.
E comecei a rir.
-Tá bom Ângelo, boa noite. – ele disse com um sorriso no rosto. - Você vai ficar chateado se eu não for aí te dar um beijinho de boa noite também?
Várias opções me passaram pela cabeça. Dizer que sim e ver a fúria do Miro; xingá-lo; bater nele; usar uma magia de sono nele; mas de todas, eu fiz a que consumia menos energia.
-Não sei por que ainda te escuto.
Virei para o outro lado, mas ainda pude ouvi-lo rindo e pude sentir o Miro se levantando. Foi uma noite sem sonhos, eu acho, porque parecia que alguém estava me empurrando, me balançando para os lados.
-Ângelo? Ângelo, acorda.
Acho que era o Miro.
-Ah, só mais cinco minutos, por favor.
Os benditos cinco minutos, quase sempre se transformavam em horas, mas quem liga?
-Você já disse isso antes.
Ok, isso só podia ser sonho mesmo, eu não lembrava disso...
-Ah, eu não disse não.
-Já sim, levanta. – ele disse enquanto me colocava sentado na cama.
Eu me sentia muito cansado ainda, pelo menos psicologicamente. Fiquei sentado na cama esperando a energia matutina chegar até mim. Provavelmente eu ficaria ali mais algumas horas esperando...
-Ângelo, você tá bem?
Perguntas difíceis a essa hora da manhã, por quê?
-Uhum...
Abri os olhos e vi o Miro, ele já estava com o uniforme, aquilo me assustou, eu costumava ser o primeiro a acordar.
-Miro, que horas são?
Tentei limpar os olhos, vi que o Glaucos também já estava arrumado, sentado na cama dele.
-São 7:20.
7:20!!! Eu costumava acordar 6:30, não ia dar tempo de captar energia das plantas. Eu precisava ir rápido!
-Ah, não, preciso me arrumar logo!
Levantei-me rápido, talvez rápido demais, porque senti minha pressão sanguínea caindo. Cambaleei um pouco. O Miro me segurou para eu não cair.
-Ângelo? O que houve? - disse o Glaucos.
Como é que eu ia saber? Eu estava acordando, nesse período do dia as respostas costumam ser muito mais difíceis de conseguir. Felizmente eu me lembrei de ontem
-Eu só fiquei um pouco tonto, nada demais, acho que usei muita magia ontem, foi só isso.
“Só isso” era bem sutil, já que provavelmente eu estaria parecendo um zumbi agora.
-E você só sente agora?
Como explicar isso de uma forma bem simples?
-É como uma espécie de ressaca, o sono restaura muito bem o corpo e a mente, mas a magia não funciona assim.
Aparentemente ele havia entendido, mas isso não ia fazer o tempo ir mais devagar, eu precisava ser rápido.
-Bem, não tenho muito tempo, estou muito atrasado.
O Miro pareceu não gostar muito do que eu disse, já que ele me segurou com um pouco mais de força nos braços. Eu esperava que ele lembrasse que ele já era forte sem se esforçar...
-Calma Ângelo, - disse o Miro - podemos sair daqui 10 pras 8.
Isso me dava 30 minutos. Não era o fim do mundo, mas chegaríamos na academia encima da hora. Contudo, eu teria pouquíssimo tempo pra conseguir energia limpa, e no estado que eu estava, eu não ia aguentar o dia inteiro na academia com pouca magia. Bem, eu precisava tentar.
-Ok então.
Fiz menção para que ele me soltasse, e ele assentiu. Entrei no banheiro, me despi com um pouco mais de calma e entrei no chuveiro. Senti a água no corpo, foi revitalizante. Eu comecei a captar energia dela sem nenhum esforço. Não entendi como aquilo estava acontecendo, mas foi bom, eu comecei a me sentir um pouco melhor. Terminei meu banho, escovei os dentes e me troquei, dentro do banheiro. Saí do banheiro às 7:40. Peguei umas duas torradas e fui para a janela. Subi no parapeito e pulei.
-Flutuar.
Fui até a árvore mais próxima e comecei a captar energia dela, enquanto comia a torrada. Deixei a magia negra livre e me concentrei com mais força em captar energia. Eu precisava aprender a captar energia do ar, essa situação seria contornada se eu já soubesse...
-Flutuar.
Fui para outra árvore, comecei a ter medo de fazer mal à primeira por captar energia demais. Depois de oito minutos captando energia e sentindo no estômago as duas torradas eu estava bem melhor. Voltei para o quarto para colocar o sapato e para tentar comer mais alguma coisa.
-Ângelo, - virei-me para ver que era o Glaucos que falava comigo, enquanto eu colocava o sapato - você me dá medo.
Eu havia me esquecido que era incomum eles me verem captando energia, então eu me jogar da janela deve ter sido estranho.
-Eu precisava ser rápido, desculpe se assustei vocês.
Preocupados teria sido um termo melhor, avaliando-os melhor.
-Ah, tudo bem – começou o Miro - achei que você fosse desmaiar aqui, daí você sai do banheiro e se joga da janela. Não há motivo pra preocupação.
E eu achando que só eu era irônico no recinto.
-Eu sei que vocês vão me perdoar uma hora, - eu disse enquanto pegava mais uma torrada – mas agora precisamos ir.
Eles se entreolharam, mas foram para a porta. Consegui terminar de comer antes de sair do prédio. Andamos um ao lado do outro, com eu no meio. O Miro segurou minha mão. Eu ainda não tinha me acostumado a isso, ele era o tipo de cara que eu imaginava com o Glaucos, por exemplo, que era lindo, nunca com um mago, de pele clara, frio e sem corpo definido. Tudo bem que eu era magro, o que já era melhor do que alguns magos que tinham uma barriga considerável, mas ainda assim eu não tinha corpo definido. E apesar disso aqui estava ele, segurando minha mão. Eu olhei para ele. Ele parecia feliz, tinha um olhar sonhador. Senti a mão dele se fechando mais na minha, eu retribui, ou pelo menos tentei. O Glaucos ficou muito feliz ao ver a Higéia nos esperando. De certa forma eu também fiquei feliz, eu não ia gostar de ver as duas pessoas que moram comigo se beijando ou namorando na minha frente, apesar de eu nunca ter feito isso com o Miro. De qualquer forma fomos os quatro juntos para a academia, estava indo tudo bem até o Crisaor me ver de mão dada com o Miro.
-Olha só, que patético, eles estão juntos.
Uma coisa que se aprende quando se é um mago negro, é que muitas vezes você consegue fazer o que quer, sem usar magia alguma. Olhei para o Crisaor firmemente, a frase “Se olhar matasse” me veio à mente. Soltei minha mão da do Miro, e recebi um olhar meio inconformado dele por isso. Dei um passo para frente e coloquei as duas mãos, uma de frente para a outra, na frente do meu peito, e comecei a fechá-las lentamente, não desviando meu olhar do Crisaor. Eu havia conseguido, ele entendera o recado, eu vi o medo em seus olhos, a claustrofobia.
-Da próxima vez não serão minhas mãos que estarão se fechando, espero que você se lembre muito bem disso.
Apesar do medo, ele não ia perder a postura. Isso era algo respeitoso em uma pessoa, uma pena que eu tenha observado isso naquele cretino.
-Da próxima vez, mago, eu vou terminar o serviço.
Ok, devo admitir que também fiquei receoso. Nossos dois conflitos foram interrompidos, um a favor dele e outro a meu favor. Não quero considerar a lança negra como alguma coisa aqui, aquilo não devia ter feito parte disso.
-Vou pensar em fazer isso também.
Ele lançou um olhar de raiva e entrou na academia. Voltei a segurar a mão do Miro, ele sorriu. Entramos na academia, desejei boa aula a eles e fui para a sala com a Higéia.
-Ângelo, - ela começou. - porque você e aquele guerreiro brigam tanto?
-Eu também queria saber... – respondi meio chateado.
Da última vez que perguntei para o Crisaor porque ele implicava com o Miro ele não respondeu, e acho que agora é que ele não ia responder mesmo.
O dia na academia foi como sempre, tirando o fato de que quando o sinal soou, anunciando o fim da aula, eu parecia mais cansado do que normalmente ficava. Mas eu ainda não podia ir, precisava ver com o professor o que teria que fazer para pagar o metal. Esperei até que todos saíssem e fui até ele.
-Então professor, o que preciso fazer?
Porque ser sutil quando se poder ir direto ao assunto? Um pequeno defeito meu...
-Bem, sua tarefa é simples, você vai me ajudar com alguns livros na biblioteca, começando hoje e terminando na quinta. Na sexta-feira eu tenho outra tarefa, mas deixo isso para o dia.
Livros? Eu realmente esperava algo bem mais complicado que isso. E resolver tudo em 4 dias? Isso soava muito bem. Contudo eu não esperava que eu fosse ficar hoje...
-Neste caso, vou ficar aqui até que hora?
Ele olhou para o relógio e depois me encarou por alguns momentos.
-Você só tem permissão de ficar depois da aula por mais uma hora, então às 19h você já poderá ir. Podemos ir?
Eu não podia deixar o Miro e o Glaucos me esperando durante uma hora, eu precisava avisá-los.
-Tudo bem, só preciso avisar meus amigos.
Ele me olhou um tanto quanto impaciente...
-Hum... acho que não temos tempo para que você possa ir até eles, mande uma mensagem.
Eu ficaria muito feliz em mandar uma mensagem se eu soubesse como fazer isso.
-Eu não sei mandar.
Minha falta de habilidade com o vento estava ficando cada vez mais incômoda.
-Diga-me o que você quer escrever.
Seu olhar era meio vazio, isso às vezes me assustava um pouco.
-Hum... que eu vou sair daqui só às 19h por causa das tarefas e que eles podem ir.
Tentei não transparecer o pequeno receio enquanto falava, algo que aprendi muito bem a fazer com os anos. Uma das minhas armas era o medo, usá-lo contra mim era muito difícil.
-Ok, Mensagem de vento.
Um papel esverdeado apareceu na frente dele e palavras começaram a aparecer nele. Ele me deu o papel e disse para pensar no destinatário. Pensei no Miro e o papel se desfez em ar, fiquei pensando se tinha feito algo errado.
-É normal acontecer isso professor?
Ele acenou com a cabeça.
-Neste caso, acho que podemos ir.
Já que ele parecia um pouco apressado, não seria uma boa ideia ficar enrolando, concordei com a cabeça e fomos.
Quando chegamos à biblioteca fomos direto para a sessão das magias.
-Ângelo, seu trabalho hoje, amanhã e depois serão todos feitos aqui. Até as 18:50 você deverá separar os livros daquela pilha – apontando para alguns livros que estavam dentro de uma caixa – de acordo com o elemento principal do livro. Você deve fazer um risco com a cor respectiva ao tipo de magia, assim como estão todos os outros livros, tudo bem?
Basicamente os livros eram separados pela classe e depois pelo elemento, então essas marcações ajudavam muito na hora de organizar os livros e para achá-los também.
-Hum... sem problemas.
-Durante os dez minutos finais faremos outra coisa e na sexta seu trabalho será na minha sala, depois você estará dispensado. Tudo bem?
É, realmente parecia bem leve...
-Tudo bem.
Ele deu um pequeno sorriso, o que quebrou a tensão de pessoa misteriosa que às vezes ele tinha.
-Ótimo, pode começar, volto aqui às 18:50.
Dizendo isso, ele se virou e saiu da biblioteca. Hora de trabalhar...
Como eu já havia imaginado, o trabalho não foi difícil, era até que prazeroso, eu gostava da biblioteca. Como um mago, muito do meu treinamento era sentado lendo, então era natural que eu gostasse do ambiente. De qualquer forma eu havia conseguido fazer a marcação em quase todos os livros da caixa quando o professor voltou, e aquilo parecia tê-lo deixado bem feliz.
-Ah, você fez um excelente trabalho. Mas agora vem a parte difícil, siga-me, não temos muito tempo.
Sabia que estava fácil demais...
Eu o segui até os fundos da biblioteca, lá tinha uma porta que dava para um lugar reservado da biblioteca, o qual os alunos não podiam entrar, ele entrou e pediu para que eu o seguisse. O lugar tinha ar de velho e empoeirado. No centro da sala havia um pedestal de pedra com algo que se parecia com um cristal negro. Acima dele havia uma janela de vidro e a lua cheia estava fazendo luz na pedra.
-Ângelo, vamos fazer uma magia com essa pedra. Vou precisar que você libere o máximo de magia negra que conseguir.
Eu me assustei com o pedido, mas obedeci. Agora meu cabelo estava negro com algumas mechas azuis.
-Muito bom, agora fique atrás da pedra e de frente para mim.
Fiz o que ele pediu, o que me deixou um pouco receoso.
-É uma magia contínua, você deverá repetir as palavras Luna Encantate várias vezes. Eu vou estar com os olhos fechados, quando eu abrir os olhos você deve parar o encantamento imediatamente, precisamos estar em sincronia perfeita, tudo bem?
Ok, eu ia fazer uma magia contínua usando magia negra...
-Hum... ok.
Ele deu maior força para a magia branca, sua aura começou a deixar os tons de marrom aos poucos.
-Ótimo, coloque as mãos na pedra, nas laterais, não tampe a luz da lua, assim como eu estou fazendo.
Ele colocou as mãos dos lados da pedra, eu fiz o mesmo do lado oposto. Ele fechou os olhos e disse:
-Preparado?
Concentrei-me em seus olhos, os quais seriam meus guias durante essa magia e disse:
-Sim, vamos.
Ele consentiu com a cabeça, um leve sorriso em seu rosto.
-Quando eu chegar no 3 começamos. 1... 2... 3.
-Luna Encantate. - dissemos juntos.
Ficamos repetindo esse encantamento várias vezes, um laço de magia negra saiu das minhas mãos e começou a rodopiar a pedra enquanto um laço idêntico, mas de magia branca saiu das mãos dele e acompanhou o movimento do laço que eu havia formado, era muito belo de se ver. Nem por um segundo eu desviei meus olhos dos dele, a hora de parar um encantamento precisava de muita precisão. Ele o abriu depois de poucos minutos. Ambos paramos a magia e soltamos a pedra.
Eu me senti um pouco fraco depois daquilo, mas percebi que só a magia negra estava desgastada, então tentei usar mais magia de gelo. Deu certo. Aparentemente ele fez o mesmo, porém com magia de terra.
-É, é cansativo, - ele começou, vendo o desgaste no meu rosto. - por isso não podemos fazer por muito tempo. Faremos isso mais duas vezes, para aproveitar a lua cheia.
Eu concordei com a cabeça. Agora sim as coisas começaram a ficar interessantes.
-Bem, - ele continuou, provavelmente notando que eu esperava a próxima instrução. é isso Ângelo, pode ir descansar, até amanhã.
-Tudo bem então, até.
Virei-me e fui embora, deixando-o admirando a pedra.

Felizmente, ou não, meus medos estavam saindo junto com as lágrimas, já era a hora de eu resolver a minha vida de vez. Sequei as lágrimas.
-Você acha que os mortos nos observam?
Um pequeno plano começou a se formar na minha mente.
-Não sei, acho que sim, por quê?
Bem, era uma ideia meio absurda, mas não custaria tentar...
-Então preciso de mais cinco minutos sozinho, já volto.
Ele não entendeu muito bem, mas assentiu, de qualquer forma.
-Ah... tá.
A coisa que eu faria a seguir seria absolutamente patética, mas eu precisava tentar. Sentei ao lado de uma grande árvore, de costas para o Miro, longe o suficiente para ele não me ouvir.
-Marcelo, eu sei que você não pode mais aparecer aqui, mas você pode me visitar em um sonho, e é isso que eu quero que você faça agora, Sono.
Imediatamente meus olhos começaram a ficar pesados. Lançar uma magia sobre si é algo diferente, não tem resistência, mas ao mesmo tempo é meio suicida. De qualquer forma, deu certo, eu estava dormindo. Mais uma vez eu o vi, com o uniforme branco. Ele sorriu.
-Você é louco, não vou conseguir ficar muito tempo.
Ele realmente parecia surpreso com minha ideia, mas ele também tinha razão, eu não podia demorar muito.
-Eu só... quero dizer que nunca vou te esquecer.
Se eu ia rearrumar minha vida, eu tinha que ser sincero e estar bem com o meu passado. Ele parecia feliz com minha decisão, quando a notou.
-Eu também nunca vou te esquecer Ângelo. E fico feliz que você esteja seguindo sua vida.
Eu queria abraçá-lo, mas eu não ia conseguir. De qualquer forma eu tentei. Aproximei-me lentamente dele, e o abracei. Eu consegui, eu podia senti-lo. Era diferente, não tinha aquele calor de sempre, mas por um momento ele estava ali comigo.
-Obrigado por tudo, te amo. – eu disse, me afastando um pouco.
-Também te amo. – ele disse sorrindo.
-Sempre que puder, venha me ver em sonhos.
O sorriso dele diminuiu um pouco e seu rosto ficou um pouco preocupado. Aquilo certamente não era uma boa notícia.
-Eu não posso... você não deve ficar amarrado ao passado. Eu preciso descansar...
Fazia sentido, era egoísta o meu pedido.
-Ah... desculpe, acho que é sua hora de ir, mesmo.
Bem, uma despedida um pouco melhor do que as outras duas, uma de verdade.
-Sim, espero que não fique chateado.
Saudoso, pensativo, talvez. Chateado não.
-Não ficarei, até algum dia.
Dei meu melhor sorriso, ele retribuiu.
-Até.
Aparentemente eu só cochilei, porque o Miro ainda estava no mesmo lugar. Fui em direção a ele, um pouco mais confiante, definitivamente decidido.
-O que você foi fazer?
Várias respostas me passaram pela cabeça. Usei a mais verdadeira.
-Dormir.
-Ah...
Certamente ele não esperava por isso, mas uma outra hora eu poderia explicar. Voltei à minha posição no colo dele, e ele voltou a bagunçar meu cabelo.
-Não achei que você fosse tão carinhoso.
Ele me olhou com ternura, um deslumbre de um sorriso apareceu em seu rosto.
-Não é porque sou um guerreiro que não sei ser carinhoso.
A forma como as palavras saíram, era como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Quase como se incontestável.
-É estranho, - eu admiti. - Mas é muito bonitinho.
Ele ficou vermelho, eu nunca tinha visto ele vermelho antes.
-Eba, consegui fazer você ficar vermelho, agora só faltam umas quinze vezes para empatarmos.
Ele sorriu, meio sem graça, mas o brilho nos seus olhos dizia que ele não ia deixar isso passar.
-Eu te deixo vermelho bem mais fácil, é só eu deitar na sua cama.
Foi a minha vez de ficar vermelho, lembrar daquela cena era absolutamente constrangedor.
-Viu como é fácil?
Ele começou a rir.
-Isso não é justo, não tenho culpa de ter vergonha.
Eu o tinha pego, ele parou de rir e me olhou com cara de ultraje.
-Ora, então você ta dizendo que eu não tenho?
Agora era minha vez de retribuir as risadas.
-Ah, ter tem. No fundo, bem lá no fundo você tem.
Fiz minha melhor cara de bom moço, mas não consegui sustentar por muito tempo, e voltei a rir.
-Ah é? – ele perguntou, com um sorriso malvado no rosto. Ele pegou um punhado de água com a mão e derramou no meu rosto.
-Você não fez isso...
Limpei o rosto com a manga do quimono, enquanto lançava um olhar de ódio mortal e eterno a ele.
-Eu fiz, vai revidar como? Me dando um pouco de vergonha?
Bem melhor que isso. Eu toquei a água e fiz um fluxo de gelo, entrando pela armadura dele, pelas costas, deslizando por toda sua coluna até chegar ao pescoço. Ele se arrepiou.
-Já consigo fazer você ficar arrepiado, que legal.
Eu comecei a rir muito. Ele me pegou no colo e olhou para o lago.
-Isso eu também sei fazer.
Ele deslizou a mão pelas minhas costas, por trás do quimono, da mesma forma que eu fiz com o gelo nas costas dele. Para meu azar eu também me arrepiei. Maldita falta de controle.
-Ai, ok, já está bom. Já está vingado.
Tirei a mão dele das minhas costas, com algum esforço.
-Você não sabe brincar Miro.
Eu ainda sentia a umidade no meu cabelo.
-Ah, fica quieto Ângelo.
Aparentemente alguém não queria ficar por baixo, mas eu também não ia.
-Faz eu ficar quieto.
Ele me abraçou e me levantou, e fez isso rápido, o que me surpreendeu muito. Nossos rostos ficaram na mesma altura, meu coração disparou. Eu vi o rosto dele ficando cada vez mais próximo do meu, senti o calor do seu hálito, enquanto seu corpo pressionava um pouco o meu naquele abraço. Até que nossos lábios se encontraram pela primeira vez. O que eu esperava? Um beijo intenso? Algo com sentimento? Algo sutil? Acho que eu nunca soube. A única coisa que importava ali era o toque dos seus lábios contra os meus, e seu calor estonteante. Coloquei minhas mãos em seu pescoço, e afastei um pouco meu rosto. Encaramos-nos por alguns momentos, talvez eu estivesse fazendo mais drama do que o necessário, mas...
-Você definitivamente não sabe brincar.
Meu rosto estava muito vermelho, eu odiava ser pego de surpresa, ainda mais desse jeito.
-Você é muito tímido Ângelo.
Nesse ponto ele tinha toda razão.
-É...
Acariciei seu pescoço, logo abaixo da orelha. Isso me garantiu um sorriso da parte dele.
-Isso te incomoda? Sua timidez?
Não era algo que eu já havia parado para pensar.
-Talvez seja melhor assim, daí eu condeno menos pessoas.
Ele ficou bastante surpreso.
-Qual tipo de condenação?
Respirei fundo e libertei a magia negra. Ele ficou quieto por alguns segundos, mas logo voltou a falar.
-Ah, essa condenação.
Sim, a condenação que me fez por tanto tempo ficar isolado das outras pessoas, e a que quase sempre foi o maior fruto dos meus problemas.
-Eu não devia me deixar levar...
Ele deu uma risada boba, algo que eu realmente não esperava.
-Se isso for a única coisa que ainda faz você ter dúvidas sobre nós, - ele disse, antes que eu conseguisse terminar a minha frase. - então pode começar a dormir mais tranquilamente.
Suas palavras me abalaram e me confortaram. Era bom e ruim ao mesmo tempo.
-Não dói?
Por um breve momento ele ficou pensativo, mas depois voltou a me olhar, sorrindo.
-Um pouquinho, eu me lembro de algumas coisas chatas. Mas daí eu olho pra você e a sensação ruim passa.
Aquilo foi muito fofo, mas estar com os pés fora do chão estava começando a me incomodar.
-Hum... isso me alivia, mas você já pode me colocar no chão.
Eu não gostava da sensação de ele me carregando. Na verdade eu não gostava de dar trabalho para ninguém, especialmente para ele.
-Você não é pesado. – ele disse sorrindo.
-Por favor. – eu pedi.
Minha voz fora suave, e fora complementada por um beijo, o qual ele não esperava. Ele entendera o recado e me colocou no chão. Voltei para minha posição, sentado, ele fez o mesmo ao meu lado. Novamente eu deitei em seu colo, peguei sua mão e coloquei-a encima do meu peito, segurando-a com minhas duas mãos.
-Seu coração tá acelerado.
Acelerado? Eu quase sentia ele sair pela garganta...
-Sim.
Ele abaixou um pouco a cabeça, e falou um pouco mais baixo.
-Neste caso, acho que você tá gostando.
Não, não, eu estava odiando. Odeio ser beijado por um cara bonito, que gostava de mim, era fofo, legal, divertido e coisas do tipo.
-Eu queria poder dizer que não, tenho receio se ver o ego de certo alguém mais cheio do que deveria.
Um grande sorriso se abriu em seu rosto, com a mão livre ele voltou a bagunçar o meu cabelo.
-Eu não tenho ego inflado, deixo isso pro Glaucos.
Eu comecei a rir, de certa forma era verdade.
Ficamos mais algum tempo por ali, talvez uma hora, quando o Glaucos e a Higéia chegaram. Tive uma sensação muito estranha, a presença de magia negra. Levantei-me rapidamente e olhei em volta, procurando algum monstro ou algum desconhecido, mas não tinha ninguém, e o rastro de magia desapareceu.
-Ângelo, o que foi? - o Miro disse, percebendo minha preocupação.
-Nada...
Tentei não transparecer minha preocupação e voltei minha atenção para o Glaucos, o qual parecia ter gostado tanto da exploração quanto eu ou o Miro. A Higéia parecia um pouco sonhadora.
-Galera, - começou o Glaucos - precisamos ir, já tá ficando tarde.
Era verdade. Concordamos e voltamos à cidade.

Não foi difícil achá-la, ela estava indicando uma mesa azul mágica para algumas pessoas. De qualquer forma fui até ela.
-Bom dia.
Eu ainda aparentava um pouco de cansaço, eu esperava que ela não notasse...
-Olá Ângelo, se divertindo?
Seu olhar deixou claro que aquele detalhe não tinha passado despercebido.
-Ah sim, você nem imagina o quanto eu já me diverti hoje. - eu disse, fingindo uma voz de mistério.
Ela riu, eu não havia mentido, só havia satirizado algo que não era uma sátira.
-Já almoçou?
Uma vez mais sua voz me lembrou a de uma mãe preocupada, o que foi tocante.
-Ainda não, eu pretendo fazer isso agora.
Seu rosto se abriu num sorriso doce.
-Tudo bem então, - ela disse enquanto apontava na direção de uma mesa azul - é naquela mesa ali.
Achei bastante estranho o móvel fora do comum, mas provavelmente algum mago o havia conjurado.
-Bem, obrigado Aglaope, tenha um bom dia.
Ela acenou e eu caminhei em direção à mesa azul, quando uma mão cobriu meus olhos.
-Adivinha quem é?
Tateei as mãos no meu rosto. Era uma mão grande, com longos dedos finos, uma mão de um arqueiro. Achei bobagem eu ter feito isso porque só a voz já era irreconhecível, aquela voz de jovem sedutor.
-Uma ninfa. - eu respondi, fingindo alguma esperança.
-Tão bonito quanto. - ele respondeu, aparentemente contente.
Bem, e essa era a prova definitiva de que eu realmente sabia quem era.
-Glaucos, eu sabia que você era desumilde, mas chegar a esse nível?
Nós rimos e ele tirou a mão da frente dos meus olhos.
- Achei que ia almoçar sozinho, - eu disse, enquanto ele andava ao meu lado. - que bom que te achei.
-É verdade, é sempre bom me ver não é mesmo?
Lancei o olhar mais sarcástico que consegui fazer na hora.
-Ah Ângelo, é verdade... não é?
Ele fez uma cara de coitadinho que me fez rir muito. Tudo bem que não funcionou muito bem porque eu tinha que olhar para cima para falar com ele, mas ainda assim foi muito engraçado.
-Ok Glaucos, você é simpático.
Pelo olhar de choque dele, parecia que eu tinha dito que ele era sem graça ou algo do tipo...
-Ha, que abuso. - ele disse rindo.
Chegamos à mesa e parecia que hoje o cardápio estava ainda mais estranho do que de costume, como se fosse possível.
-Glaucos...
Ele entendeu meu pedido na hora.
-Ok, eu vou colocar sua comida.
Ele pegou algumas coisas e colocou no meu prato. Depois se serviu também. Olhei para aquelas coisas e fiquei pensativo.
-Tem certeza que nada vai me matar?
De certa forma eu não falei muito sério, mas a lembrança do restaurante era difícil de esquecer.
-Se você não comer, tenha certeza que uma hora isso acontece.
Eu ri, mas queria que o Miro estivesse aqui também, eu queria me redimir com ele.
-Queria que o Miro estivesse aqui...
Nós nos sentamos e ele me encarou por um breve instante. Vi um pouco de dúvida em seus olhos.
-É, o clima entre vocês não tá muito bom.
“Não está muito bom” era ainda ser otimista, eu o tinha feito chorar... E ele fizera o mesmo, e no fim das contas, não havia uma culpa em ninguém... eu acho...
-Ah, a situação é complicada...
Considerando tudo, era isso que definia a nossa relação: complicada. Eram tantos fatores interferindo, que... ah, era tudo tão confuso...
O Glaucos retomou a conversa, me tirando um pouco da minha própria mente.
-Achei que você gostasse dele.
Eu também...
-E eu gosto.
Uma sensação de alívio passou por mim, acho que era a primeira vez que eu admitia isso. Seu rosto ficou meio confuso com minhas palavras.
-Então qual é o problema?!
Ah, se fosse simples explicar...
-Eu estava preso a algumas coisas do passado.
É, provavelmente era o jeito mais rápido de explicar toda a situação.
-Já se arrumou?
Ele deixou os talheres no prato e me olhou com firmeza, como ele poderia imaginar que eu conseguiria arrumar a situação nesta manhã? Nem eu sabia que isso seria possível...
-Bem... eu acho que sim.
Um meio sorriso surgiu em seu rosto, e de repente eu me senti... bem. Foi uma sensação estranha.
Ficamos em silêncio alguns momentos, comendo, até que começou a me incomodar.
-Você achou alguma coisa legal, Glaucos?
De certa forma eu me senti meio culpado, eu não havia explorado a floresta muito bem...
-Ah não, só uns gremlins.
Como era de se esperar, eu também não conhecia os monstros daqui. Fico me perguntando a que distância física eu estaria da nação Jolnir.
-Eles são fortes?
O professor havia avisado sobre a possibilidade de acharmos monstros...
-Que nada, foi uma flechada na cabeça de cada um.
Eu ri do comentário, mas fiquei feliz de não achar nenhum monstro, eu não saberia como lidar...
-Eu não achei nenhum monstro.
Ele me lançou o mesmo olhar que o Miro fazia quando eu mentia, o que eu estranhei, eu não estava mentindo, era verdade...
-Se você não achou nenhum monstro, por que seu rosto tá suado?
Hum, isso explicava a expressão, talvez fosse melhor eu lavar o rosto naquele laguinho depois do almoço.
-Bem, acho que é melhor explicar mais tarde.
Aparentemente ele tinha entendido que não dava para eu contar agora e assentiu com a cabeça.
-Ok.
Terminamos de comer e concordamos em procurar a Higéia e o Miro. Eu esperava encontrar o Miro antes para não ficar sozinho com o casal. Para minha enorme sorte, achamos a Higéia primeiro.
-Oi Higéia. - eu disse.
-Oi Ângelo... - ela respondeu com um grande sorriso - e oi Glaucos.
Como sempre o rosto dela ficou vermelho.
-Olá minha querida.
Vi os olhos se encontrando e se entendendo, as expressões se completando, as dúvidas sendo deixadas de lado... ok, eu não ia ficar com o casal!
-Hum... eu vou procurar o Miro. - eu disse, virando-me e indo em direção ao lago, para limpar o rosto.
-Você não quer companhia? - o Glaucos disse.
-Ah não, estou bem. – eu disse, virando-me e indo em direção ao lago.
Não demorou muito para eu achar o lago. Para minha surpresa vi também a pessoa que eu procurava, sentado à beira do laguinho, de costas para mim. Andei até ele e coloquei as duas mãos sobre seus ombros. Ele virou a cabeça e me viu, depois voltou a olhar para o lago.
-Eu poderia ser um monstro, - eu disse gentilmente. - você devia estar preparado.
Ele demorou um pouco para responder, seus olhos tão fixos nas águas rasas...
-Nenhum monstro daqui é tão frio.
A rispidez da sua voz me dizia que ele não estava se referindo ao fato de eu ser um mago de gelo, mas talvez tirar a dúvida não matasse...
-Eu espero sinceramente que você tenha dito isso no sentido térmico da coisa.
Ele não respondeu. Sentei-me ao seu lado.
-Miro, - respirei fundo e continuei: - sobre hoje de manhã...
Um gesto com a mão vindo dele me silenciou.
-Não quero falar disso.
Eu não posso ter sido tão ruim assim... eu só... fui sincero...
-Não, eu... preciso falar, por favor, me escuta.
Ele fechou os olhos por um momento, respirou fundo e os abriu novamente.
-Então fala.
Eu não gostava do jeito que ele olhava para o lago, determinado a não olhar para mim.
-Primeiramente, sinto muito. Eu não quis te magoar, eu gosto muito de você.
Se antes ele estava determinado a não me olhar, a mudança súbita para um olhar de ódio fez meu coração disparar de medo.
-Assim como gosta do morto!
Aquilo doeu demais. Eu ouvi isso pela segunda vez hoje e ambas as vezes foram a mesma dor cortante. Não respondi, eu não ia chorar de novo. Com certeza eu estava num estado deplorável. Eu não o olhei diretamente, acho que nem conseguiria... mas vi sua raiva ficando de lado, sua voz ficou baixa novamente, e veio doce.
-Eu não quis...
Não importava o que ele ia dizer, ele só disse o que tinha guardado, era típico dele. Ele não estava errado em fazer isso, mas...
-Acho que eu merecia ouvir algo assim, mas ouvir duas vezes no mesmo dia é realmente doloroso.
Seu rosto se contraiu em dúvida, ele virou um pouco o corpo para me olhar melhor.
-Como assim ouvir duas vezes?
Definitivamente aquela foi uma péssima ideia, eu estava me magoando e estava o magoando, ainda mais. Eu não podia fazer isso, nem com ele e nem comigo...
-Acho que não vale à pena explicar, não vou te magoar mais, prometo.
Levantei-me, limpei meu quimono e comecei a andar de volta para a mesa azul. Ele me segurou pelo braço.
-Ângelo, tente me entender, eu estou chateado.
Nossa, sério? Eu ainda não tinha notado...
-Eu sei disso, por isso estou indo embora, para você não ter com o que se chatear.
Era um fato simples, com o qual todos poderiam conviver. Obviamente eu estava chateado com a situação, mas... como não se chatear? Como eu queria ficar sozinho e chorar num canto, deixando a morte, a angústia e o aperto no peito saírem.
-Mas eu prefiro você aqui Ângelo.
Ele me desarmou, eu não tinha argumento contra isso e eu não tinha força para lutar.
-Senta de novo, por favor.
Sua voz fora suave, era um pedido sincero. Sentei-me e fiquei olhando para o lago, era realmente muito bonito.
-Agora você pode me explicar o que aconteceu?
Eu nem sabia por onde começar, e sabia ainda menos se devia começar. Respirei fundo e olhei em seus olhos, os olhos vermelhos que me traziam tantas lembranças... algumas que precisavam ficar no passado... Foquei minha atenção em qualquer outra coisa, respirei fundo e disse:
-Eu... terminei o que tinha pendente com o meu ex.
Não era uma frase com muito nexo, mas era o máximo que eu consegui formular na hora.
-Achei que ele estivesse morto.
Explicar tudo aquilo num lugar aberto e no estado de ânimo que eu estava não seria o mais prudente. Não que eu tenha feito alguma coisa prudente com o Miro ultimamente, mas nunca é tarde para tentar.
-Ele está. Posso explicar melhor quando chegarmos em casa?
Ele me avaliou por um momento até acenar com a cabeça.
-Tudo bem então.
Ele colocou seu braço em volta do meu ombro e me puxou para mais perto dele.
-Ângelo, desculpe por ter sido rude com você.
Era bom sentir o calor do corpo dele junto ao meu, era uma das poucas fontes térmicas que me faziam bem.
-Eu mereci...
Eu não achava que tinha feito algo errado em relação a ele, eu não podia deixar de pensar no Marcelo até hoje de manhã. Eu estava jogando um jogo que eu sabia que ia perder, independente de que escolhas eu fizesse...
-Não Ângelo, você foi sincero hoje de manhã.
Bem, ao menos aparentemente ele me entendia...
-Hum, Miro... podemos recomeçar mais uma vez?
Era algo engraçado de se pedir. Pelo meio sorriso que ele deu, ele concordava comigo.
-Já estamos recomeçando pela segunda vez, isso não deve ser muito bom.
Eu retribuí o sorriso. Restabelecer nossa amizade era como voltar no tempo e ver aquela cena na praia, mas com muito mais sentimento, pelo menos da minha parte. Antes ele era o cara que me odiava, agora ele era a pessoa que eu tinha machucado por não poder amar, era o meu colega de quarto, e... bem, ele também era o cara forte que tinha o péssimo hábito de me colocar no colo. Ele era tão fofo... Saindo dos meus devaneios eu encarei aqueles olhos rubros e disse:
-Talvez, mas dessa vez acho que vai dar certo.
Eu segurei a mão dele com as minhas. Por um breve momento eu esqueci tudo que havia acontecido, todas as dores, as angústias e as manchas negras da minha vida. Agora, eu estava apenas acariciando uma mão maior que a minha, com alguns calos, ocasionados pelo uso daquela espada. Um vislumbre veio à minha mente. Era como estar vendo um filme passar, mas eu não era o protagonista. O rapaz forte de cabelos ruivos e aparentemente 12 anos estava ganhando sua primeira montante, ele ficou tão feliz com aquilo, era o sonho dele poder usar uma daquela. Um clarão se passou e eu o vi, mas mais velho, provavelmente com uns 16 anos. Ele estava na frente de um arqueiro de cabelo castanho, ele pegou sua mão e a trouxe para um abraço, no qual ele teve seu primeiro beijo. Mais um clarão e agora ele estava preocupado com a academia superior, ele estava receoso sobre a perseguição desenfreada do Crisaor, e isso o estava matando. Apesar disso, ter o Glaucos ao seu lado era muito bom, sempre foi. Eles estavam se trocando quando a porta se abriu e um mago que ele nunca vira na vida entrou. E com a mesma rapidez que ele abriu a porta, ele saiu, mas sua pele, que era branca como a neve tinha ficado muito vermelha. Ele era gay. Mais um clarão e ele estava na frente do mago, ele seria um motivo de vergonha para ele futuramente, mas ser rude com a pessoa por conta disso era a ideia mais estúpida que ele tivera no dia. Até porque, o mago tinha um corpo muito... Mais um clarão, eu estava vendo um guerreiro, de cabelos vermelhos, muito curtos, enquanto acariciava sua mão. Seu rosto estava sonhador, com a mão livre ele acariciou meu rosto. Eu não tinha entendido o que tinha acontecido, mas certas coisas são belas por não terem uma resposta. Eu deixaria essa memória desse jeito, pura.
-Ângelo...
Eu tive receio de responder. Tive medo de estar vivendo só um sonho bom e que minha voz me faria acordar. Mas... não é certo viver de sonhos...
-Diga.
Minha voz não teve força, era incerta como a voz do meu coração. Mas quem precisava de certezas? Por que buscar o concreto quando toda minha vida era um caos? Não, só uma vez eu ia me deixar levar, não importa o que vai acontecer depois, eu queria esse momento.
-Bem... - ele começou - você sabe que temos a tarde inteira aqui né?
Ele fez aquele sorriso meio sem vergonha que eu só vi uma pessoa fazendo até hoje. Foi meio nostálgico...
Ele colocou minha cabeça no colo dele.
-Agora você já pode corresponder aos meus sentimentos?
A pergunta que foi o pilar de todo o meu conflito do dia. Eu podia fazer isso? Pensar sobre tudo e avaliar a situação seria o mais prudente a se fazer, em vez disso deixei de dizer o que era certo e racional, pra dizer o que eu queria.
-Sim.
Aquela notória palavra, tão simples, foi capaz de tirar um belo sorriso dele. Aquele sorriso me fez ver o porquê aquilo era importante para mim.
-Eu gosto muito de você. – ele disse, meio sem jeito. Depois de tudo, ele fica tímido em só admitir isso, acho que eu nunca o entenderia. E eu amava isso nele.
-Eu também gosto muito de você.
Ficamos daquele jeito por um tempo, ele estava desarrumando, ainda mais, o meu cabelo. Era uma sensação maravilhosa, mas por mais que eu tentasse, não dava para esquecer tudo que havia acontecido.
-Ângelo...
Sua voz me tirou um pouco da confusão que estava minha mente.
-Sim?
-Você tá bem?
Eu tive que pensar para responder.
-Eu não sei. – eu admiti.
Seu rosto se contraiu em dúvida.
-Por quê?
Explicar toda a novela que minha vida estava sendo, resumidamente.
-É tudo muito recente, tudo acontece tão rápido... eu gostava de uma pessoa, ela morreu, eu me senti um lixo e a sensação só ficou pior quando comecei a... reparar no quanto você é atraente...
Nessa parte eu tinha que ficar vermelho, só para não perder o costume.
-Daí a pessoa que eu gostei um dia fala comigo para tentar aliviar a minha consciência e agora eu estou aqui, deitado no seu colo.
Minhas últimas palavras o pegaram de surpresa.
-Você não queria estar aqui?
Definitivamente não era essa a mensagem que eu queria passar.
-Eu quero...
Eu ia começar a chorar com toda aquela pressão.
-Ah não, não aguento mais chorar.
Segurei-me o máximo que pude, eu não era assim, eu não era de chorar!
-Mas se você sente vontade, tem que deixar sair.
Era estranho ouvir conselhos psicológicos de uma pessoa com o porte dele. Talvez eu nunca me acostumasse com isso, mas era fofo de qualquer forma.
-Miro, preciso que o mundo vá mais devagar, preciso respirar.
Ele parou de desarrumar o meu cabelo e me encarou, um pouco sério.
-Eu não posso fazer o mundo ir mais devagar, mas posso esperar o tempo que for pra ficar ao seu lado pra sempre.
Se a lágrima estava esperando por um convite, este com certeza fora um. Eu coloquei a cabeça no peito dele e comecei a chorar. Ele me abraçou. Eu estava cansado disso, nunca fui o tipo de pessoa que chora por qualquer coisa, sempre fui o mago que não fala com ninguém, não se expressa, não ri, não chora, não reclama, mas também não agradece. E quando eu finalmente resolvi mudar essa situação, as coisas mudaram até demais... e agora eu tinha medo. Medo de todo o meu pequeno mundo desmoronar e eu me ver mais perdido do que eu estava agora.

Sentei na minha cadeira no canto, quando o professor começou a dar as instruções.
-É uma exploração simples, vocês não têm um objetivo certo dessa vez, nas futuras explorações provavelmente terão. Vocês devem conhecer o terreno melhor. Existem alguns itens valiosos que podem ser encontrados com alguma sorte, mas todos eles precisam de inteligência para serem obtidos. Vocês não podem formar grupos, só depois do meio dia. Por fim, estejam preparados para ataques, há alguns monstros na floresta, não muito fortes, mas que ainda assim não devem ser subestimados. Preparados?
Todos fizeram que sim com a cabeça.
-Então, vamos.
Saímos junto das outras salas, eu queria falar com o Miro, ele devia estar muito mal, mas eu não o vi e também não poderia ficar junto dele na floresta. Andamos pela cidade até uma saída com um portão muito grande e bonito, metálico, com algumas plantas enroscadas nele. De relance eu vi o Glaucos e do outro lado o Caronte. Respirei fundo e entrei na floresta.
Era bonita, não era muito fechada e não parecia corrompida por espíritos ruins, era difícil acreditar que pudessem ter monstros por aqui. As árvores eram altas e suas folhas eram verde escuras. O vento conseguia soprar livremente e eu estava encantado com o lugar. Deixei a magia negra livre, agora que as outras pessoas não estavam muito próximas de mim e continuei andando. Enquanto caminhava eu vi um pequeno lago, não me aproximei muito por causa do aviso do professor, mas era realmente encantador. Acho que caminhei durante uns 20 minutos quando achei uma caverna. Lembrei-me da minha caverna, que agora estava tão longe de mim. Talvez fosse bom estar dentro de uma caverna de novo. Entrei nela e quase que instantaneamente me senti estranho, como se não estivesse cansado, como se estivesse dormindo. Fiquei preocupado com isso, mas por alguma razão gostei daquilo. Olhei para trás e a saída continuava ali, então eu não precisava me preocupar. Continuei a andar. A caverna devia ter uns 3 metros de altura e era feita de rochas cinzentas comuns, sem nenhum ornamento. Talvez já tivessem vindo aqui e levado as pedras preciosas, caso tenha tido alguma. Caminhei até chegar numa gruta grande, mas vazia e sem saída. Era bom estar ali, me lembrava das coisas que deixei para trás.
-Nem tudo você deixou pra trás...
Eu me assustei muito quando ouvi aquela voz, era impossível. Virei-me e vi um espadachim, fantasmagórico, de cabelos vermelhos e uniforme jolnir branco.
-Marcelo...
-Olá. - ele disse com um meio sorriso no rosto.
Agora eu tinha percebido uma pequena névoa branca em volta da sala, provavelmente alguém estava fazendo magia negra contra mim. Tentei achar algum rastro de magia negra, mas não havia nenhum, por outro lado a sala estava inundada em magia branca. Só que magia branca não consegue fabricar ilusões, então...
-Marcelo, eu estou louco?
Considerando tudo que havia acontecido, e o que eu estava vendo, era uma teoria muito plausível...
-Não. Eu estou realmente aqui.
Uma lágrima desceu pelo meu rosto.
-Você está morto.
Não foi uma afirmação, foi uma súplica. Vê-lo agora, na minha frente, dilacerava meu coração.
-Sim. - ele respondeu, perdendo aquele maravilhoso sorriso.
-Perdoe-me...
A dor no peito ficou mais forte, eu podia vê-lo novamente, frio, deitado no meu colo, morto. E eu não pude fazer nada...
-Ângelo, não foi culpa sua.
A raiva subiu pelo meu sangue. Ele poderia estar vivo agora! Ele não estava por minha culpa, eu deixei ele morrer!
-É claro que foi!!! Eu não consegui te salvar, eu sou um fracasso como mago!
Eu sentei no chão, as forças foram se esvaindo de mim.
-Ângelo... por favor, me escuta. Você não é um fracasso, aquilo que você tentou fazer é muito difícil, não é fácil lidar com a morte.
Suas últimas palavras foram tristes, como se ele também tivesse lembranças desagradáveis...
-Por que eu não consegui? Por quê?!
Ele ficou em silêncio por um momento, meu rosto estava molhado, eu não notei a hora que eu comecei a chorar, mas eu estava chorando.
-Ângelo, nós ficamos juntos por pouco tempo... não foi o suficiente para você conseguir me salvar, foi isso, não se culpe.
As palavras... um sentimento puro... isso significa que eu não consegui porque... por que eu não amava o Marcelo de verdade? Como isso é possível?!
-Ângelo.
A voz dele foi como um eco na minha mente, se aquilo não foi amar, então o que é?! Por um breve momento eu lembrei que ele havia me chamado...
-Diga Marcelo.
E pensar que tudo que eu havia construído, todo o sentimento que eu tinha por ele não era forte o suficiente... como pode isso acontecer?
-Ângelo, olhe pra mim.
Não... eu não podia encará-lo, não de novo. Eu não podia ver aqueles olhos vermelhos me encarando. Mas... eu precisava. Eu precisava poder encarar o fato de que ele era o meu passado, que eu o amei, muito, mas que nem isso fora capaz de trazê-lo de volta para mim. Levantei meu rosto, e o encarei. Ver aquela preocupação em seu rosto fez as lágrimas caírem com mais fervor. Mesmo após a morte, ele ainda se preocupava comigo...
-Eu vim aqui por um motivo Ângelo. A única pessoa morta nesta caverna sou eu, você não pode ter medo de continuar sua vida, era a minha hora de partir, mas não é a sua.
Mas... o quê...?
-Por que você está dizendo isso?
Ele baixou o rosto, colocou as mãos no seu bolso e ficou quieto por um momento. Os poucos segundos que se passaram pareceram horas arrastadas... a dor no meu peito se intensificara com o que eu achava que ia ouvir agora, o que só piorou quando minhas expectativas viraram realidade:
-Porque... você gosta do seu amigo. - ele disse sem olhar para mim. - E porque você está se prendendo, assim como fez comigo. Você precisa dar uma chance a si e a ele.
Aquelas palavras me cortaram, a verdade doía como jamais doera antes. A verdade que por tanto tempo eu menti, até mesmo para mim, vindo à tona, desse jeito, e pelo Marcelo. Acredito que se tivesse uma forma de morrer de angústia, eu estaria morrendo agora.
-Não fique triste com isso Ângelo.
Ah claro, meu ex-namorado, o qual morreu nos meus braços por eu não amá-lo ao ponto de trazê-lo de volta a vida diz que eu gosto de outro cara, é lógico que eu deveria me sentir muito bem mesmo!
-Como eu poderia ficar feliz?! Por favor, me diga como eu conseguiria ver felicidade, eu me sinto te traindo!
Todo o tempo e agora que havia notado. Era isso. Todo o tempo eu não queria pensar no Miro, porque eu estava traindo o Marcelo. Eu não ia dar meu coração para mais ninguém, apesar de isso doer, muito. Eu gostava do Miro... ele estava lá quando eu me senti sozinho. Ele sorriu para mim, ele me fez ficar vermelho, ele me abraçou, me ajudou, e me apoiou. Eu nunca quis admitir isso, mas ele tinha feito o que o Marcelo fizera, ele fez de tudo por mim, e eu o magoei, e eu não pude retribuir o que ele sentia.
O Marcelo levantou a cabeça, um meio sorriso apareceu em seu rosto. Ele caminhou até mim, e se ajoelhou ao meu lado. Parecia que uma lágrima estava descendo do rosto dele, mas acho que era minha imaginação...
-Fico feliz que você tenha gostado tanto de mim Ângelo, mas... agora seu coração pertence à outra pessoa.
As palavras vieram até mim, com um significado diferente dessa vez. Ele queria que eu me deixasse levar pelo meu coração, mas...
-Por que você quer que eu pare de resistir ao Miro?
-Porque... – ele fez uma pausa, parando um pouco para pensar nas próximas palavras. - eu quero te ver feliz. Se eu não posso mais fazer isso, talvez ele possa. É isso que é amar, no fim das contas... querer ver a felicidade de quem você ama, a qualquer custo.
Eu o entendia. Nossa, como eu o entendia. Tantas vezes eu disse que não queria ele perto de mim, eu não queria que ele se machucasse... eu o amei. Na verdade, eu ainda o amo, mas agora o amo de uma forma diferente, eu o amava como se deve amar alguém que já se foi, ele não tinha levado meu coração embora, ele tinha deixado muito de si comigo, eu ainda gostava muito dele, e jamais o esqueceria, mas...
-Eu não queria ter me apaixonado de novo.
Mas eu realmente não suportaria outra perda.
-Ninguém manda no coração. - ele disse sorrindo.
Sequei as lágrimas do meu rosto.
-Ângelo, não posso ficar aqui mais tempo e não poderei voltar mais.
Ele se levantou, segui seu exemplo.
-Eu sinto sua falta. - eu finalmente admiti.
Tentei tocar o seu rosto, mas minha mão o atravessou. Acho que era isso... eu o tinha perdido...
-Nós ainda vamos nos ver... um dia. Continue sua vida e você me fará feliz.
Seguir minha vida... para onde?
-Eu... vou tentar.
Aparentemente minha resposta não foi muito convincente.
-Ângelo, você tem que conseguir. Seja confiante.
Minha cabeça estava um caos completo, ser confiante sobre o futuro era um pedido demasiadamente grande...
-Eu não sou você, Marcelo. Eu não tenho sua confiança.
Ele sorriu aquele sorriso destruidor, aquele que aquece a alma, o que tirava todas as minhas incertezas e agora fazia todas vir à tona.
-Mas eu confio em você. Se cuide.
Eu não queria dizer adeus uma segunda vez, mas... talvez fosse melhor eu continuar a vida. Não sei como, não sei porque, mas eu precisava fazer isso. Por mim e por ele.
-Te amo. - eu disse.
Ele pousou a mão no meu rosto. Não que eu tenha sentido algo, mas eu entendi a intenção.
-Eu sei, sempre seremos amigos.
Eu digo que o amo e recebo um “Eu sei”, por que será que eu não me surpreendi com isso?
-Você ainda é convencido.
Ele riu e começou a desaparecer, eu o vi partindo pela segunda vez. A névoa branca começou a desaparecer junto.
Sentei novamente e fiquei ali um tempo, não sei quanto ao certo, tentando entender o que vira. Eu realmente vira o Marcelo, eu estava feliz por isso e estava mais aliviado, um pouco da culpa foi embora, mas como isso tinha acontecido? Como ele conseguiu vir para o mundo dos vivos? Talvez fossem perguntas que pudessem esperar um pouco mais, com a fome que eu estava provavelmente já era meio dia. Era hora de ir. Levantei-me e estava quase saindo da gruta quando vi um brilho no meio da gruta, no chão. Parecia ser uma pedra, transparente, parecia um... DIAMANTE! Corri para pegá-lo, mas ele estava preso no chão e eu não conhecia magia de terra. Como eu poderia tirá-lo dali?
Eu não conhecia magia de fogo para derreter as pedras em volta também. Apesar de que... se eu conseguisse abaixar bastante a temperatura das pedras, elas ficariam mais duras e consequentemente mais frágeis, daí eu só precisaria de algo forte o suficiente para partir as rochas e a partir da rachadura eu poderia terminar de quebrar as pedras. Até que era uma boa ideia. Primeiro eu precisava deixar as pedras frágeis.
-Congelar.
Agora era só fazer alguma rachadura.
-Lança de Vento.
Não surtiu muito efeito, mas talvez precisasse de mais força.
-Lança de Vento, Lança de Vento, Lança de Vento.
As três lanças bateram nas pedras e fizeram rachaduras.
-Isso!!
As pedras começaram a fazer barulho, as rachaduras fizeram outras rachaduras e as pedras se quebraram, mas para meu azar, tinha um enorme buraco abaixo delas e eu estava encima de uma rocha que estava se partindo. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa eu estava caindo.
-Flutuar!
Eu estava flutuando, mas algumas rochas iam me acertar, eu precisava me defender.
-Parede de gelo!
Eu tinha lido sobre usar duas magias ao mesmo tempo e sabia o quão difícil era, mas eu tinha tentado com magias do mesmo tipo, com magias de tipos diferentes era ainda mais exaustivo. As pedras começaram a bater na parede que eu tinha feito acima de mim, porém o diamante estava caindo e ele não tinha batido na parede de gelo.
-Droga...
O único jeito era largar a parede e ir atrás do diamante e foi o que eu fiz, mas flutuar era muito lerdo, eu precisava de algo mais rápido. Lembrei de uma magia de levitação que dizia ser rápida, mas eu nunca testei, era uma boa hora. Saí debaixo da parede de gelo e gritei.
-Aladooo!!!
Duas asas de gelo nasceram nas minhas costas. Eu não acreditei que aquilo fosse me manter no ar, mas como eram mágicas, elas me mantiveram. Mergulhei. Eu precisava achar rápido o diamante, aquela magia era muito forte, me cansava muito. Vi um brilho tímido no ar, envolto de algumas pedras. Era minha chance, tentei ir mais rápido, me desviei das pedras, agarrei o diamante e comecei a subir rápido. Quando estava quase saindo daquele buraco a caverna começou a tremer. Ótimo, agora além de tudo ela ia desmoronar, o que mais faltava? Sai do buraco e continuei voando em direção à saída, me desviando das pedras que caíam do teto. Quando eu estava quase saindo uma pedra acertou minha asa direita e a quebrou. Tentei permanecer no ar, mas foi muito difícil. Consegui só o suficiente para sair da caverna, cai na grama, quebrando também a outra asa. A caverna desmoronou, até que só havia ruínas.
Eu estava ofegante, eu tinha usado várias magias ao mesmo tempo e agora eu estava admirando o diamante na minha mão. Se eu não estivesse tão cansado eu poderia ter saído pulando de felicidade. Coloquei o diamante no meu bolso, prendi a magia negra e tentei voltar para a cidade. Não demorou muito para eu ouvir vozes conhecidas, como a do meu professor.
-Olá Ângelo, como está indo a exploração? E... por que você parece tão cansado?
Eu quase não conseguia mais ficar em pé, aquilo tinha realmente me consumido...
-Professor... deixa eu respirar um pouco...
Ele me olhou meio surpreso, mas consentiu.
-Tudo bem.
Nós nos sentamos. Fiquei um bom tempo com os olhos fechados, só me concentrando em respirar. Só comecei a falar quando achei que já tinha forças suficientes.
-Eu achei uma caverna.
Do jeito que ele me olhou, considerei ter dito alguma besteira...
-Não Ângelo, você não achou, não tem caverna nessa floresta.
É porque ela não caiu na sua cabeça para você dizer isso!
-É claro que tem! Eu quase morri nela!
Isso não melhorou a cara de ponto de interrogação dele.
-Como assim?
Bem, analisando os fatos, talvez a história não soasse tão sincera, mas não custava nada tentar...
-Ela desmoronou.
A pele dele empalideceu um pouco...
-Conte-me a história toda.
Eu não estava em condições físicas e nem mentais para tal, mas...
-Eu estava andando, daí achei uma caverna.
-Sim, continue. - ele disse, colocando a mão embaixo do queixo.
-Daí eu entrei nela e...
Eu não sabia se queria contar sobre o Marcelo, provavelmente ele acharia que eu estava louco. Mas como eu também achava, provavelmente não faria muita diferença.
-E eu vi o fantasma de uma pessoa.
O rosto do Marcelo voltou à minha mente, a tentativa dele de me tocar...
-Hum...
O professor pareceu considerar aquilo.
-E eu conversei com o fantasma.
Ele me olhou com um olhar de interesse maior, talvez ele achasse que eu estava mentindo.
-Não é mentira, eu tenho como provar, eu achei esse diamante lá dentro.
Peguei o diamante do meu bolso e mostrei a ele. Realmente um diamante era algo raro, mas pela cara que ele fez parecia ser mais raro do que eu imaginava.
-Ângelo, isso não é um diamante...
Não acredito...
-Você está me dizendo que eu quase me matei para pegar isso por nada?
Existem momentos em que você sente uma vontade louca de tirar das profundezas do seu eu aquela palavra que poderia expressar tudo... aquela que você seria excomungado se a gritasse dentro de uma igreja, ou no meu caso, na frente do meu professor. Pelo bem da minha educação eu guardei todos os meus palavrões muito bem guardados, respirei fundo e o encarei novamente.
-Não, não, você não está entendendo... - ele começou. - eu acredito que você tenha achado uma caverna, mas volto a dizer, não tem nenhuma caverna nesta floresta.
Bem, vamos lá. Eu achei uma caverna, eu estava na floresta. Se eu achei uma caverna enquanto estava na floresta, então existe uma caverna na floresta. Eu não matei minhas aulas de Lógica do ensino básico!
-Não entendi.
Ele levantou um pouco mais a pedra, para eu vê-la melhor.
-Essa caverna que você achou foi fruto dessa pedra. É uma pedra do sonho.
Dizer que eu fiquei pasmo é muito pouco. Uma pedra dos sonhos! Eu já tinha lido algumas vezes sobre essa pedra, era uma pedra que tinha poderes mentais mais poderosos, mas até onde eu sabia ela era uma lenda!
-Professor, não pode ser... – eu disse pasmo.
-Eu também não acreditaria, - ele disse entusiasmado. - mas é a única explicação e definitivamente isso não é um diamante.
Ele mostrou o orbe dele, era de um metal prateado, mas não era prata, era mais bonito e no meio tinha uma pedra transparente, mas com menos brilho que a minha.
-Viu? Isso é um diamante, a sua não é tão poderosa quanto um diamante com magias de gelo ou vento, por exemplo, mas com magias da mente essa sua pedra pode fazer enormes feitos.
Definitivamente isso poderia me ajudar bastante com a magia negra, e acredite, eu precisava de muita ajuda com ela. Mas o quão boa ela era com a magia de gelo?
-Ela é tão forte quanto uma esmeralda com as magias que não são mentais?
Ele pensou um pouco antes de me responder.
-Provavelmente sim.
E finalmente isso encerrava o assunto, já ajudaria o suficiente!
-Perfeito!!! Eu posso fazer um orbe com ela!
Meu rosto se abriu num sorriso, finalmente as coisas estavam começando a dar certo!
-Seria um orbe realmente fantástico, se você o fizer com o metal certo.
E lá se vai minha felicidade... Ok, isso era um problema. Eu não tinha dinheiro para comprar um metal bom o suficiente para a pedra e eu não ia tropeçar em um no meio da floresta, eu acho...
-Ah, droga... talvez demore um pouco para eu conseguir um bom metal.
Ele me avaliou por um momento e disse:
-Como seu professor, eu sinto a necessidade de ajudá-lo. Eu tenho o metal perfeito para você, mas vou cobrar por isso.
Ah, que legal da parte dele, mas acho que ele tinha esquecido que não tenho apoio financeiro nenhum por aqui, fora o que o governo me dá.
-Desculpe-me professor, mas eu não tenho dinheiro para isso.
Ele estranhou minha recusa.
-Não me recordo de ter citado dinheiro, quero que você me faça alguns favores em troca.
Isso sim era uma excelente proposta!
-Eu faço, faço o que você quiser.
Minha felicidade estava voltando à tona e ele notou isso.
-Ótimo, depois conversamos sobre suas tarefas. Vou levar a pedra e o metal para um ferreiro, te entrego assim que ela ficar pronta.
Que perfeito!!!
-Obrigado professor, de verdade.
Eu o abracei, meio de lado.
-Não me agradeça, você terá muito trabalho jovenzinho.
Eu ri.
-É justo.
Mas uma coisa estava me incomodando, se a pedra fabricou a caverna e a caverna era um sonho...
-Professor, o fantasma também foi criado pela pedra?
Essa possibilidade era um pouco melhor do que aceitar minha loucura, mas não muito.
-Não, a pedra não tem tanto poder. Ele se aproveitou do lugar que a pedra criou para conseguir te ver. É mais fácil um fantasma ir para um sonho do que para o nosso mundo.
Isso fazia algum sentido. Talvez ele já estivesse tentando fazer isso a algum tempo... isso explicaria meus sonhos estranhos.
-Ângelo, você precisa se alimentar, vá encontrar a Aglaope, ela está logo ali, depois daquele grupo de guerreiros. - ele disse, apontando para uma árvore próxima. - Ela vai te mostrar onde você vai almoçar.
Isso era ótimo, eu estava com fome.
-Tudo bem, obrigado por tudo professor.
Era bom contar com ele, eu me sentia menos perdido nesse lugar.
-De nada e... tente guardar segredo sobre isso meu jovem.
Eu não tinha pensado nisso, a pedra era realmente rara, não era bom eu sair espalhando sobre elas, mas...
-Posso contar só para três pessoas?
Ele me lançou um olhar torto, mas assentiu com a cabeça.
-Sim, mas que sejam de absoluta confiança... - ele disse suspirando. - Mas agora vá almoçar.
Sim, era só o que eu queria no momento, ou não...
-Até mais tarde então professor.
Comecei a andar em direção à Aglaope, só virando de costas uma vez para ver o professor admirando a pedra.

Era estranho morar com pessoas da sua idade, elas eram mais alegres e falavam mais, eu me sentia um velho perto deles, mas era uma sensação até que boa. Conversamos e rimos muito durante o café da manhã. O Glaucos levantou meu quimono para ver minhas costas e disse que estava bem melhor. Eu teria me sentido assediado, se não fosse o Glaucos.
Enquanto caminhávamos para a academia eu ouvi uma voz conhecida dizendo Oi para mim de longe. Quando me virei vi o Sileno. Fiquei feliz em vê-lo, mas acho que o Miro nem tanto, o que deveria ser loucura da minha parte, afinal, eles nem se conheciam.
-Oi Sileno!
Era tão bom vê-lo, ele tinha sido muito legal na praia no meu primeiro dia aqui.
-Ontem não te vi por lá rapaz, oi pra vocês dois.
Eles responderam com um aceno.
-Ah sim, esses são Glaucos e Miro.
Ele demorou o olhar um pouco mais no Miro do que no Glaucos.
-Eu me lembro do guerreiro.
A cara do Miro realmente não foi das melhores, o que será que deu nele? Ele estava contente até agora...
-Ângelo, foi você que arrumou confusão ontem na saída? Eu ouvi uns boatos dos meus colegas.
Eu tinha esquecido essa parte. Provavelmente hoje eu seria considerado o maior desequilibrado mental do lugar...
-É... foi.
Eu abaixei a cabeça um pouco, eu não havia pensado nas consequências do meu ato impensado.
-Nossa, eu não achava que você era cabeça quente.
Eu também não...
-E eu não sou.
Ele abriu um pequeno sorriso, o qual eu entendi quando ele começou a falar.
-Imagine se fosse né?
Ele riu, eu vi as mãos do Miro se fechando em dois punhos. Eu tinha que fazê-lo ficar calmo.
-Miro, eu nem imagino por que você está tão nervoso, mas acalme-se!
Pareceu surtir efeito, ele respirou e relaxou um pouco.
-Ah, foram probleminhas, nada demais Sileno.
Ele tinha notado que o comentário não foi tão divertido...
-Entendo.
O Glaucos começou a conversar com o Miro enquanto eu continuava minha conversa com o Sileno. A despedida dessa vez foi ainda mais interessante, cada um foi para um bloco.
A aula da manhã foi sobre o uso de duas magias diferentes ao mesmo tempo. O professor explicou como se fazia e deu referências bibliográficas, além de ter pedido um relatório para a próxima segunda sobre o que foi aprendido nesta aula junto com uma demonstração, também na segunda. Isso ia dar trabalho. O sinal tocou e eu fui para o almoço, novamente o Caronte disse que ia para a biblioteca, o que não foi muito bom, por aumentar minhas suspeitas, mas eu achei melhor não dizer nada sobre isso.
-Olá.
Tomei um susto. Era uma maga branca da minha sala, ela era muito bonita, tinha os cabelos brancos arrumados numa longa trança e sua pele parecia perolada.
-Olá.
Depois daquela aula onde cada um dos presentes me encarou pelo menos uma vez, eu achava que eu já tinha sido retirado completamente da lista de todos da academia como possível candidato a uma nova amizade.
-Seu nome é Ângelo, né?
Bem, pelo menos eu podia mostrar para alguém que posso ser simpático.
-Sim, e o seu?
-Higéia. Você está gostando daqui?
Isso era algo difícil de responder. Eu gostava dos amigos que estava fazendo, mas eu não estava no que podemos dizer de fase boa da vida. Eu não tinha chegado nem perto de esquecer a morte do Marcelo, eu tinha vários “inimigos” aqui, além de que eu tinha saudade da minha mãe e da Carol. Fora o fato de que apesar de eu odiar admitir, o Miro chamava minha atenção, e isso era terrível! Na verdade, talvez eu só estivesse tentando preencher o buraco que a morte do Marcelo deixou, mas com certeza esse era um jeito absurdamente errado de fazê-lo, e eu tinha decidido que não o faria!
Considerando tudo que pensei, eu demorei um pouco para respondê-la:
-É diferente, mas acho que estou me acostumando.
Pela cara de ponto de interrogação que ela fez, ela esperava uma resposta maior. Na verdade até eu esperava uma resposta maior, mas eu não ia contar meus problemas para a pessoa que eu conheci a um minuto atrás.
-Legal... por curiosidade, você é amigo daquele arqueiro de vento?
E eu que cogitei a possibilidade de ela querer algo comigo... pobre ilusão...
-O Glaucos?
Ela assentiu com a cabeça. Eu sabia que o Glaucos era lindo, mas não sabia que ele fazia tanto sucesso ao ponto de ela me abordar para tentar chegar a ele.
-Sim, sou.
Ela pareceu meio sem jeito de continuar.
-Será que você poderia...
Ela nem precisava terminar a frase para eu entender.
-Te apresentar a ele?
Novamente ela assentiu com a cabeça. Seu rosto ficou vermelho.
-Acho que posso fazer isso sim.
Ela sorriu e me beijou no rosto.
-Obrigada, você é um amor.
Considerei isso um ato sincero, então aquilo melhorou um pouco o dia.
-Disponha.
Entramos no refeitório e logo vi o Glaucos acenando para mim, de longe, ao lado dele estava o Miro. Eu precisava falar com o Miro a sós, mas como fazer isso? A resposta veio quando eu vi o rosto da garota ficar ainda mais vermelho quando ela viu o Glaucos.
-Bem, vamos lá? - eu disse a ela.
-Uhum...
Era engraçado ver alguém envergonhado, normalmente este era o meu papel. Caminhamos até a mesa onde eles estavam sentados e a cada passo a menina parecia que ficava mais vermelha.
-Olá, bem, preciso apresentar a vocês, minha amiga, Higéia.
-Olá Higéia. - disse o Glaucos, com um olhar de dúvida para mim.
-Oi. - disse a maga, muito acanhada.
-Miro, você vem pegar comida comigo enquanto o Glaucos faz companhia para a Higéia?
O olhar do Glaucos foi do tipo “Nossa Ângelo, como você é sutil”, mas eu nem liguei. Puxei o Miro da cadeira e deixei os dois lá. Quando já tínhamos nos afastado um pouco o Miro disse:
-Quem é ela?
Isso não era tão importante agora...
-Uma menina que quer ficar com o Glaucos, mas isso não importa muito, eu queria ficar sozinho com você, o que está acontecendo?
Ele não esperava por isso.
-Sobre o que você tá falando?
Eu fiquei olhando para os tipos de comida, então notei que o outro mago de gelo estava perto de mim e comecei a colocar no prato só o que ele pegava.
-Miro, por que você estava tão nervoso hoje de manhã?
Mais uma vez eu o vi mais estressado do que de costume.
-Ah, isso, aquele cara tava te zuando!
Ok, eu não estava entendendo muita coisa... ele ficou daquele jeito só por causa disso?
-Era só brincadeira.
Meu argumento não melhorou nem um pouco o humor dele...
-Mesmo assim.
Ficamos quietos por um momento.
-Você tem certeza que é só por isso?
Nossos olhos se encontraram por um breve instante, eu encarei aqueles olhos avermelhados que tanto me lembravam os do Marcelo... tanta coisa passou pela minha mente, tantas vontades, tantos desejos impossíveis, sonhos destruídos, sentimentos reprimidos, tudo jogado na minha cara pelo simples deslumbre daqueles olhos vermelhos.
-Talvez não.
Ele poderia simplesmente ter dito que sim, que só não achava isso correto e coisa do tipo, depois ele podia namorar alguém e me provar que eu e o Glaucos estávamos errados sobre ele gostar de mim, mas nãoooo, claro que ele tinha que dizer que não era só aquilo.
-Então...?
Havíamos acabado de pegar a comida e precisávamos ir para a mesa, na qual o Glaucos parecia estar jogando seu charme encima da menina.
-Miro, acho melhor pegarmos outra mesa.
Aquela conversa só tinha piorado meu ânimo, mas era melhor acabar com aquilo de uma vez do que sofrer com o incerto aos poucos.
-Se fizermos isso vai ficar muito na cara que você quer deixá-los a sós, mais do que você já deixou. Podemos terminar essa conversa outra hora?
Ele não me encara enquanto dizia isso.
-Podemos sim...
É claro que não podíamos! Tínhamos que acabar com aquilo de uma vez o mais rápido possível! Apesar de que... será que eu estava preparado para essa conversa?
-Você não vai ficar chateado?
Eu não respondi, eu não tinha o que responder. Mentir não adiantaria, então o silêncio foi o sim que nunca foi dito. Fui em direção à mesa. De relance vi o Crisaor, à minha direita, sentado numa mesa, nos encaramos por um momento, mas foi só isso.
Posso dizer que a escolha do prato alheio foi um sucesso, a comida que o outro mago escolheu era ótima. Além disso, a Higéia parecia bem feliz em ter seu momento com o Glaucos, mesmo que com eu e o Miro juntos. Enquanto eu comia fiquei ouvindo eles conversarem, o que foi interessante. Descobri que o Glaucos vinha de uma família relativamente rica, o que explicava aquela lembrança ruim dele, e que ele era o melhor da turma na outra academia, algo que ele se orgulhava bastante. Fiquei me perguntando se eles não iam comer, mas pelo que parecia eles estavam mais interessados um no outro. Quando o sinal tocou os dois lamentaram, mas o Glaucos prometeu vê-la no dia seguinte. Nós nos despedimos e eu voltei para a sala com a Higéia, a qual estava suspirando. Não quis tirar ela do mundo de sonhos dela, então fiquei em silêncio.
Mais uma tarde de treinamento na arena, e novamente eu treinei com o Caronte, eu estava ficando cada vez menos cansado ao usar magia negra e isso era muito bom, apesar de ainda assim eu estar bastante cansado quando o sinal soou. Despedi-me do Caronte com um abraço, o qual ele recebeu surpreso, mas muito feliz.
A cena seguinte me pareceu um dejá-vù. Novamente eu estava sentado, olhando a cidade sob a luz fraca do sol se pondo, porém dessa vez sem confusões. Não tardou para que o Glaucos chegasse, seguido pelo Miro. Fomos para casa conversando sobre o que poderíamos fazer no final de semana. Eu os alertei que no sábado ia ver minha mãe e no domingo ia fazer a pesquisa, não sobrando muito tempo livre. Eles iam passar o final de semana em suas casas, que ficava em outra cidade, não muito longe dali.
Ao chegarmos em casa, pedimos a janta e cada um foi fazer uma coisa. O Miro foi polir sua montante, enquanto o Glaucos estava escrevendo num caderno, o que eu achei que fosse um diário ou algo do tipo, e eu fiquei do lado de fora, sentindo o vento. Não demorou para a comida chegar. Após a janta eu me troquei com magia, o Glauco e o Miro se trocaram normalmente. Ficamos em nossas camas, conversando e eu já até conseguia olhar para o Miro sem ficar muito envergonhado. Eu dormi enquanto o Miro falava sobre um “passeio” que haveria semana que vem. Hoje meu sonho foi com o Marcelo, ele estava com o uniforme jolnir, porém branco, ele me olhava de forma triste, como se quisesse dizer alguma coisa, mas quando ele fez menção de falar, eu acordei.
Os dias seguintes foram parecidos. Na academia estávamos ficando nivelados em conhecimento. Meus desentendimentos com o Crisaor não continuaram, talvez ele tivesse ficado com medo após ter visto a morte tão perto. A voz na minha mente não voltou, e eu estava prestando uma atenção extra ao Caronte, apesar de odiar fazer isso. Minhas perícias com a comida de lá estavam melhores, eu já entendia o que me fazia mal e o que era gostoso. A cada dia que se passava minha amizade com meus colegas de quarto se fortalecia, de forma mais forte com o Miro, apesar de não termos conseguido terminar aquela conversa. Ele gostava de me provocar, o que me lembrava o aviso do Glaucos a dias atrás, o qual eu esperava fielmente que estivesse errado. Não que eu não gostasse do Miro, eu gostava, mas esse era o problema. Eu não tinha o direito de gostar de ninguém, ainda mais quando eu perdi meu primeiro amor daquele jeito... Sem contar que o fato de eu ainda vê-lo em sonhos não ajudava muito. Na sexta eu me lembrei de levar a roupa suja para a lavanderia e pegá-las no sábado pela manhã. O Miro e o Glaucos foram para suas casas após eu prometer pela décima segunda vez que ficaria bem sozinho. De tarde eu vi minha mãe, contei tudo que aconteceu para ela, fui repreendido por entrar numa briga, mas ela ficou feliz por eu estar me acostumando. Ela disse que estava vendo um emprego como professora na academia de lá. Ela também contou sobre um mago que ela conhecera e que pelo que parecia eles iam sair juntos amanhã. Meu domingo foi dedicado aos estudos. Fiquei o dia inteiro fazendo o relatório na biblioteca, quando cheguei em casa o Miro e o Glaucos já tinham voltado. Ambos me receberam com um abraço. Seguimos a rotina de pedir a janta, jantar e ficar conversando até cair no sono. Pela primeira vez desde que eu chegara aqui, tive uma noite sem sonhos.
Quando eu acordei já havia outra pessoa acordada no quarto, o Miro, o qual estava na minha cama, sentado, olhando para o outro lado.
-Não quis te acordar.
Ele falara baixo para não acordar o Glaucos, segui seu exemplo.
-Não tem problema.
Por algum motivo ele não olhava para mim, e seu rosto não estava muito feliz.
-Acho que temos uma conversa para terminar.
Isso explicava o humor não muito festivo.
-Sim, temos.
Acredite, meu humor não estava muito melhor que o dele...
-Eu pensei muito sobre aquilo e... desde que você chegou, eu me sinto diferente.
Ah não...
-Em que sentido?
Pela primeira vez ele me olhou e eu, infelizmente, reconheci o olhar... mas eu queria estar enganado...
-Eu fico mais calmo quando estou perto de você e...
Minhas mãos estavam para fora dos lençóis, ele notou isso e segurou uma delas, senti o calor que emanava dele, e era um calor tão bom... bom demais para eu permitir... Na hora eu entendi a sensação que ele emanara quando me defendeu do Crisaor, não era amizade... era amor.
-Miro, eu... - eu soltei minha mão da dele - eu não posso...
Dor atravessou o meu peito.
-Por quê?
Seu rosto expressava tristeza e um pouco de dor, eu me sentia muito mal por isso.
-É complicado explicar...
Eu sabia que uma hora eu teria que abrir o jogo, mas a situação não poderia ser pior.
-Talvez eu entenda, eu só quero saber isso, depois não vou te atormentar de novo.
Se ele continuasse a me encarar eu ia começar a chorar, então comecei a contar.
-Você já se perguntou por que eu viria pra um lugar totalmente estranho, o qual era quase que visto como inimigo, deixando minha mãe e amigos para trás?
Desviei o olhar do dele, mas ainda podia sentir o calor da mão dele perto de mim.
-Sim. – ele respondeu, com a voz arrastada.
-E o que você pensou?
Houve um momento de silêncio, até que ele respondeu:
-Eu não entendi porque você fez isso.
Toda a história passou como um filme na minha mente, meu coração doía cada vez mais, e quando eu comecei a falar, a sensação só piorou...
-Eu fiz isso, Miro, porque eu estava indignado com várias coisas de lá. Aquela nação matou a única pessoa que eu já gostei, de verdade, em toda a minha vida.
Seu rosto ficou sombreado pela dor.
-Eu tentei salvá-lo, me disseram que era possível, mas eu não consegui... eu falhei. A minha única vontade era acabar com aquele sistema nojento que havia matado a primeira pessoa que viera falar comigo, a primeira pessoa que me fez sentir o que é ter um amigo e a primeira pessoa que me mostrou o que era gostar de alguém.
Agora definitivamente ele estava muito mal, ele não me encarava e sua cabeça estava abaixada, mas eu pude ver uma lágrima no rosto dele.
-Eu não posso gostar de outra pessoa... - as palavras o cortavam, e me cortavam, mas precisavam ser ditas. - eu não vou fazer outra pessoa sofrer de novo... e também não consigo suportar a dor de mais uma perda...
-Entendo... - sua voz fora quase um sussurro.
Eu o abracei, ele me abraçou de volta, não com o calor que eu esperava, mas abraçou. Eu não sabia o que era pior, se pensar em como ele estava ou relembrar aquilo. Ele se soltou e secou a lágrima do seu rosto, depois se levantou e foi para o banheiro. O barulho da porta se fechando fez o Glaucos acordar, ele se virou e se surpreendeu em ver um Ângelo sentado na cama com uma lágrima descendo pelo rosto.
-Ângelo, o que...?
-Você estava certo Glaucos...
Ele olhou para a cama do Miro e entendeu, eu comecei a chorar.
-Eu sinto muito...
O clima depois daquilo não podia estar pior, era como se alguém tivesse morrido... e eu sei como é essa sensação. Hoje teria uma exploração por uma floresta próxima, para nos acostumarmos a caçar itens valiosos para o próprio sustento. Eu estava bastante empolgado para isso, pelo menos até acordar.
Assim como todos os dias tomamos café, nos arrumamos e fomos para a academia, a diferença é que hoje o caminho foi silencioso. Assim que entramos na academia eu me despedi deles e fui para a minha sala, com um peso extra na consciência.

Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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