Era estranho morar com pessoas da sua idade, elas eram mais alegres e falavam mais, eu me sentia um velho perto deles, mas era uma sensação até que boa. Conversamos e rimos muito durante o café da manhã. O Glaucos levantou meu quimono para ver minhas costas e disse que estava bem melhor. Eu teria me sentido assediado, se não fosse o Glaucos.
Enquanto caminhávamos para a academia eu ouvi uma voz conhecida dizendo Oi para mim de longe. Quando me virei vi o Sileno. Fiquei feliz em vê-lo, mas acho que o Miro nem tanto, o que deveria ser loucura da minha parte, afinal, eles nem se conheciam.
-Oi Sileno!
Era tão bom vê-lo, ele tinha sido muito legal na praia no meu primeiro dia aqui.
-Ontem não te vi por lá rapaz, oi pra vocês dois.
Eles responderam com um aceno.
-Ah sim, esses são Glaucos e Miro.
Ele demorou o olhar um pouco mais no Miro do que no Glaucos.
-Eu me lembro do guerreiro.
A cara do Miro realmente não foi das melhores, o que será que deu nele? Ele estava contente até agora...
-Ângelo, foi você que arrumou confusão ontem na saída? Eu ouvi uns boatos dos meus colegas.
Eu tinha esquecido essa parte. Provavelmente hoje eu seria considerado o maior desequilibrado mental do lugar...
-É... foi.
Eu abaixei a cabeça um pouco, eu não havia pensado nas consequências do meu ato impensado.
-Nossa, eu não achava que você era cabeça quente.
Eu também não...
-E eu não sou.
Ele abriu um pequeno sorriso, o qual eu entendi quando ele começou a falar.
-Imagine se fosse né?
Ele riu, eu vi as mãos do Miro se fechando em dois punhos. Eu tinha que fazê-lo ficar calmo.
-Miro, eu nem imagino por que você está tão nervoso, mas acalme-se!
Pareceu surtir efeito, ele respirou e relaxou um pouco.
-Ah, foram probleminhas, nada demais Sileno.
Ele tinha notado que o comentário não foi tão divertido...
-Entendo.
O Glaucos começou a conversar com o Miro enquanto eu continuava minha conversa com o Sileno. A despedida dessa vez foi ainda mais interessante, cada um foi para um bloco.
A aula da manhã foi sobre o uso de duas magias diferentes ao mesmo tempo. O professor explicou como se fazia e deu referências bibliográficas, além de ter pedido um relatório para a próxima segunda sobre o que foi aprendido nesta aula junto com uma demonstração, também na segunda. Isso ia dar trabalho. O sinal tocou e eu fui para o almoço, novamente o Caronte disse que ia para a biblioteca, o que não foi muito bom, por aumentar minhas suspeitas, mas eu achei melhor não dizer nada sobre isso.
-Olá.
Tomei um susto. Era uma maga branca da minha sala, ela era muito bonita, tinha os cabelos brancos arrumados numa longa trança e sua pele parecia perolada.
-Olá.
Depois daquela aula onde cada um dos presentes me encarou pelo menos uma vez, eu achava que eu já tinha sido retirado completamente da lista de todos da academia como possível candidato a uma nova amizade.
-Seu nome é Ângelo, né?
Bem, pelo menos eu podia mostrar para alguém que posso ser simpático.
-Sim, e o seu?
-Higéia. Você está gostando daqui?
Isso era algo difícil de responder. Eu gostava dos amigos que estava fazendo, mas eu não estava no que podemos dizer de fase boa da vida. Eu não tinha chegado nem perto de esquecer a morte do Marcelo, eu tinha vários “inimigos” aqui, além de que eu tinha saudade da minha mãe e da Carol. Fora o fato de que apesar de eu odiar admitir, o Miro chamava minha atenção, e isso era terrível! Na verdade, talvez eu só estivesse tentando preencher o buraco que a morte do Marcelo deixou, mas com certeza esse era um jeito absurdamente errado de fazê-lo, e eu tinha decidido que não o faria!
Considerando tudo que pensei, eu demorei um pouco para respondê-la:
-É diferente, mas acho que estou me acostumando.
Pela cara de ponto de interrogação que ela fez, ela esperava uma resposta maior. Na verdade até eu esperava uma resposta maior, mas eu não ia contar meus problemas para a pessoa que eu conheci a um minuto atrás.
-Legal... por curiosidade, você é amigo daquele arqueiro de vento?
E eu que cogitei a possibilidade de ela querer algo comigo... pobre ilusão...
-O Glaucos?
Ela assentiu com a cabeça. Eu sabia que o Glaucos era lindo, mas não sabia que ele fazia tanto sucesso ao ponto de ela me abordar para tentar chegar a ele.
-Sim, sou.
Ela pareceu meio sem jeito de continuar.
-Será que você poderia...
Ela nem precisava terminar a frase para eu entender.
-Te apresentar a ele?
Novamente ela assentiu com a cabeça. Seu rosto ficou vermelho.
-Acho que posso fazer isso sim.
Ela sorriu e me beijou no rosto.
-Obrigada, você é um amor.
Considerei isso um ato sincero, então aquilo melhorou um pouco o dia.
-Disponha.
Entramos no refeitório e logo vi o Glaucos acenando para mim, de longe, ao lado dele estava o Miro. Eu precisava falar com o Miro a sós, mas como fazer isso? A resposta veio quando eu vi o rosto da garota ficar ainda mais vermelho quando ela viu o Glaucos.
-Bem, vamos lá? - eu disse a ela.
-Uhum...
Era engraçado ver alguém envergonhado, normalmente este era o meu papel. Caminhamos até a mesa onde eles estavam sentados e a cada passo a menina parecia que ficava mais vermelha.
-Olá, bem, preciso apresentar a vocês, minha amiga, Higéia.
-Olá Higéia. - disse o Glaucos, com um olhar de dúvida para mim.
-Oi. - disse a maga, muito acanhada.
-Miro, você vem pegar comida comigo enquanto o Glaucos faz companhia para a Higéia?
O olhar do Glaucos foi do tipo “Nossa Ângelo, como você é sutil”, mas eu nem liguei. Puxei o Miro da cadeira e deixei os dois lá. Quando já tínhamos nos afastado um pouco o Miro disse:
-Quem é ela?
Isso não era tão importante agora...
-Uma menina que quer ficar com o Glaucos, mas isso não importa muito, eu queria ficar sozinho com você, o que está acontecendo?
Ele não esperava por isso.
-Sobre o que você tá falando?
Eu fiquei olhando para os tipos de comida, então notei que o outro mago de gelo estava perto de mim e comecei a colocar no prato só o que ele pegava.
-Miro, por que você estava tão nervoso hoje de manhã?
Mais uma vez eu o vi mais estressado do que de costume.
-Ah, isso, aquele cara tava te zuando!
Ok, eu não estava entendendo muita coisa... ele ficou daquele jeito só por causa disso?
-Era só brincadeira.
Meu argumento não melhorou nem um pouco o humor dele...
-Mesmo assim.
Ficamos quietos por um momento.
-Você tem certeza que é só por isso?
Nossos olhos se encontraram por um breve instante, eu encarei aqueles olhos avermelhados que tanto me lembravam os do Marcelo... tanta coisa passou pela minha mente, tantas vontades, tantos desejos impossíveis, sonhos destruídos, sentimentos reprimidos, tudo jogado na minha cara pelo simples deslumbre daqueles olhos vermelhos.
-Talvez não.
Ele poderia simplesmente ter dito que sim, que só não achava isso correto e coisa do tipo, depois ele podia namorar alguém e me provar que eu e o Glaucos estávamos errados sobre ele gostar de mim, mas nãoooo, claro que ele tinha que dizer que não era só aquilo.
-Então...?
Havíamos acabado de pegar a comida e precisávamos ir para a mesa, na qual o Glaucos parecia estar jogando seu charme encima da menina.
-Miro, acho melhor pegarmos outra mesa.
Aquela conversa só tinha piorado meu ânimo, mas era melhor acabar com aquilo de uma vez do que sofrer com o incerto aos poucos.
-Se fizermos isso vai ficar muito na cara que você quer deixá-los a sós, mais do que você já deixou. Podemos terminar essa conversa outra hora?
Ele não me encara enquanto dizia isso.
-Podemos sim...
É claro que não podíamos! Tínhamos que acabar com aquilo de uma vez o mais rápido possível! Apesar de que... será que eu estava preparado para essa conversa?
-Você não vai ficar chateado?
Eu não respondi, eu não tinha o que responder. Mentir não adiantaria, então o silêncio foi o sim que nunca foi dito. Fui em direção à mesa. De relance vi o Crisaor, à minha direita, sentado numa mesa, nos encaramos por um momento, mas foi só isso.
Posso dizer que a escolha do prato alheio foi um sucesso, a comida que o outro mago escolheu era ótima. Além disso, a Higéia parecia bem feliz em ter seu momento com o Glaucos, mesmo que com eu e o Miro juntos. Enquanto eu comia fiquei ouvindo eles conversarem, o que foi interessante. Descobri que o Glaucos vinha de uma família relativamente rica, o que explicava aquela lembrança ruim dele, e que ele era o melhor da turma na outra academia, algo que ele se orgulhava bastante. Fiquei me perguntando se eles não iam comer, mas pelo que parecia eles estavam mais interessados um no outro. Quando o sinal tocou os dois lamentaram, mas o Glaucos prometeu vê-la no dia seguinte. Nós nos despedimos e eu voltei para a sala com a Higéia, a qual estava suspirando. Não quis tirar ela do mundo de sonhos dela, então fiquei em silêncio.
Mais uma tarde de treinamento na arena, e novamente eu treinei com o Caronte, eu estava ficando cada vez menos cansado ao usar magia negra e isso era muito bom, apesar de ainda assim eu estar bastante cansado quando o sinal soou. Despedi-me do Caronte com um abraço, o qual ele recebeu surpreso, mas muito feliz.
A cena seguinte me pareceu um dejá-vù. Novamente eu estava sentado, olhando a cidade sob a luz fraca do sol se pondo, porém dessa vez sem confusões. Não tardou para que o Glaucos chegasse, seguido pelo Miro. Fomos para casa conversando sobre o que poderíamos fazer no final de semana. Eu os alertei que no sábado ia ver minha mãe e no domingo ia fazer a pesquisa, não sobrando muito tempo livre. Eles iam passar o final de semana em suas casas, que ficava em outra cidade, não muito longe dali.
Ao chegarmos em casa, pedimos a janta e cada um foi fazer uma coisa. O Miro foi polir sua montante, enquanto o Glaucos estava escrevendo num caderno, o que eu achei que fosse um diário ou algo do tipo, e eu fiquei do lado de fora, sentindo o vento. Não demorou para a comida chegar. Após a janta eu me troquei com magia, o Glauco e o Miro se trocaram normalmente. Ficamos em nossas camas, conversando e eu já até conseguia olhar para o Miro sem ficar muito envergonhado. Eu dormi enquanto o Miro falava sobre um “passeio” que haveria semana que vem. Hoje meu sonho foi com o Marcelo, ele estava com o uniforme jolnir, porém branco, ele me olhava de forma triste, como se quisesse dizer alguma coisa, mas quando ele fez menção de falar, eu acordei.
Os dias seguintes foram parecidos. Na academia estávamos ficando nivelados em conhecimento. Meus desentendimentos com o Crisaor não continuaram, talvez ele tivesse ficado com medo após ter visto a morte tão perto. A voz na minha mente não voltou, e eu estava prestando uma atenção extra ao Caronte, apesar de odiar fazer isso. Minhas perícias com a comida de lá estavam melhores, eu já entendia o que me fazia mal e o que era gostoso. A cada dia que se passava minha amizade com meus colegas de quarto se fortalecia, de forma mais forte com o Miro, apesar de não termos conseguido terminar aquela conversa. Ele gostava de me provocar, o que me lembrava o aviso do Glaucos a dias atrás, o qual eu esperava fielmente que estivesse errado. Não que eu não gostasse do Miro, eu gostava, mas esse era o problema. Eu não tinha o direito de gostar de ninguém, ainda mais quando eu perdi meu primeiro amor daquele jeito... Sem contar que o fato de eu ainda vê-lo em sonhos não ajudava muito. Na sexta eu me lembrei de levar a roupa suja para a lavanderia e pegá-las no sábado pela manhã. O Miro e o Glaucos foram para suas casas após eu prometer pela décima segunda vez que ficaria bem sozinho. De tarde eu vi minha mãe, contei tudo que aconteceu para ela, fui repreendido por entrar numa briga, mas ela ficou feliz por eu estar me acostumando. Ela disse que estava vendo um emprego como professora na academia de lá. Ela também contou sobre um mago que ela conhecera e que pelo que parecia eles iam sair juntos amanhã. Meu domingo foi dedicado aos estudos. Fiquei o dia inteiro fazendo o relatório na biblioteca, quando cheguei em casa o Miro e o Glaucos já tinham voltado. Ambos me receberam com um abraço. Seguimos a rotina de pedir a janta, jantar e ficar conversando até cair no sono. Pela primeira vez desde que eu chegara aqui, tive uma noite sem sonhos.
Quando eu acordei já havia outra pessoa acordada no quarto, o Miro, o qual estava na minha cama, sentado, olhando para o outro lado.
-Não quis te acordar.
Ele falara baixo para não acordar o Glaucos, segui seu exemplo.
-Não tem problema.
Por algum motivo ele não olhava para mim, e seu rosto não estava muito feliz.
-Acho que temos uma conversa para terminar.
Isso explicava o humor não muito festivo.
-Sim, temos.
Acredite, meu humor não estava muito melhor que o dele...
-Eu pensei muito sobre aquilo e... desde que você chegou, eu me sinto diferente.
Ah não...
-Em que sentido?
Pela primeira vez ele me olhou e eu, infelizmente, reconheci o olhar... mas eu queria estar enganado...
-Eu fico mais calmo quando estou perto de você e...
Minhas mãos estavam para fora dos lençóis, ele notou isso e segurou uma delas, senti o calor que emanava dele, e era um calor tão bom... bom demais para eu permitir... Na hora eu entendi a sensação que ele emanara quando me defendeu do Crisaor, não era amizade... era amor.
-Miro, eu... - eu soltei minha mão da dele - eu não posso...
Dor atravessou o meu peito.
-Por quê?
Seu rosto expressava tristeza e um pouco de dor, eu me sentia muito mal por isso.
-É complicado explicar...
Eu sabia que uma hora eu teria que abrir o jogo, mas a situação não poderia ser pior.
-Talvez eu entenda, eu só quero saber isso, depois não vou te atormentar de novo.
Se ele continuasse a me encarar eu ia começar a chorar, então comecei a contar.
-Você já se perguntou por que eu viria pra um lugar totalmente estranho, o qual era quase que visto como inimigo, deixando minha mãe e amigos para trás?
Desviei o olhar do dele, mas ainda podia sentir o calor da mão dele perto de mim.
-Sim. – ele respondeu, com a voz arrastada.
-E o que você pensou?
Houve um momento de silêncio, até que ele respondeu:
-Eu não entendi porque você fez isso.
Toda a história passou como um filme na minha mente, meu coração doía cada vez mais, e quando eu comecei a falar, a sensação só piorou...
-Eu fiz isso, Miro, porque eu estava indignado com várias coisas de lá. Aquela nação matou a única pessoa que eu já gostei, de verdade, em toda a minha vida.
Seu rosto ficou sombreado pela dor.
-Eu tentei salvá-lo, me disseram que era possível, mas eu não consegui... eu falhei. A minha única vontade era acabar com aquele sistema nojento que havia matado a primeira pessoa que viera falar comigo, a primeira pessoa que me fez sentir o que é ter um amigo e a primeira pessoa que me mostrou o que era gostar de alguém.
Agora definitivamente ele estava muito mal, ele não me encarava e sua cabeça estava abaixada, mas eu pude ver uma lágrima no rosto dele.
-Eu não posso gostar de outra pessoa... - as palavras o cortavam, e me cortavam, mas precisavam ser ditas. - eu não vou fazer outra pessoa sofrer de novo... e também não consigo suportar a dor de mais uma perda...
-Entendo... - sua voz fora quase um sussurro.
Eu o abracei, ele me abraçou de volta, não com o calor que eu esperava, mas abraçou. Eu não sabia o que era pior, se pensar em como ele estava ou relembrar aquilo. Ele se soltou e secou a lágrima do seu rosto, depois se levantou e foi para o banheiro. O barulho da porta se fechando fez o Glaucos acordar, ele se virou e se surpreendeu em ver um Ângelo sentado na cama com uma lágrima descendo pelo rosto.
-Ângelo, o que...?
-Você estava certo Glaucos...
Ele olhou para a cama do Miro e entendeu, eu comecei a chorar.
-Eu sinto muito...
O clima depois daquilo não podia estar pior, era como se alguém tivesse morrido... e eu sei como é essa sensação. Hoje teria uma exploração por uma floresta próxima, para nos acostumarmos a caçar itens valiosos para o próprio sustento. Eu estava bastante empolgado para isso, pelo menos até acordar.
Assim como todos os dias tomamos café, nos arrumamos e fomos para a academia, a diferença é que hoje o caminho foi silencioso. Assim que entramos na academia eu me despedi deles e fui para a minha sala, com um peso extra na consciência.

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Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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