Não foi difícil achá-la, ela estava indicando uma mesa azul mágica para algumas pessoas. De qualquer forma fui até ela.
-Bom dia.
Eu ainda aparentava um pouco de cansaço, eu esperava que ela não notasse...
-Olá Ângelo, se divertindo?
Seu olhar deixou claro que aquele detalhe não tinha passado despercebido.
-Ah sim, você nem imagina o quanto eu já me diverti hoje. - eu disse, fingindo uma voz de mistério.
Ela riu, eu não havia mentido, só havia satirizado algo que não era uma sátira.
-Já almoçou?
Uma vez mais sua voz me lembrou a de uma mãe preocupada, o que foi tocante.
-Ainda não, eu pretendo fazer isso agora.
Seu rosto se abriu num sorriso doce.
-Tudo bem então, - ela disse enquanto apontava na direção de uma mesa azul - é naquela mesa ali.
Achei bastante estranho o móvel fora do comum, mas provavelmente algum mago o havia conjurado.
-Bem, obrigado Aglaope, tenha um bom dia.
Ela acenou e eu caminhei em direção à mesa azul, quando uma mão cobriu meus olhos.
-Adivinha quem é?
Tateei as mãos no meu rosto. Era uma mão grande, com longos dedos finos, uma mão de um arqueiro. Achei bobagem eu ter feito isso porque só a voz já era irreconhecível, aquela voz de jovem sedutor.
-Uma ninfa. - eu respondi, fingindo alguma esperança.
-Tão bonito quanto. - ele respondeu, aparentemente contente.
Bem, e essa era a prova definitiva de que eu realmente sabia quem era.
-Glaucos, eu sabia que você era desumilde, mas chegar a esse nível?
Nós rimos e ele tirou a mão da frente dos meus olhos.
- Achei que ia almoçar sozinho, - eu disse, enquanto ele andava ao meu lado. - que bom que te achei.
-É verdade, é sempre bom me ver não é mesmo?
Lancei o olhar mais sarcástico que consegui fazer na hora.
-Ah Ângelo, é verdade... não é?
Ele fez uma cara de coitadinho que me fez rir muito. Tudo bem que não funcionou muito bem porque eu tinha que olhar para cima para falar com ele, mas ainda assim foi muito engraçado.
-Ok Glaucos, você é simpático.
Pelo olhar de choque dele, parecia que eu tinha dito que ele era sem graça ou algo do tipo...
-Ha, que abuso. - ele disse rindo.
Chegamos à mesa e parecia que hoje o cardápio estava ainda mais estranho do que de costume, como se fosse possível.
-Glaucos...
Ele entendeu meu pedido na hora.
-Ok, eu vou colocar sua comida.
Ele pegou algumas coisas e colocou no meu prato. Depois se serviu também. Olhei para aquelas coisas e fiquei pensativo.
-Tem certeza que nada vai me matar?
De certa forma eu não falei muito sério, mas a lembrança do restaurante era difícil de esquecer.
-Se você não comer, tenha certeza que uma hora isso acontece.
Eu ri, mas queria que o Miro estivesse aqui também, eu queria me redimir com ele.
-Queria que o Miro estivesse aqui...
Nós nos sentamos e ele me encarou por um breve instante. Vi um pouco de dúvida em seus olhos.
-É, o clima entre vocês não tá muito bom.
“Não está muito bom” era ainda ser otimista, eu o tinha feito chorar... E ele fizera o mesmo, e no fim das contas, não havia uma culpa em ninguém... eu acho...
-Ah, a situação é complicada...
Considerando tudo, era isso que definia a nossa relação: complicada. Eram tantos fatores interferindo, que... ah, era tudo tão confuso...
O Glaucos retomou a conversa, me tirando um pouco da minha própria mente.
-Achei que você gostasse dele.
Eu também...
-E eu gosto.
Uma sensação de alívio passou por mim, acho que era a primeira vez que eu admitia isso. Seu rosto ficou meio confuso com minhas palavras.
-Então qual é o problema?!
Ah, se fosse simples explicar...
-Eu estava preso a algumas coisas do passado.
É, provavelmente era o jeito mais rápido de explicar toda a situação.
-Já se arrumou?
Ele deixou os talheres no prato e me olhou com firmeza, como ele poderia imaginar que eu conseguiria arrumar a situação nesta manhã? Nem eu sabia que isso seria possível...
-Bem... eu acho que sim.
Um meio sorriso surgiu em seu rosto, e de repente eu me senti... bem. Foi uma sensação estranha.
Ficamos em silêncio alguns momentos, comendo, até que começou a me incomodar.
-Você achou alguma coisa legal, Glaucos?
De certa forma eu me senti meio culpado, eu não havia explorado a floresta muito bem...
-Ah não, só uns gremlins.
Como era de se esperar, eu também não conhecia os monstros daqui. Fico me perguntando a que distância física eu estaria da nação Jolnir.
-Eles são fortes?
O professor havia avisado sobre a possibilidade de acharmos monstros...
-Que nada, foi uma flechada na cabeça de cada um.
Eu ri do comentário, mas fiquei feliz de não achar nenhum monstro, eu não saberia como lidar...
-Eu não achei nenhum monstro.
Ele me lançou o mesmo olhar que o Miro fazia quando eu mentia, o que eu estranhei, eu não estava mentindo, era verdade...
-Se você não achou nenhum monstro, por que seu rosto tá suado?
Hum, isso explicava a expressão, talvez fosse melhor eu lavar o rosto naquele laguinho depois do almoço.
-Bem, acho que é melhor explicar mais tarde.
Aparentemente ele tinha entendido que não dava para eu contar agora e assentiu com a cabeça.
-Ok.
Terminamos de comer e concordamos em procurar a Higéia e o Miro. Eu esperava encontrar o Miro antes para não ficar sozinho com o casal. Para minha enorme sorte, achamos a Higéia primeiro.
-Oi Higéia. - eu disse.
-Oi Ângelo... - ela respondeu com um grande sorriso - e oi Glaucos.
Como sempre o rosto dela ficou vermelho.
-Olá minha querida.
Vi os olhos se encontrando e se entendendo, as expressões se completando, as dúvidas sendo deixadas de lado... ok, eu não ia ficar com o casal!
-Hum... eu vou procurar o Miro. - eu disse, virando-me e indo em direção ao lago, para limpar o rosto.
-Você não quer companhia? - o Glaucos disse.
-Ah não, estou bem. – eu disse, virando-me e indo em direção ao lago.
Não demorou muito para eu achar o lago. Para minha surpresa vi também a pessoa que eu procurava, sentado à beira do laguinho, de costas para mim. Andei até ele e coloquei as duas mãos sobre seus ombros. Ele virou a cabeça e me viu, depois voltou a olhar para o lago.
-Eu poderia ser um monstro, - eu disse gentilmente. - você devia estar preparado.
Ele demorou um pouco para responder, seus olhos tão fixos nas águas rasas...
-Nenhum monstro daqui é tão frio.
A rispidez da sua voz me dizia que ele não estava se referindo ao fato de eu ser um mago de gelo, mas talvez tirar a dúvida não matasse...
-Eu espero sinceramente que você tenha dito isso no sentido térmico da coisa.
Ele não respondeu. Sentei-me ao seu lado.
-Miro, - respirei fundo e continuei: - sobre hoje de manhã...
Um gesto com a mão vindo dele me silenciou.
-Não quero falar disso.
Eu não posso ter sido tão ruim assim... eu só... fui sincero...
-Não, eu... preciso falar, por favor, me escuta.
Ele fechou os olhos por um momento, respirou fundo e os abriu novamente.
-Então fala.
Eu não gostava do jeito que ele olhava para o lago, determinado a não olhar para mim.
-Primeiramente, sinto muito. Eu não quis te magoar, eu gosto muito de você.
Se antes ele estava determinado a não me olhar, a mudança súbita para um olhar de ódio fez meu coração disparar de medo.
-Assim como gosta do morto!
Aquilo doeu demais. Eu ouvi isso pela segunda vez hoje e ambas as vezes foram a mesma dor cortante. Não respondi, eu não ia chorar de novo. Com certeza eu estava num estado deplorável. Eu não o olhei diretamente, acho que nem conseguiria... mas vi sua raiva ficando de lado, sua voz ficou baixa novamente, e veio doce.
-Eu não quis...
Não importava o que ele ia dizer, ele só disse o que tinha guardado, era típico dele. Ele não estava errado em fazer isso, mas...
-Acho que eu merecia ouvir algo assim, mas ouvir duas vezes no mesmo dia é realmente doloroso.
Seu rosto se contraiu em dúvida, ele virou um pouco o corpo para me olhar melhor.
-Como assim ouvir duas vezes?
Definitivamente aquela foi uma péssima ideia, eu estava me magoando e estava o magoando, ainda mais. Eu não podia fazer isso, nem com ele e nem comigo...
-Acho que não vale à pena explicar, não vou te magoar mais, prometo.
Levantei-me, limpei meu quimono e comecei a andar de volta para a mesa azul. Ele me segurou pelo braço.
-Ângelo, tente me entender, eu estou chateado.
Nossa, sério? Eu ainda não tinha notado...
-Eu sei disso, por isso estou indo embora, para você não ter com o que se chatear.
Era um fato simples, com o qual todos poderiam conviver. Obviamente eu estava chateado com a situação, mas... como não se chatear? Como eu queria ficar sozinho e chorar num canto, deixando a morte, a angústia e o aperto no peito saírem.
-Mas eu prefiro você aqui Ângelo.
Ele me desarmou, eu não tinha argumento contra isso e eu não tinha força para lutar.
-Senta de novo, por favor.
Sua voz fora suave, era um pedido sincero. Sentei-me e fiquei olhando para o lago, era realmente muito bonito.
-Agora você pode me explicar o que aconteceu?
Eu nem sabia por onde começar, e sabia ainda menos se devia começar. Respirei fundo e olhei em seus olhos, os olhos vermelhos que me traziam tantas lembranças... algumas que precisavam ficar no passado... Foquei minha atenção em qualquer outra coisa, respirei fundo e disse:
-Eu... terminei o que tinha pendente com o meu ex.
Não era uma frase com muito nexo, mas era o máximo que eu consegui formular na hora.
-Achei que ele estivesse morto.
Explicar tudo aquilo num lugar aberto e no estado de ânimo que eu estava não seria o mais prudente. Não que eu tenha feito alguma coisa prudente com o Miro ultimamente, mas nunca é tarde para tentar.
-Ele está. Posso explicar melhor quando chegarmos em casa?
Ele me avaliou por um momento até acenar com a cabeça.
-Tudo bem então.
Ele colocou seu braço em volta do meu ombro e me puxou para mais perto dele.
-Ângelo, desculpe por ter sido rude com você.
Era bom sentir o calor do corpo dele junto ao meu, era uma das poucas fontes térmicas que me faziam bem.
-Eu mereci...
Eu não achava que tinha feito algo errado em relação a ele, eu não podia deixar de pensar no Marcelo até hoje de manhã. Eu estava jogando um jogo que eu sabia que ia perder, independente de que escolhas eu fizesse...
-Não Ângelo, você foi sincero hoje de manhã.
Bem, ao menos aparentemente ele me entendia...
-Hum, Miro... podemos recomeçar mais uma vez?
Era algo engraçado de se pedir. Pelo meio sorriso que ele deu, ele concordava comigo.
-Já estamos recomeçando pela segunda vez, isso não deve ser muito bom.
Eu retribuí o sorriso. Restabelecer nossa amizade era como voltar no tempo e ver aquela cena na praia, mas com muito mais sentimento, pelo menos da minha parte. Antes ele era o cara que me odiava, agora ele era a pessoa que eu tinha machucado por não poder amar, era o meu colega de quarto, e... bem, ele também era o cara forte que tinha o péssimo hábito de me colocar no colo. Ele era tão fofo... Saindo dos meus devaneios eu encarei aqueles olhos rubros e disse:
-Talvez, mas dessa vez acho que vai dar certo.
Eu segurei a mão dele com as minhas. Por um breve momento eu esqueci tudo que havia acontecido, todas as dores, as angústias e as manchas negras da minha vida. Agora, eu estava apenas acariciando uma mão maior que a minha, com alguns calos, ocasionados pelo uso daquela espada. Um vislumbre veio à minha mente. Era como estar vendo um filme passar, mas eu não era o protagonista. O rapaz forte de cabelos ruivos e aparentemente 12 anos estava ganhando sua primeira montante, ele ficou tão feliz com aquilo, era o sonho dele poder usar uma daquela. Um clarão se passou e eu o vi, mas mais velho, provavelmente com uns 16 anos. Ele estava na frente de um arqueiro de cabelo castanho, ele pegou sua mão e a trouxe para um abraço, no qual ele teve seu primeiro beijo. Mais um clarão e agora ele estava preocupado com a academia superior, ele estava receoso sobre a perseguição desenfreada do Crisaor, e isso o estava matando. Apesar disso, ter o Glaucos ao seu lado era muito bom, sempre foi. Eles estavam se trocando quando a porta se abriu e um mago que ele nunca vira na vida entrou. E com a mesma rapidez que ele abriu a porta, ele saiu, mas sua pele, que era branca como a neve tinha ficado muito vermelha. Ele era gay. Mais um clarão e ele estava na frente do mago, ele seria um motivo de vergonha para ele futuramente, mas ser rude com a pessoa por conta disso era a ideia mais estúpida que ele tivera no dia. Até porque, o mago tinha um corpo muito... Mais um clarão, eu estava vendo um guerreiro, de cabelos vermelhos, muito curtos, enquanto acariciava sua mão. Seu rosto estava sonhador, com a mão livre ele acariciou meu rosto. Eu não tinha entendido o que tinha acontecido, mas certas coisas são belas por não terem uma resposta. Eu deixaria essa memória desse jeito, pura.
-Ângelo...
Eu tive receio de responder. Tive medo de estar vivendo só um sonho bom e que minha voz me faria acordar. Mas... não é certo viver de sonhos...
-Diga.
Minha voz não teve força, era incerta como a voz do meu coração. Mas quem precisava de certezas? Por que buscar o concreto quando toda minha vida era um caos? Não, só uma vez eu ia me deixar levar, não importa o que vai acontecer depois, eu queria esse momento.
-Bem... - ele começou - você sabe que temos a tarde inteira aqui né?
Ele fez aquele sorriso meio sem vergonha que eu só vi uma pessoa fazendo até hoje. Foi meio nostálgico...
Ele colocou minha cabeça no colo dele.
-Agora você já pode corresponder aos meus sentimentos?
A pergunta que foi o pilar de todo o meu conflito do dia. Eu podia fazer isso? Pensar sobre tudo e avaliar a situação seria o mais prudente a se fazer, em vez disso deixei de dizer o que era certo e racional, pra dizer o que eu queria.
-Sim.
Aquela notória palavra, tão simples, foi capaz de tirar um belo sorriso dele. Aquele sorriso me fez ver o porquê aquilo era importante para mim.
-Eu gosto muito de você. – ele disse, meio sem jeito. Depois de tudo, ele fica tímido em só admitir isso, acho que eu nunca o entenderia. E eu amava isso nele.
-Eu também gosto muito de você.
Ficamos daquele jeito por um tempo, ele estava desarrumando, ainda mais, o meu cabelo. Era uma sensação maravilhosa, mas por mais que eu tentasse, não dava para esquecer tudo que havia acontecido.
-Ângelo...
Sua voz me tirou um pouco da confusão que estava minha mente.
-Sim?
-Você tá bem?
Eu tive que pensar para responder.
-Eu não sei. – eu admiti.
Seu rosto se contraiu em dúvida.
-Por quê?
Explicar toda a novela que minha vida estava sendo, resumidamente.
-É tudo muito recente, tudo acontece tão rápido... eu gostava de uma pessoa, ela morreu, eu me senti um lixo e a sensação só ficou pior quando comecei a... reparar no quanto você é atraente...
Nessa parte eu tinha que ficar vermelho, só para não perder o costume.
-Daí a pessoa que eu gostei um dia fala comigo para tentar aliviar a minha consciência e agora eu estou aqui, deitado no seu colo.
Minhas últimas palavras o pegaram de surpresa.
-Você não queria estar aqui?
Definitivamente não era essa a mensagem que eu queria passar.
-Eu quero...
Eu ia começar a chorar com toda aquela pressão.
-Ah não, não aguento mais chorar.
Segurei-me o máximo que pude, eu não era assim, eu não era de chorar!
-Mas se você sente vontade, tem que deixar sair.
Era estranho ouvir conselhos psicológicos de uma pessoa com o porte dele. Talvez eu nunca me acostumasse com isso, mas era fofo de qualquer forma.
-Miro, preciso que o mundo vá mais devagar, preciso respirar.
Ele parou de desarrumar o meu cabelo e me encarou, um pouco sério.
-Eu não posso fazer o mundo ir mais devagar, mas posso esperar o tempo que for pra ficar ao seu lado pra sempre.
Se a lágrima estava esperando por um convite, este com certeza fora um. Eu coloquei a cabeça no peito dele e comecei a chorar. Ele me abraçou. Eu estava cansado disso, nunca fui o tipo de pessoa que chora por qualquer coisa, sempre fui o mago que não fala com ninguém, não se expressa, não ri, não chora, não reclama, mas também não agradece. E quando eu finalmente resolvi mudar essa situação, as coisas mudaram até demais... e agora eu tinha medo. Medo de todo o meu pequeno mundo desmoronar e eu me ver mais perdido do que eu estava agora.

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Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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