Era uma vez um passarinho ferido numa noite gélida. Eu o vi sobre a neve, senti medo. Corri em sua busca, apanhei-o e o trouxe para dentro de casa. Por sorte, ainda respirava. Coloquei-o perto da lareira para que o pobre animal conseguisse se aquecer. Seus olhos foram ganhando vida à medida que o calor o reabastecia. Ao se levantar, tentou alçar vôo. Em vão. Uma de suas asas estava quebrada. Forrei uma blusa numa caixa de sapatos e o coloquei dentro. Enquanto fui buscar o kit de primeiro socorros, notara que ele havia tentado voar uma vez mais. Parecia ainda mais machucado pela tentativa. Tentei acalmá-lo, mas a selvageria de sua natureza era mais forte que minhas doces palavras. Fiz um curativo em sua asa, sob reclamações e bicadas. Ao acabar, tinha várias marcas na mão e o pássaro pareceu cansado. Tive medo uma segunda vez, não queria ter lhe feito mal. Mas ele estava apenas cansado mesmo. Foi dormir. Eu também. Durante alguns dias eu cuidei do passarinho, e ele começou a confiar em mim. Ao fim de uma semana, o passarinho já voava pela casa. Gritava contente, mas queria ir pra fora. A neve já tinha se acabado, mas eu ainda o queria! Ele olhava lá pra fora. Desejo transpassava em seus olhos. Desejo também transpassava os meus. Com absoluta dor no coração, não antes de dar uma última olhada no passarinho, abri a janela. Ele saiu voando contente. Levou parte de mim. Por alguns dias eu fiquei olhando a janela. Talvez esperando ele voltar. Talvez esperando ouro passarinho se ferir. Não sei. Eu precisava preencher aquele vazio. Mas para isso eu teria que machucar ou acorrentar um pássaro? Não. Eu não podia fazer aquilo. Mas tinha sido tão bom... Chorei. Chorei até que todas as mágoas já tivessem ido embora. Que o passarinho tivesse as levado. Muito pelo contrário. Por um momento eu queria que ele nunca tivesse aparecido. Eu jamais teria sabido como ele era, como era bom tê-lo. Isso também era errado. Eu havia aproveitado, não podia praguejá-lo. Acredito que no fim das contas temos isso e apenas isso. Uma série de alegrias e tristezas. Seres que vêm. Seres que vão. E o que nos sobra? Saudade.

Eu fui um dos últimos a entrar na sala. Mal pude sentar quando o professor pediu para que nós o seguíssemos, o Caronte veio logo atrás de mim.
-Oi de novo.
Suas palavras saíram com mais confiança dessa vez e eu não me lembrava de tê-lo visto no almoço.
-Olá, você sabe para onde estamos indo?
Depois do que aconteceu pela manhã, eu esperava que continuássemos com um pouco mais de calma...
-Provavelmente para treinar.
E lá se vai minha esperança de algo mais calmo.
-Ah...
Novamente a lembrança do Pharos me veio à mente... será que começariam a me atacar no meio da rua?
-Medo do quê?
Eu fiquei assustado com a pergunta, mas logo lembrei que as habilidades dele com magia negra eram realmente boas.
-Só receio, você é muito melhor com magia negra do que eu, não sei ver sentimentos com tanta facilidade.
Olhando para os lados notei que estávamos seguindo o mesmo caminho que hoje de manhã, o que fazia com que a possibilidade de treino fosse bem alta. Olhei para o Crisaor e ele me encarava, como se quisesse me contar algo.
-Você usa dois elementos, eu só uso um. Você não treina a magia negra, e eu sim.
Não era isso que eu esperava que ele falasse, mas talvez eu estivesse imaginando algo.
-É, faz sentido.
Finalmente chegamos àquela porta novamente. Dessa vez eu não via beleza naquela cena, eu tinha medo. Depois daquela experiência as coisas ficaram um pouco mais realistas, eu podia estar correndo perigo. Ou talvez fosse só o efeito paranóico da magia negra surtindo efeito em mim.
Entramos na arena uma vez mais, e como da primeira o professor começou a dar as instruções.
-Agora vamos fazer o básico, só quero ver como vocês se saem. Durante o resto da tarde quero que usem suas técnicas, pode ser como demonstração ou façam duplas para duelos. Se forem duelar, peguem leve com o adversário. Se espalhem pela arena.
Deixei o centro para quem gosta dele e fiquei num canto, do outro lado da arena. Uma coisa engraçada aconteceu, os magos de fogo e relâmpago costumavam ficar no centro, enquanto os de gelo, água e trevas ficavam no canto, os outros se distribuíam.
Achei que fosse melhor eu fazer demonstrações sozinho, apesar de o Caronte estar do meu lado. Fiz o mesmo que na praça, se deu certo aquele dia, poderia dar certo hoje. As pessoas olharam para mim admiradas, até mesmo o mago de gelo, fiquei mais envergonhado do que naquela vez. Tudo era mais fácil quando a magia negra estava livre, eu não me cansava tanto e a magia fluía melhor. Ao meu lado o Caronte havia evocado um demônio com asas de aspecto mal, mas muito engraçado. Ele rodopiava, fazia malabares com bolas de fogo e se fazia de cachorro quando o Caronte pedia. Depois disso ele começou a fazer um tiro ao alvo numa parede usando lanças negras, me juntei a ele. Estávamos usando bastante magia negra, por isso as pessoas se afastaram um pouco, exceto o professor, que se juntou a nós e lançou algumas rajadas de pedra.
-Ângelo, aquilo que você fez com o gelo foi muito belo, acho que ninguém mostra isso aos alunos por aqui.
Apesar de bonito, era inútil, eu aprendi por me divertir fazendo aquilo, então fazia sentido não ser ensinado.
-Ah, não me ensinaram também, eu aprendi sozinho.
Lembrei da minha caverna, das noites de treino sozinho, e dos dias que eu não estava sozinho...
-Interessante, teve mais alguma coisa que você aprendeu sozinho?
A pergunta me tirou do meu pequeno devaneio, e era algo difícil de responder. Eu havia lido livros de magia negra que ensinavam coisas que nunca havia tentado, como o domínio da mente, conjurar uma maldição, controlar sentimentos ou romper laços. Todas essas magias eram muito avançadas e perigosas, portanto nunca tentei usar nenhuma, apesar de eu saber como fazê-las.
-Eu aprendi algumas magias negras, mas nunca tentei usá-las.
A resposta pareceu surpreender o Caronte, talvez ele pensasse que eu nunca usasse a magia negra.
-Se quiser podemos tentar agora. - disse o professor.
Seu olhar era sério, mas de certa forma, paterno, eu não acreditava que ele estava pedindo isso.
-Hum... não todas...
Eu realmente não tinha pressa nenhuma em aprender a amaldiçoar alguém... era uma das piores coisas que a magia negra podia fazer. Uma maldição é como se fosse uma doença, mas da mente. A maldição da tortura, por exemplo, faz a pessoa amaldiçoada ver de tempos em tempos alguma cena de alguém a torturando. Diferentemente de uma magia comum, uma maldição só cessa com a morte do amaldiçoado.
-Ah, com certeza não, não queremos matar ninguém, não é mesmo?
E das piores coisas que eu li, nenhuma era de morte instantânea...
-Eu não aprendi magias de morte.
Só depois notei que ele não estava olhando para mim naquele momento, mas sim para o Caronte, ou talvez tenha sido impressão minha.
-Então, o que você quer treinar? Não demore, tenho que consultar a todos ainda hoje.
Agora eu tinha certeza que ele estava olhando para mim.
-Controle dos sentimentos.
Já que o Caronte sabia, porque eu não poderia saber também?
-Tudo bem, sabe como fazer?
Eu sabia. Era só eu conseguir tocar a aura da pessoa e mudá-la segundo a minha vontade. Apesar de parecer fácil, o livro disse que era bastante complicado...
-Sim, mas em quem?
Apesar de que não deveria ser muito difícil achar um voluntário para ficar feliz.
-Faça em mim, eu vou permitir. - ele disse, abrindo um largo sorriso.
-Hum... tudo bem...
Concentrei-me na aura dele, pelo que me parecia ele estava com um misto de curiosidade com nervosismo, tristeza e ansiedade, seria melhor se ele estivesse feliz, sussurrei:
-Felicidade.
Minhas palavras desencadearam uma névoa invisível que tocou a aura dele e foi modificando-a aos poucos. Depois de alguns segundos ele estava feliz.
-Muito bom, obrigado.
Meu corpo ficou um pouco pesado e eu me cansei bastante.
-Nossa... mas eu só mudei o seu humor...
Minha cabeça começou a latejar um pouco, era a mesma sensação de usar magia de dois elementos, desgastante...
-Este tipo de magia consome muito de você, apesar de parecer inocente, a mudança de um sentimento pode ser fatal. Eu te curaria, mas magia branca só vai te fazer ficar pior.
Fazia sentido... se um casal estivesse brigando, fazer o amor deles voltar à tona resolveria o problema. Assim como se uma declaração de guerra estivesse sendo proposta, irritar as pessoas a fariam aceitar a declaração sem pensar muito sobre.
-Tudo bem, não vou tentar fazer isso com frequência.
A alegria do professor diminuiu bastante, dando lugar à preocupação.
-Você precisa melhorar muito, teria sido muito fácil te impedir de terminar a magia, mas acho que seu colega pode te ajudar com isso.
Caronte olhou para ele e depois para mim.
-Sim, eu posso Ângelo, podemos treinar juntos, se você quiser.
Abri um largo sorriso, isso seria realmente muito bom!
-E acho que o Ângelo pode te ajudar com magia de vento, gelo e... levitação? Era isso que você havia me dito não é?
-Sim, exatamente, posso sim.
O professor passou a mão no cabelo, olhou para o resto da arena e disse:
-Ótimo, então por enquanto quero que façam isso, pelo menos até a sala estar mais bem nivelada, depois aprendemos coisas novas. Vou ver como os outros estão se saindo.
-Tudo bem. - eu respondi.
Durante, acho que, duas horas e meia ele me ensinou como usar a magia negra sem se desgastar tanto, tudo dependia de como você se concentrava no que fazia. Além disso, ele me ensinou a aprimorar a magia do controle dos sentimentos para que o alvo não notasse. No fim das contas consegui deixar metade das pessoas da arena contentes. O professor adivinhou quem havia feito aquilo e sorriu para mim. As duas horas e meia restantes eu o ajudei com magias de levitação simples, mas que ele tinha bastante dificuldade. Para a minha sorte ele não caiu, muito, enquanto tentava flutuar. Quando ele ficava nervoso por não conseguir eu o acalmava, era uma cena divertida.
Apesar de divertido era muito cansativo e eu fiquei feliz quando o sinal soou pela última vez no dia. Despedi-me do Caronte e do professor, guardei a magia negra para mim e fui para a entrada. Sentei no canto da escada e olhei para a cidade. Era linda sob a luz laranja do sol de fim de tarde. Uma pena que foi encoberta por mais de 2 metros de mau humor em forma de gente, também conhecido como Crisaor. Respirei fundo e disse:
-Se você não se importa, eu estava olhando a cidade.
Mais uma vez ele estava com aquele ar de deboche absurdamente irritante, mas dessa vez ele não estava ameaçando ninguém, então...
-É bom que tenha visto bem mago, você não a verá de novo nem tão cedo.
Pronto, agora sim ele ameaçou.
-Você está muito estressado, não seria melhor se você relaxasse? Vamos, Relaxe.
Liberei um pouco da magia negra e uma névoa invisível agarrou a raiva que o circundava, foi difícil, mas depois de um tempo ele cedeu e ficou calmo.
-Se sente melhor?
Um pavor subiu pela espinha dele.
-Eu não fiz nada, - sorri maliciosamente - mas fico feliz que você não esteja mais nervoso. Agora você poderia fazer a gentileza de sair da minha frente? Ainda quero ver a cidade até que meus amigos cheguem.
Ele ficou meio confuso, mas saiu. A magia negra costumava atordoar as pessoas. Aproveitei o momento para sanar uma dúvida.
-Porque você não deixa o Miro em paz?
Minha voz foi séria e o humor dele começou a passar para um orgulho desenfreado.
-Eu só brinco com ele, ele é um fraco.
Aquilo era muito estúpido e me deixou bastante nervoso.
-Uma coisa você vai aprender um dia: nunca se deve subjugar uma pessoa, um dia você se arrependerá do que faz a ele.
A raiva transpassou pela minha voz, e meus punhos se fecharam sem eu ter notado.
-Por quê? Quem vai me ensinar a lição? Você?
A ironia na voz dele me fez perder totalmente a calma, mas eu não ia me descontrolar, não dessa vez.
-Não perderia meu tempo com isso, tenho mais o que fazer.
A raiva que eu havia tirado dele voltou à tona e dessa vez eu a deixaria lá.
-Você é muito atrevido mago.
Quem se importa?
-Talvez eu seja mesmo, mas sou um atrevido que pode fazer você chorar, e isso é algo que você não pode ignorar.
Eu vi o medo em seus olhos, ele sabia disso.
-Posso quebrar suas costelas com apenas uma mão.
Eu sabia que ele não era um oponente fraco, mas aparentemente ele já estava costumado a se sobrepor aos outros. Comigo não seria assim.
-Isso se fosse tivesse coragem e conseguisse chegar perto o suficiente.
Uma veia começou a pulsar no pescoço dele, achei que fosse uma boa indicação do meu belo desempenho em irritá-lo.
-Vocês magos são covardes!
Covarde?! Ele queria brigar com alguém que é uns 30 centímetros menor do que ele e eu que era o covarde?!
-Você, guerreiro, é um ignorante, por desprezar o efeito que seu adversário pode fazer em você, ou talvez eu deva te colocar numa gaiola pequena dessa vez, o que acha?
Ele teve medo, provavelmente se lembrou das paredes indo contra ele.
-É tudo ilusão, não é real!
Finalmente a voz dele perdeu a firmeza.
-E ainda assim você teme.
Vi o Miro e o Ângelo saindo, era hora de ir.
-Bem, gostaria de dizer que foi um prazer conhecê-lo.
Levantei-me e comecei a limpar meu quimono, no lugar aonde eu havia sentado.
-Um dia eu vou pegar você e...
E o quê?!
-Por que não faz isso agora?!
As pessoas olharam para nossa direção, inclusive meus colegas de quarto.
-Um dia, quando você estiver sozinho.
Ok, e eu que era o covarde. Idiota!
-Eu não tenho medo de ficar sozinho, você pode dizer o mesmo?
Fui em direção ao Miro, enfurecido. Ele me olhava como se eu estivesse prestes a ser morto e pela forma como ele começou a correr em meu encontro, eu acreditei com mais fidelidade nisso. Virei e vi uma espada enorme vindo em minha direção, só tive tempo de pensar em uma coisa: pará-lo. É uma pena que ele estava a um segundo de me cortar com uma espada gigantesca. Dei uma cambalhota para o lado, um pouco antes de a espada ser cravada no chão, não que eu tenha saído ileso, ele ainda conseguiu me arranhar no braço. Antes que eu conseguisse me levantar ele forçou as costas da espada contra mim, o que me jogou na parede mais próxima. Uma sombra pairou na minha frente e eu esperava um golpe de misericórdia. Para minha surpresa quando levantei a cabeça vi um guerreiro, mas não era exatamente quem eu esperava, era o Miro, com sua aura flamejante ardendo como eu jamais vira antes, me defendendo. O estranho era que ele não estava lutando com ódio, era um sentimento diferente, mais forte, mais poderoso, ele estava lutando por... amizade... eu acho. Ninguém na arena emanava este sentimento, então eu não podia distinguir bem qual era, mas era o que lhe dava força, força o suficiente para não só duelar ao mesmo nível com o Crisaor como para arrancar a espada da mão dele e jogá-lo no chão com um golpe direto no peito.
Logo depois disso ele veio correndo em minha direção, eu estava pasmo com o quão bom ele era.
-Ângelo, você tá machucado?
Eu ainda estava atordoado com tudo que aconteceu, então demorei um pouco pra responder.
-Hum, não muito.
Ele me atacou pelas costas... Levantei-me, o corte ardeu um pouco, mas nada comparado à raiva. O covarde tinha me atacado pelas costas!
Um sorriso brotou no rosto dele quando ele me viu.
-Te machuquei? Desculpa maguinho.
Ele começou a rir alto, mas não por muito tempo. A magia negra se libertou com toda a fúria.
-Você me atacou pelas costas.
A magia negra emanava o medo, notei alguns alunos tentando tomar distância.
-Ele te atacou pelas costas!!!!!
O ódio pulsava em mim, aquilo foi desleal!
-Você vai pagar por isso.
Minha voz tinha sido baixa e cruel, eu o odiava com todas as minhas forças.
-Faça o que precisa fazer, acabe com a vida dele!
Exatamente isso que eu vou fazer!
-Lança negra!
Uma memória veio à minha mente, aquela lança não ia atravessar um guerreiro, mas sim um espadachim, de cabelos vermelhos com um sorriso no rosto, era essa a magia que havia matado o Marcelo!!!
-Não, pára!
Desviei a lança para o chão. Suor escorreu pelo meu rosto, a voz na minha mente silenciou, toda minha raiva ficou em segundo plano e agora eu estava assustado. Eu ia matar uma pessoa. Eu não era o único que estava assustado, vários estavam. Eu já tinha visto muitas brigas, mas não uma que quase resultasse numa morte, no máximo cortes feios ou queimaduras. O Glaucos e o Miro vieram até mim, o Glaucos colocou as mãos nos meus ombros e me fez caminhar. Estávamos indo para casa.
Ao chegar em casa eu sentei na minha cama. Eu estava confuso, magoado comigo mesmo. Glaucos e Miro sentaram na cama do Glaucos e ficaram de frente para mim.
-Acho que lhes devo uma explicação...
Eles se entreolharam, mas quem respondeu foi o Miro:
-Se você estiver à vontade pra isso, seria o melhor Ângelo. Sinceramente, não sabemos o que fazer.
Aquilo foi como um soco no estômago.
-Eu... eu vou tentar explicar.
Eu estava cabisbaixo, não conseguia encará-los, me sentia uma criança burra que não conseguia nem mesmo amarrar os cadarços.
-Essas coisas que estão acontecendo, nunca me aconteceram antes. Talvez elas tenham começado porque eu usei magia negra perto de outras pessoas, inclusive usei nelas, mas ainda assim não é natural. Eu... estou ouvindo uma voz na minha mente, que não é minha. Tem alguém usando magia negra contra mim.
Eu notei o Glaucos empalidecer um pouco com essa notícia.
-E não é só isso, essa pessoa também está tentando controlar meus sentimentos para fazer coisas ruins. O problema é que eu só conheço um usuário de magia negra e...
Eu não queria continuar, não queria acreditar que o Caronte estivesse fazendo isso, mas era o único que poderia. Eu simplesmente não ia culpá-lo, ele parecia ser tão legal. Talvez eles tivessem entendido meu silêncio.
-Ângelo, - a voz do Miro estava baixa, algo incomum - talvez você precise de ajuda.
-Não... eu não quero. Eu... eu vou me controlar, o começo é sempre mais difícil, isso não vai acontecer de novo.
O Miro suspirou e disse:
-Então tá, confio em você.
Aparentemente o Glaucos não tinha a mesma confiança, mas não disse nada para se opor.
-Desculpem-me, por tudo.
Levantei-me e andei até a janela. Senti o vento soprando, ele tentava me animar, mas hoje ele não conseguiria. Lembrei que eu ainda estava com o uniforme, voltei para minha cama e comecei a tirá-lo. Meus ferimentos eram leves e ardiam um pouco, o uniforme estava um pouco sujo de sangue e isso despertou a atenção do Glaucos.
-Ângelo! Porque você não disse que estava ferido?!
Será que era porque eu ainda estava meio chocado por quase ter matado uma pessoa?!
-Eu tinha outras coisas para pensar.
O Miro veio logo atrás dele. O Glaucos segurou meu braço, o qual tinha um fino corte. E depois olhou para as minhas costas. Quando ele tocou nelas eu senti uma dor muito forte, não consegui suportar. Gritei de dor.
-Ângelo, isso tá roxo!
Uma lista imensa de palavrões me veio à mente.
-Você precisava ter apertado?!!!
O rosto dele ficou um pouco corado, ele notou a idiotice que ele acabara de fazer.
-Vamos precisar de uma compressa gelada e...
Ele me olhou com uma cara muito sínica.
-Eu acho que talvez não precisemos de uma compressa gelada. - eu disse, rindo um pouco.
Concentrei-me um pouco e fiz meu corpo ficar um pouco mais frio do que ele costumava ser, o Glaucos me soltou.
-Eu me recupero rápido, não se preocupem, pelo menos isso eu faço direito.
E como eu não gostava muito de ficar sem algumas partes da roupa, tratei de terminar de tirar o uniforme e colocar outra roupa, novamente sob um olhar... diferente, do Miro. Escolhi uma camisa roxa e uma calça preta. Pude sentir os ferimentos se abrandando, mas ainda doíam um pouco, nada comparado ao que aconteceria se aquela lança atingisse o Crisaor, mas...
Eles pediram algo para comer e após o jantar nós nos deitamos e ficamos conversando. Eu ainda não tinha me acostumado a ver a forma como o Miro ia dormir, mas eu não podia pensar nisso também. Lembrei que ainda havia coisas da minha mala para serem arrumadas, levantei e comecei a fazer isso. Assim que acabei meu armário estava tão bonito, tão organizado. Deitei de novo e olhei para o Miro, meus olhos começaram a se fechar, mas por um momento eu vi aquele sentimento diferente emanando dele, era bom ver que alguém queria ser meu amigo neste lugar. Adormeci.
Sonhei novamente com fogo, mas dessa vez só tinha uma chama, e ela estava coberta por escuridão. De dentro da escuridão uma voz disse:
-Confie em seu coração, por favor, não tire conclusões precipitadas.
Quando acordei o sol começava a brilhar, eu queria entender os sonhos que eu estava tendo. Fiquei sentado na cama pensando sobre isso, mas por mais que eu tentasse não conseguia ver a lógica naquilo. Desisti e fui me arrumar para ir para a academia.

Durante o resto do tempo até o almoço ficamos conversando sobre as diferenças das nações, e ele não disse mais nada sobre a magia negra. Eu contei como era viver em Jolnir e ele me contou como era viver em Delfos. Pude perceber, pela nossa conversa, que não havia tantas diferenças assim, um pouco do governo e do ensino eram diferentes, além de detalhes como formas de construção e prioridades, mas as nações não eram tão opostas quanto me fora dito. Um sinal soou, que eu presumi que fosse do almoço.
-Ângelo, vou à biblioteca, almoço depois.
Eu também queria ir, mas prometi almoçar com o Glaucos e o Miro.
-Tudo bem, até depois.
Despedimo-nos e eu segui os magos que estavam por ali por perto. Aqui eles não flutuavam por nada, fiquei me perguntando o porquê disso. Andamos por um corredor com várias portas indicando secretaria, salas de equipamentos e por último havia quatro salas um pouco destacadas, cada uma era a diretoria de uma classe. Quando eu passei pela porta escrita "Diretoria dos Magos" a porta se abriu e Aglaope saiu de lá, olhou surpresa para mim e sorriu.
-Bom dia Ângelo, que surpresa em vê-lo, está tudo bem com você?
Ela estava tão perturbada quanto o professor e de relance vi o Pharos dentro da sala, seu rosto estava baixo.
-Bom dia, estou bem, não se preocupe. Devo te chamar de diretora?
Após minha recente quase represália pelo Orpheu, títulos ficaram como um grande ponto de interrogação na minha cabeça.
-Não precisa, pode me chamar pelo meu nome mesmo, perdoe-me pelo último acontecimento...
Algo em sua voz me lembrou minha mãe falando...
-Não se preocupe, de verdade, contudo preciso ir almoçar.
A sala da diretoria dos arqueiros se abriu e outro rosto conhecido saiu de lá, era o arqueiro que foi com Orpheu para Sariku.
-Aglaope, vamos almoçar?
Ele se assustou um pouco ao ver que ela não estava muito feliz.
-Claro Équion, só um momento. Ok Ângelo, bom almoço e me desculpe de verdade.
Acho que como responsáveis pela minha estadia aqui, eles estavam se sentindo absurdamente mal por terem me deixado em perigo, mas eu não gostava de pessoas se preocupando comigo, eu podia me cuidar...
-Hum... obrigado.
Ela piscou para mim e voltou para dentro da sala, pedindo para o arqueiro entrar também. Eu segui o corredor até chegar à grande sala que era o refeitório.
Assim que entrei no refeitório algumas pessoas próximas pararam de andar e logo em seguida lançaram olhares fulminantes, eu havia esquecido que as outras classes não suportam a magia negra tão bem quanto os magos. Repreendi a magia negra como uma resposta aos olhares e continuei andando, procurando o Glaucos ou o Miro. Não foi difícil encontrá-los, eles estavam ao lado de uns brutamontes, que presumi que fossem amigos do Miro. Uma coisa interessante era que apesar do Miro ser grande, aqueles guerreiros eram ainda maiores que ele. Fui em direção a eles, mas logo pude perceber que o clima não parecia dos melhores, o Glaucos estava ao lado do Miro, o qual parecia estar se controlando para não avançar num guerreiro de cabelos azuis escuros. Aparentemente aquele guerreiro era o "líder", pois estava ladeado por outros dois guerreiros. Os três riam e pelo que parecia era do Miro. Continuei indo em direção a eles, até que consegui ouvir sobre o que eles falavam.
-Bons tempos Miro, - o guerreiro de cabelos azuis disse com um sorriso no rosto - você não mudou nada, continua a mesma mocinha fraca.
-Ok Miro, vamos sair daqui. - pude ouvir o Glaucos dizendo.
-O que está acontecendo aqui? - eu disse, fuzilando os três guerreiros com o olhar.
-Você tem mais um amiguinho? E é o mago jolnir! - Ele gargalhava enquanto falava - Eu não sabia que você tinha descido tanto de nível assim.
O rosto do Miro ficara vermelho, eu não podia deixar que ele fizesse isso.
-E apesar disso o mago ex-jolnir te coloca pra beijar o chão em dois tempos. - Eu disse, em tom de deboche.
O Miro e o Glaucos empalideceram, já o guerreiro dos cabelos azuis não gostou muito do desafio. Andou até a minha direção, segurou meu quimono e me tirou do chão com uma mão.
-Solte-me.
Dar ordens a alguém enquanto se está suspenso no ar não é muito desafiador, mas lidar com pessoas maiores que você fazia parte da rotina de um mago.
-Você não está em posição de ordenar nada maguinho, mas vou fazer com que você se lembre de mim.
Seu sorriso ficou maior e ele fechou as mãos num punho um tanto quanto ameaçador, mas certas vezes há coisas piores do que um olho roxo e ele ia experimentar isso.
-Eu também vou e você se lembrará para o resto da sua vida.
Libertei a magia negra, instantaneamente pude sentir os dedos afrouxando um pouco.
-Vamos brincar, - um sorriso maldoso surgiu no meu rosto - Pesadelo.
Entrei na mente dele, a qual era um pouco mais complexa do que de costume, mas ainda assim não foi um desafio achar a porta dos medos. Entrei numa sala que ia diminuindo cada vez mais: ele era claustrofóbico. Coloquei uma imagem na sua mente, todo aquele salão com as portas fechadas e se compactando, as paredes vindo em sua direção, o teto baixando. O desespero tomou conta dele, pude sentir seus dedos afrouxando e eu voltando a colocar os pés no chão. Mas eu não ia parar agora, ele ia pagar pelo que disse. Mas uma mão no meu ombro me deu um solavanco que tirou totalmente minha concentração. Para meu azar a mão pertencia ao diretor guerreiro.
-Estamos tendo algum problema aqui?
O tom da sua voz era de uma autoridade extrema.
-Não senhor. - eu disse.
-Ótimo, então guarde sua aura pra si mago e não quero que você faça confusão de novo, estamos entendidos?
Ele continuou me encarando, como se eu estivesse prestes a atacá-lo também...
-Hum... claro, sem problemas.
De relance vi o Glaucos e o Miro suspirando aliviados, acho que eu quase me meti num problema e só eu não tinha notado isso ainda...
-Ótimo. - ele respondeu, se virou e voltou para a mesa à qual estava almoçando. O guerreiro de cabelos azuis estava tremendo, acho que causei uma boa impressão com ele.
-Nos vemos por aí. - eu disse, recolhi a magia negra e puxei o Miro e o Glaucos para uma mesa ao canto. Eles começaram a me olhar um pouco assustados, mas o Miro começou a criar um sorriso no rosto.
-Ângelo... o que você fez?
Ao mesmo tempo que ele estava tenso, ele parecia extasiado, talvez ele já quisesse ter feito isso, mas nunca tivera coragem. Não que eu fosse muito corajoso. Na verdade, pensando agora, foi uma atitude impensada. Mas eu não queria vê-lo atormentando o Miro...
-Ah nada demais, só o fiz ver um dos seus medos, mas porque eles estavam te atormentando?
Eles se entreolharam, depois o Miro me deu um abraço apertado e quando eu digo apertado, é apertado mesmo... doeu.
-Miro... acho que estou ficando sem ar.
Ele se deu conta, e aliviou um pouco o aperto.
-Ah, desculpe.
O jeito que ele envolveu os braços em volta de mim, colocando minha cabeça encostada no seu peito pareceu muito com... Ah, não, eu não ia pensar nisso de novo. Eu não queria pensar nisso. Tentei me focar na discussão sobre o guerreiro e lembrei que eu não tinha entendido o porquê de eu ter precisado defender o Miro...
-Mas eu ainda não entendi, por que ele estava te atormentando?
Depois de o Miro me soltar, ele se ajeitou na cadeira e começou a contar:
-Ângelo, o Crisaor...
Nomes estranhos...
-Crisaor é o guerreiro da água?
-Isso, o que você...
Seu sorriso cresceu mais uma vez, eu estava começando a me sentir envergonhado com isso.
-Ah, tudo bem, continue.
-Ele me atormenta desde... sempre. Ele sempre ganha de mim em treinos e coisas do tipo, além de ter equipamentos melhores, ser maior, etc.
Olhei para o Glaucos e ele acenou a cabeça, como um sinal de confirmação do que o Miro havia dito.
-Desde que eu conheci o Miro, Ângelo, o Crisaor implica com ele.
Que coisa estranha, porque ele teria feito isso sem motivo? Não, isso não estava certo, não é porque eles não sabiam o motivo que isso implicava em não haver um motivo.
-E vocês sabem o porquê?
-Não. - disseram em uníssono.
Uma vaga lembrança veio à minha mente naquele momento, a minha primeira impressão com o Miro, a raiva que ele tinha de mim, então era por isso, ele sabia que seria ruim me ter por perto...
Minha cabeça abaixou um pouco, eu não queria ser um problema para eles.
Ambos perceberam minha mudança de humor. Para meu azar o momento em que o Miro segurou meu queixo e o levantou, fora o mesmo que a lágrima escolheu para descer do meu rosto.
-Ângelo... o que aconteceu?
Tudo que ocorrera ontem voltou à minha mente, como um filme. “Motivo de piada”, “Estou tendo alguns problemas”, agora tudo se encaixava...
-Era por isso que você ficou tão transtornado quando me viu, você não queria que eu fosse mais um motivo para risos...
Era como se o mundo tivesse parado por alguns segundos. Tudo fazia eu me sentir péssimo, acho que meu eterno fardo, no fim das contas, era viver sozinho.
-Sim, meu jovem, este mundo à sua volta não lhe pertence. - disse uma voz na minha cabeça.
-Quem está falando?
Eu estava assustado, olhei para os lados e não vi ninguém me olhando...
-Um amigo.
E quem me garantia que eu tinha algum?
-E se eu não tiver amigos?
Uma gargalhada ecoou em minha mente.
-Já está no caminho certo.
Senti um enorme solavanco.
-Ângelo?! - a voz do Miro parecia desesperada e ele estava quente, muito quente!
-Estou, mas... você está absurdamente quente.
Olhei para o lado e o Glaucos parecia perdido em pensamentos, só então percebi o porquê. Minha aura estava muito intensa, tanto a de gelo quanto a das trevas, o que me deixou muito confuso. Contive a magia de gelo e reprimi completamente a magia negra. O Glaucos voltou a si e a temperatura do Miro baixou. Coloquei a mão no meu rosto e havia uma pequena gota congelada na minha bochecha, era a minha lágrima?
-Miro... - eu estava ofegando... - por favor, me diga o que aconteceu.
-Você disse... sobre quando nos conhecemos e acho que você começou a chorar. Depois disso você parecia não enxergar mais nada e seu corpo ficou meio mole, até que suas auras começaram a ficar muito fortes, principalmente a negra. Eu comecei a balançar você, mas demorou um tempo para você reagir.
O Glaucos olhou para mim de uma forma que eu nunca havia visto antes, havia medo em seu olhar, muito medo.
-Glaucos... - as palavras quase não conseguiam sair - eu... sinto muito, eu não quis...
-Tá tudo bem Ângelo, - sua voz estava meio distante - não foi nada.
Não era isso que seu rosto indicava, parecia que ele havia passado por uma sessão de tortura psicológica, o que eu não duvidava que pudesse ter acontecido.
-Glaucos, vou fazer você esquecer isso, seja lá o que você tenha visto... mas você vai ter que me ajudar.
Ele me olhou com dúvida no olhar, mas assentiu com a cabeça. Coloquei minhas mãos no rosto dele e me concentrei.
-Abra.
Coloquei-me dentro da mente dele. Era um salão em estilo grego, e havia várias portas, cada uma com uma barreira de uma cor, o que me deixou meio confuso, eu nunca tinha visto algo daquele jeito.
-Glaucos, onde estão suas lembranças?
-Atrás daquela barreira azul.
Como as portas seguiam os espectros do arco-íris, foi fácil achá-lo. Fui até lá e fiquei de frente para a parta, mas provavelmente eu teria que fazer algo para entrar...
-E como faço para atravessá-la?
-Não tenha pensamentos negativos.
Não ter pensamentos negativos não era algo fácil depois do que aconteceu, apesar de eu não saber bem o que aconteceu, mas eu tinha que tentar. Limpei minha mente e atravessei a barreira. As lembranças são coisas extremamente bem protegidas nas mentes das pessoas, esta parte da mente tem uma proteção muito forte e é extremamente arriscado tentar entrar sem ser convidado. Ao entrar pude notar uma movimentação de lembranças roxas ao meu lado: eram memórias recentes. Coloquei-as em minhas mãos.
Agora eu estava num palácio branco muito bonito, o Glaucos estava num sofá com outras três pessoas, eram seus familiares. Eles conversavam felizes, até que o chão começou a tremer e as paredes a rachar, parecia ser um terremoto muito forte. Todos correram desesperados. O Glaucos conseguiu sair do palácio a tempo, mas os outros não. Ele se ajoelhou e deslumbrou as ruínas que eram, antigamente, sua vida. As lágrimas irromperam de seu rosto... e do meu também.
Saí daquela lembrança, eu ainda a tinha em minhas mãos. Esforcei-me e quebrei a lembrança, a nuvem roxa se desfez e sai da mente dele. O ruim de destruir lembranças ruins dos outros é que você fica com elas para si.
Ele tinha um olhar um pouco vago, o que era normal, já que eu mexi com a mente dele. Depois de uns 3 segundos ele me olhou com o sorriso bobo dele.
-Ângelo, você me fez algo bom, não é?
Sua voz era quase infantil.
-Acho que sim.
Olhei para o Miro, que ainda estava meio confuso com a situação e disse:
-Eu também não sei o que aconteceu.
Eu não reconheci aquela voz, mas... não são muitas pessoas que conseguiriam entrar na minha mente...
-Sobre ontem... - o Miro disse, quebrando minha linha de raciocínio. Sua voz estava baixa, o que não era normal nele.
-Não precisa falar nada não, eu vou esquecer isso.
Era mentira.
-Achei que tinha pedido pra que não mentisse pra mim.
Seu olhar indicava um pouco de raiva, mas havia ali mais angústia do que qualquer outra coisa...
-Eu vou tentar esquecer...
Não era bem uma mentira, ele só não precisava saber que eu não ia conseguir.
-Acho melhor comermos algo, - eu comecei - já tive emoção suficiente para um almoço.
Levantei-me e fui até a mesa onde serviam a comida. Eles me seguiram. Fui pegando coisas que nunca havia visto na vida, sob a supervisão do Glaucos, que me dizia o que eu podia e o que não podia comer. Devo dizer que ele conhecia culinária muito bem. Comemos tentando esquecer os últimos acontecimentos, apesar de o sorriso no rosto do Miro deixar claro que ele não havia se esquecido do que eu fiz com o Crisaor. Contamos uns aos outros nossos respectivos inícios de aula. Quando o Glaucos estava acabando de falar sobre o monte de coisas que ele vai ter que treinar o sinal soou novamente, precisávamos voltar às salas.
-Encontro vocês na entrada às 18h? - eu perguntei
-Ok - disse o Miro, ainda com um sorriso no rosto.
Eu comecei a ficar vermelho, não sei por que, talvez fosse pelo jeito como ele estava me olhando. Ele piscou para mim e foi em direção à sala dele, o Glaucos sorriu e também foi para a sua sala e eu, sem ter outra opção, cansado mentalmente depois de usar tanta magia negra em pouco tempo e envergonhado por esta última cena, também fui para minha sala.

Acordei com o sol em meu rosto, não era algo muito confortável, mas não estava tão quente ainda. Levantei-me silenciosamente, não queria acordar meus colegas de quarto. Fui até o banheiro, escovei os dentes e tomei um banho, aproveitei a água para começar a absorver um pouco de energia, não muita, já que eu não podia demorar muito e aquilo exigia alguma concentração. Coloquei meu uniforme, porém não sabia o quão leve era o sono deles, seria melhor não pisar no chão. Sussurrei:
-Flutuar.
Flutuei até a janela e sai por ela. Fiquei em cima de uma árvore, concentrando-me exclusivamente em absorver energia das plantas. Foi algo difícil, havia muitas coisas para pensar, como: minha mãe, a aceitação neste lugar, o qual estava bastante complicada, a convivência com meus novos amigos, em especial o Miro, que conseguia me tirar o fôlego, algo que eu não podia permitir... e por fim, Marcelo. Lembrar dele em meus braços, quieto, sem respirar... era uma dor constante que se associava às lembranças ruins que a magia negra me proporcionara. Eu não ia pensar nisso, já estava acostumado a sofrer e não tinha muito tempo para absorver energia. O ar que veio do quarto mostrava sinais de movimento de calor, alguém havia levantado da cama, procurei a mente mais ativa, parecia ser a do Glaucos e ele estava me procurando. Tentei mandar uma mensagem telepática a ele, mas não consegui... qual o problema com esse garoto?! Voltei para o quarto antes que ele começasse a me procurar.
-Cara, onde você tava? Você veio da janela?!
Ah, num era tão anormal assim, era?
-Hum, é... eu estava captando energia das plantas.
Ele me olhou de um jeito esquisito, mas deu de ombros e foi para o banheiro, provavelmente para tomar banho. Fiquei olhando a paisagem da janela enquanto esperava eles se arrumarem. Quando eu voltei para o quarto, o Miro estava se levantando enquanto o Glaucos colocava seu uniforme. Na mesa que outrora estivera vazia agora havia pães e bolachas, além de café e leite, o que me deixou meio confuso, não acho que o Glaucos tenha tido tempo de ir comprar algo enquanto eu estivera fora.
-Esta comida veio de onde?
O Glaucos começou a secar o cabelo, enquanto o Miro ficou sentado na cama.
-O serviço de quarto trouxe, eu passei nossos cartões, espero que você não se incomode de eu ter pego o seu. – ele disse isso com um leve sorriso no rosto, era bom ver que ele levantava de bom humor.
-Ah sim, bom dia a vocês dois. – as minhas palavras saíram meio atropeladas, pela vergonha da falta de simpatia matutina e pelo fato de o Miro ainda estar com o “pijama” dele, a mini bermuda...
-Bom dia Ângelo. – Miro disse meio zonzo, mas sorrindo. Uma coisa que eu achava estranho nele: era impossível prever o humor dele. Neste momento, por exemplo, eu achava que ele acordaria muito nervoso, mas ele estava calmo.
-Há, bom dia Ângelo, não precisa ficar vermelho.
As palavras do Glaucos provavelmente eram para me acalmar, mas me deixou mais vermelho. Sentei-me à mesa um pouco virado para a parede, enquanto o Miro foi para o banheiro. Ficamos em silêncio durante um tempo, até que o Glaucos sentou ao meu lado com um sorriso estranho no rosto.
-Então Ângelo, você sempre fica vermelho desse jeito?
O sorriso ficou ainda mais aberto enquanto as palavras iam saindo. Eu cobri um pouco o rosto, era muito constrangedor, apesar de ele parecer estar se divertindo.
-Você ainda não respondeu.
Uma criança de 10 anos, passando trote para algum vizinho não faria uma cara de “estou aprontando” mais convincente que a do Glaucos.
-Eu... sou tímido sim.
Procura-se: terra. Preciso enfiar minha cabeça em algum lugar...
-Você gosta dele?
Eu quase engasguei, minha sorte é que eu não estava bebendo nada, se não eu teria cuspido encima dele.
-Não.
Mas eu não tinha muita certeza disso e ele percebeu.
-Ah, sério? Não é o que parece.
Eu nunca gostei de ser um livro aberto e aquilo estava me incomodando bastante.
-Hum, Glaucos, por alguns motivos que eu não quero dizer, eu não posso gostar de ninguém.
Por um momento ele ficou calado e começou a comer um pão. Quando ele terminou o pão voltou a falar:
-Ok Ângelo, me desculpe... não quis invadir sua privacidade.
Não era bem isso... mas talvez fosse melhor ele pensar assim do que saber de tudo que tinha acontecido...
-Não precisa se desculpar... é só que... ah, eu sou meio fechado Glaucos, não me leve a mal, por favor.
-Tudo bem, – ele abriu um grande sorriso – mas devo lhe dizer que nunca vi o Miro tão calmo e atencioso antes de você chegar.
Dessa vez eu engasguei...
-Ah... você acha que...?
Ele inclinou a cabeça para falar mais perto, eu fiz o mesmo.
-Não sei, não pude falar com ele, mas acho que sim.
A porta do banheiro abriu e a conversa cessou na hora, cada um voltando a sentar normalmente. Miro saiu e começou a vestir sua armadura, com o quarto em silêncio. Quando ele acabou, disse:
-Achei que vocês estivessem conversando, estavam falando mal de mim?
Eu me levantei e fui para a minha cama. Glaucos disse:
-Ah, com certeza, já tenho que dar bons costumes pro Ângelo.
Eu ri, ele me olhou e disse:
-Neste caso Ângelo, porque você não fala na minha frente?
Apesar de ele não estar sério, o tom de voz dele estava um pouco carregada, o que demonstrou certa irritação. Fiquei meio surpreso, mas respondi:
-Era brincadeira Miro...
Acho que quando duas pessoas são instáveis e ficam no mesmo espaço, isso não costuma dar muito certo, pelo menos era o que parecia. Apesar de eu nunca ter sido instável, ele que conseguia me tirar do sério...
-Mas você estava falando de mim, certo?
Já que não adiantava mentir mesmo...
-Sim, eu estava falando de você Miro, mas não sei qual é a graça em fazer perguntas que você sabe que não quero responder. Quando eu quiser dizer algo, eu direi e ficaria muito feliz se você não me pressionasse.
Eu precisava parar com essa mania de dizer o que penso! Esse não era o Ângelo, calmo, equilibrado e fechado!
-Foi só uma pergunta Ângelo, não precisava se ofender.
Seu rosto não condizia com as palavras, ele parecia meio estressado também.
-Eu ainda não me ofendi, quando você me ofender você saberá pela diferença climática à sua volta.
Isso o pegou de surpresa, e ao Glaucos também.
-Não precisa disso, dá pra notar quando você está nervosinho.
Eu comecei a ficar mais nervoso, mas respirei fundo e me controlei. Olhei para ele e não disse nada, às vezes um olhar diz mais que mil palavras. Quem retomou a conversa foi o Glaucos.
-Miro, melhor você comer algo, daqui a pouco precisamos ir.
-Ok. – ele disse automaticamente.
Ele sentou à mesa. Fiquei olhando a janela, vendo um sol entre nuvens, o que, provavelmente, implicava em uma queda de temperatura, o que me agradaria bastante.
-Glaucos, tenho uma dúvida.
Eu ainda estava olhando pela janela, contato visual com o Miro não ajudaria enquanto eu me acalmava.
-Pode falar.
-A temperatura por aqui costuma ser alta?
Se tem algo importante, é o tempo. Eu quase fico impossibilitado de usar magia de gelo quando está muito quente, assim como fica muito fácil usá-la em tempos frios.
-Ah, mais ou menos, tem dias quentes e dias frios, é algo balanceado. Por quê?
Bem, era melhor do que uma temperatura muito quente.
-É algo bem importante para mim.
-Ah tá. - seu rosto mostrava que ele ainda não tinha se habituado às mudanças comportamentais de ambos os lados...
O Miro ainda parecia meio irritado, mas enquanto comia, aparentemente, foi se acalmando. Quando ele finalmente acabou, disse:
-Bem, podemos ir.
Eles se levantaram e eu fui em direção à porta. Quando eu passei pelo Miro ele colocou a mão no meu ombro, acho que era um pedido de desculpa. Coloquei minha mão sobre a dele, depois a tirei do meu ombro. Apesar de não querer acreditar no que o Glaucos disse, provavelmente era verdade e eu não estava pronto para isso, não que ele não fosse bonito, mas... ah, eu não queria pensar nisso. Saímos do prédio junto com outras pessoas também com uniforme, eu acenei para a recepcionista quando passamos por ela. Durante todo o caminho eu não vi o espadachim da praia. Andamos durante uns 10 minutos até chegar numa versão maior da minha antiga academia, só que em vez de marrom com detalhes em vermelho, esta era cinza com detalhes em azul. Logo na entrada da academia havia uma placa indicando os blocos de cada classe, era hora de nos separarmos.
-Vou para o bloco dos magos, vejo vocês no almoço?
Eles concordaram com a cabeça.
-Com certeza Ângelo, - respondeu o Glaucos com um sorriso - vou lá, preciso ver as arqueiras da sala.
Eu e o Miro rimos.
-Até mais tarde. - disse o Miro.
-Até. - ambos respondemos.
Dei uma última olhada para trás, o Miro não parecia estar muito feliz, mas eu não podia ver o que estava ocorrendo agora, então me preocuparia com a minha primeira aula.
Ao entrar na sala vi vários magos com o mesmo uniforme que o meu, estavam conversando entre si, em grupos, mas todas as conversas pararam com a minha chegada e todos os olhos estavam em mim, o que fez minhas bochechas ficarem rubras. Atravessei a sala e sentei numa cadeira de canto. Aos poucos as conversas pareceram se restabelecer, mas com um novo assunto: eu. Um mago de cabelo branco com mechas marrons entrou na sala, fechou a porta e ficou de frente para todos, provavelmente era o professor.
-Bom dia a todos, sou Érebo e sou o responsável pelo aprendizado de vocês durante os próximos quatro anos, alguma pergunta?
Aproveitei a deixa para avaliar a sala. Como sempre havia vários magos de fogo e luz, alguns de vento, terra e água, além de um de relâmpago e um de gelo. Não havia outro mago negro na sala, pelo menos até agora, porque assim que eu pensei isso a porta se abriu e algumas pessoas da sala se encolheram um pouco. Um mago de cabelos pretos, com a pele mais clara que a minha e portador de uma aura negra bastante forte entrou na sala. Ele olhou pela sala, os nossos olhares se encontraram e ele veio em minha direção, sentando em uma cadeira que ficava atrás de mim. Provavelmente a proximidade teria feito qualquer pessoa sentir um leve arrepio de medo, mas como eu também usava magia negra foi fácil bloquear os efeitos da aura dele sobre mim. O professor olhou para nós dois e disse:
-Meu jovem, mago de gelo, qual é o seu nome?
Porque eu? Tinha tanta gente na sala...
O mago de magia negra começou a rir, o que era ruim, ele estava lendo minha mente. Eu o bloqueei nisso também.
-Ângelo. - eu respondi, olhando para o professor e tentando esquecer o ser sentado atrás de mim.
-Muito bem, Ângelo, pelo que me consta, você nem sempre foi daqui, certo?
Eu não estava muito confortável para responder e nem precisei, a resposta veio do outro canto da sala.
-É, ele era jolnir.
A voz era grossa e as palavras vieram com um tom raivoso. O dono da resposta era um rapaz de cabelos vermelhos com mechas brancas, bronzeado, um pouco mais forte que os demais. Ele ficou me olhando assim como o Miro fizera ontem. Aparentemente o professor não notou o tom de voz do outro aluno...
-Então, seu aprendizado deve ter sido diferente, conte-me o que você aprendeu até agora e caso alguém não tenha o feito, seja bem vindo.
Ter todos os olhos da sala voltado para mim de novo, e devo ressaltar que não eram olhares de “seja bem vindo, quero ser seu melhor amigo”, era tudo que eu queria...
-Bem... conheço até que bem as magias de levitação, contudo, não tenho conhecimento de magias que não sejam de gelo, ou vento.
Na verdade, eu também conhecia magias das trevas, mas isso não precisava ser comentado...
-Interessante... um tanto quanto diferente do que eu presumo do ensino dos seus colegas de classe, mas vamos ver...
Durante uns 40 minutos o professor foi perguntando aos alunos o que eles haviam aprendido. Pelo que eu escutei o aprendizado deles havia sido realmente diferente do meu, eles não sabiam magias de levitação e poucos sequer conheciam alguma magia mental. Por outro lado, todos conheciam razoavelmente bem todos os elementos, apesar de terem especialização nos seus elementos principais.
Por fim, ele perguntou ao mago negro, o qual era o último da sala.
-E você, meu jovem, - olhando para o mago negro - o que você aprendeu?
Por um momento a sala ficou quieta, até que ele finalmente respondeu:
-Eu conheço muito bem as magias da mente, não sou muito bom com as outras.
Sua voz era baixa, mas decidida.
-Acho que podemos concertar isso, certo?
A voz sugestiva dele ficou clara como sendo a da autoridade da sala.
-Claro professor, sem nenhum problema.
Eu jurava que ele ia fazer um espetáculo, amaldiçoar o professor e depois acabar com todos da sala, como era o de se esperar de um mago negro puro, por isso a resposta calma dele me pegou de surpresa. Com será que ele conseguia se manter tão bem?
-Que bom. Bem, agora já posso montar um esquema de ensino. Como todos conhecem bem seus próprios elementos, então o que preparei para a aula da manhã ainda pode ser dado, vamos para a arena.
Saímos da sala e seguimos por um corredor que cortava o bloco dos arqueiros, vi o Glaucos dentro de uma das salas, ele me viu de relance e acenou.
Estávamos no meio do corredor quando ouvi uma voz perto do meu ouvido.
-Oi.
Virei-me e vi o mago negro, olhando para mim.
-Hum, oi.
As pessoas desse lugar me surpreendiam cada vez mais.
-Tudo bem?
Aproveitei a deixa e tentei vê-lo melhor. Ele era um pouco mais alto que eu, e tinha olheiras fundas... algo que considerei normal, ele devia achar a luz do dia insuportável.
-Sim e com você?
Sabe, apesar da casualidade da minha resposta, eu realmente queria saber o estado dele, de certa forma, eu o admirava pelo excelente autocontrole.
-Também. - ele respondeu.
Assim como eu parecia surpreso ele parecia aliviado.
-Seu nome é Ângelo não é mesmo?
Sua voz sempre doce era algo que eu desconfiava. Parecia feita para ser persuasiva, algo inerente a magos negros.
-Sim e como você se chama?
-Caronte.
Pensando bem, as pessoas não gostavam de mim, e também não gostavam dele, então... fazia sentido ele vir falar comigo, ou pelo menos parecia fazer sentido...
-A sua mente não é fácil de entrar.
Aquilo era algo que eu não esperava ouvir, sutileza não era o forte dele.
-Ah... bem, eu sei me proteger.
E talvez fosse melhor não contar o porquê.
-As pessoas não costumam gostar de pessoas diferentes.
Algo no seu discurso me dizia que ele queria algo...
-É, eu sei.
Era um alívio ver que alguém me entendia, mal sabia ele que me entendia melhor do que qualquer um ali. Porém, a todo momento ele parecia meio sério, como se não soubesse como sorrir.
-Então... acho que eu nunca fui muito bom com minha parte social... estou indo bem?
Enquanto ele falava seu rosto ficou menos sério e eu quase vi um sorriso.
-Creio eu que sim, - um sorriso brotou no meu rosto, ele era parecido comigo - você é tão bom quanto eu para isso, o que quase te torna um fiasco.
-Ah...
Ele começou a rir, o que pareceu uma vitória para mim.
-Pois é, ainda não consegui dar oi e a pessoa sair correndo, mas só está faltando isso.
Ambos rimos. Era estranho vê-lo sorrindo, como se não o fizesse há meses.
Continuamos andando até chegar na frente de uma grande porta dupla de aspecto antigo, o que cessou nossa conversa. Quando o professor a abriu, pude ver a grande arena, ainda maior do que a da academia que eu tinha aula. Eu estava tão maravilhado com aquilo que me assustei quando ele começou a falar.
-Magos costumam ser poderosos, mesmo que sozinhos, mas quando se unem são uma arma ainda mais poderosa. Por isso vou ensinar uma magia de complementação. Magias de complementação são as que usam elementos opostos, onde cada elemento vem de um dos magos envolvidos, obviamente. Mas para isso, deve-se estar em sintonia com a outra pessoa, se não, podem ocorrer coisas bem desagradáveis.
Enquanto ele falava, todas as pessoas prestavam toda a atenção que conseguiam, pois, fazer uma magia de forma errada podia ter consequências terríveis...
-A magia de hoje é a de cura. Quando dois magos entram em sintonia e estão possuídos pelo sentimento de amor ao próximo, eles podem fazer uma cura extraordinária, mesmo que não seja envolvido um mago de luz.
Ele começou a olhar todos da sala, demorando um pouco mais olhando para mim. Paranoia, paranoia, o mundo não gira em volta do seu umbigo Ângelo. Eu fiquei recitando esse mantra internamente até o professor apontar para o Caronte.
-Caronte, não é? Poderia vir aqui?
Ele começou a andar em direção do professor, enquanto os outros tentavam ficar o mais longe que puderam dele. Quando ambos estavam frente a frente, o professor estendeu os braços para frente.
-Caronte, faça o mesmo.
E ele fez. Então o professor segurou o antebraço do Caronte, e o Caronte segurou o antebraço dele, fazendo uma espécie de corrente.
-Muito bom. Vejam, essa é a posição de ligação, é uma das melhores formas de conexão de magias. Agora Caronte, pode indicar alguém que você consiga sentir algum afeto? Nem que seja a mais simples amizade?
-Ângelo.
A resposta dele foi curta e precisa. Eu não sabia como reagir, as pessoas ficaram olhando para mim de um jeito diferente, curiosos.
-Está certo, – continuou o professor – vamos curá-lo então. Mas antes ele precisa de um machucado.
Eu queria não pensar na quantidade de voluntários que queriam realizar esta tarefa, mas os olhares não conseguiam esconder muita coisa. Para azar deles, e fui mais rápido. Arregacei a manga do quimono, segurei meu antebraço direito com a mão esquerda e disse:
-Congelar.
Meu antebraço ficou muito mais frio do que normalmente era, eu deixei aquela sensação por alguns segundos, até ver um filete vermelho, indicando que o gelo estava rachando minha pele. Parei a magia e deixei meu braço voltar à temperatura normal, fazendo com que o sangue voltasse a ser líquido e começasse a escorrer. Não era muito e não tinha doído tanto.
Os outros ficaram meio transtornados com minha frieza com o corte, mas como eu sabia que seria curado logo, não tinha razão em ficar choramingando.
O professor voltou sua atenção para o Caronte, o qual acenou com a cabeça.
-Você está pronto? Lembre-se: você deve estar em sintonia comigo.
-Ok. - ele respondeu.
E então começou. A magia negra fluía do Caronte, como um laço preto assim como a luz fluía do professor, como um laço branco. E ambos os laços se complementavam, nunca se chocando, sempre estando lado a lado. Era uma cena muito bonita de se ver. Até que os dois laços se transformaram numa névoa, a qual veio em minha direção. Quando a névoa me tocou, senti alegria, era como se alguém estivesse me abraçando. O corte no meu braço foi se fechando, até que o braço voltou ao normal. E a névoa começou a desaparecer.
O professor e o Caronte se soltaram e o professor voltou a falar:
-Obrigado pela ajuda Caronte, você foi ótimo.
Ele acenou e voltou a ficar longe dos outros.
-Como vocês puderam ver, - continuou o professor – em pouco tempo fizemos uma boa cura, mesmo usando a magia negra. Mas vamos ver como acontece com outros elementos. Venham aqui Pharos e Ângelo.
Para minha enorme felicidade, Pharos era o cara que tinha dito que eu era jolnir... isso não ia dar certo...
-Bem, eu sei que talvez isso seja difícil, mas tentem me ver como um amigo. – o professor disse rindo.
Na verdade, ele parecia bastante legal, eu não teria dificuldade em fazer isso, exceto pelo fato de estar fazendo isso ligado a um cara que me odeia sem me conhecer.
Ficamos de frente um para outro enquanto professor tirou uma pedra afiada do bolso e fez um pequeno corte no braço.
-Ok, comecem a magia.
Estendemos os braços e ficamos naquela posição de corrente. Pensei no professor e em como eu queria curar o braço dele, porque ele parecia ser uma boa pessoa. Fazendo isso a magia de gelo começou a fluir, enquanto senti o fogo o seguindo. O Pharos segurava meu braço com força e não parecia que ele estava tentando emanar felicidade.
As coisas começaram a dar errado quando eu notei que ele libertou a luz, e ela estava fortalecendo o fogo, fazendo um desequilíbrio entre o fogo e gelo. Pude sentir a temperatura aumentando e minha magia sendo destruída pouco a pouco. Era impossível pensar em ajudar alguém quando ele parecia estar tentando me machucar!
Tentei forçar o gelo a ter mais força, mas não conseguia. A magia negra pulsava dentro de mim. O calor começou a ficar forte demais, até que eu senti a primeira queimadura no meu braço, exatamente onde ele estava me tocando. A dor foi muito forte, aquilo explodiu na minha mente, trazendo à tona toda a raiva que eu tinha guardado.
A magia negra se libertou.
Vi de relance os olhares assustados das outras pessoas. Foi quase como se a magia negra explodisse, dando força ao gelo. Mas isso não durou muito, o gelo entrou em sintonia com o fogo e a luz com a escuridão e estávamos envoltos de quatro laços interligados. Minha raiva pulsando pelo meu sangue e eu podia sentir o mesmo dele, mas agora também havia o medo. Ele não esperava pela magia negra.
Ficamos nos encarando por um tempo, até que a minha raiva começou a passar, e seu rosto demonstrava que ele também estava ficando calmo. Quando ficamos calmos ao ponto da confusão a magia cessou.
Soltei-me dele e tomei distância, pronto para me defender de mais algum ataque. Mas o professor colocou uma pedra entre nós.
-O que você pensa que está fazendo?!
O rosto do professor estava enraivecido, até mesmo a magia negra não fez eu deixar de ter medo. Mas ele não estava gritando comigo, e sim com o Pharos.
-Você poderia ter provocado uma explosão, se tivesse continuado! Esse tipo de magia não deve ser feita com raiva, você tem ideia do quão irresponsável você foi?! Vamos falar com a diretora agora! O resto de vocês fiquem aqui.
Durante todo o discurso eu não tinha visto o rosto dele, quando eles passaram por mim eu vi raiva e tristeza em seus olhos. Depois que eles saíram eu arregacei minhas mangas, meus dois braços ardiam...
O Caronte foi o primeiro a chegar perto de mim.
-Cara, você está bem?
Eu não tinha muita certeza, só sabia que meu braço ardia, e muito.
-Não sei, só meu braço está ardendo, fora isso, acho que tudo bem...
Uma maga de água, de cabelo amarrado chegou perto de mim aos poucos, tentando se esquivar dos efeitos da aura negra.
-Eu posso te curar, – ela começou - se você quiser.
Eba, dois magos que não queriam minha morte, já era um avanço.
-Se você puder, eu ficaria agradecido...
Ela tirou uma pequena sacola de couro do bolso, e a abriu, virando-a encima do meu braço, fazendo com que a água que estava dentro molhasse minhas queimaduras, o que fez arder mais ainda.
-Já vai passar, relaxe um pouco.
Fiz o que ela me pediu e ouvi uma pequena canção, a qual ela estava entoando. A água começou a entrar na pele queimada, restabelecendo a vida do tecido. A ardência parou.
-Muito obrigado... – eu disse, sorrindo. Magos de água costumavam ser muito dóceis e bons com os outros.
-Ligeia. - ela disse, enquanto sorria.
-Obrigado Ligeia, de verdade.
Ela acenou e voltou a tomar distância, indo falar com uma maga de cabelos brancos que parecia feliz com o que ela tivera feito.
Voltei minha atenção ao Caronte, o qual disse:
-Agora entendi porque sua mente é difícil de entrar, e mudar seus sentimentos é quase impossível.
Eu realmente não queria que soubessem da magia negra... mas ver o Caronte me deu alguma esperança de que talvez não fosse ser tão ruim assim... E caramba! Ele mudou meus sentimentos! Isso era muito difícil de fazer... aparentemente ele era mais forte do que eu esperava.
-Você realmente fez isso?
Ele pareceu meio envergonhado com minha pergunta.
-Sim... o professor me pediu para acalmar vocês dois. O outro lá foi fácil, mas sua raiva não queria sair de jeito nenhum.
Agora eu tinha entendido. A raiva estava alimentando a ligação, já que os dois estavam com raiva, mas o alvo de um era o outro, por isso ninguém foi, muito, ferido. Daí para quebrar a magia, o professor pediu para o Caronte tirar a raiva dos dois, o que fez a magia perder a força e morrer. Nesse momento o professor chegou e dessa vez veio falar comigo.
-Você está bem? Não se machucou?
Eu fiquei me perguntando onde estava a ferida que ele havia feito, mas como ele era um mago de luz, ele mesmo devia ter se curado...
-Eu me machuquei, mas a Ligeia já curou a queimadura.
Seu rosto estava indecifrável, parecia que ele estava nervoso, triste, arrependido e preocupado, mas tudo ao mesmo tempo.
-Sinto muito por isso, não vai acontecer de novo...
Eu podia sentir a dor em suas palavras, mas não era culpa dele, eu era um mago que usava magia negra e morei em Jolnir por toda minha vida... eu não esperava completa aceitação aqui... E apesar disso, até agora fui muito bem tratado pela maioria.
O professor se dirigiu à sala dessa vez:
-Vocês estão dispensados, por hora. Estejam aqui depois do almoço. Podem visitar nossa biblioteca ou se enturmarem, já que vocês eram de salas ou lugares diferentes.
A sala começou a se dispersar, só restando eu, o Caronte e o professor na arena.
-Obrigado Caronte, muito obrigado mesmo. - disse o professor.
Ele demorou um pouco para responder, o que eu entendi como o fato de ele se perder em pensamentos com tanta facilidade quanto eu.
-Ah, por nada.
O professor respirou fundo e foi para fora da arena também, aquilo o tinha estressado bastante...
-Caronte, isso acontece frequentemente?
Ele me encarava, seus olhos pareciam que podiam me atravessar e ver através de mim, o que realmente aconteceria se eu permitisse.
-O fogo faz as pessoas ficarem instáveis, como você sabe... mas o fato de você ter sido jolnir foi o ponto mais forte dele ter começado isso, ele perdeu o pai numa guerrilha a muitos anos atrás, e sua presença fez a dor dele ficar bem mais forte, até ele querer se vingar em você.
Aquilo fazia sentido, mas como ele sabia disso?
-Como você...?
Eu nem precisei terminar a frase...
-Nem todos conseguem se defender como você. Na verdade, das pessoas da nossa idade, você é o único que consegue me bloquear.
Agora as coisas começavam a fazer mais sentido. Mas isso não era bom. Se eu fui atacado dentro da academia, as coisas poderiam ser ainda piores fora dela... eu precisava ficar atento...
-Mas Caronte... - perguntar coisas indelicadas nunca foi meu forte... - você não se sente... mal... por ler o pensamento das pessoas?
-Eu não faço isso toda hora, - ele disse, me avaliando – só quando é necessário, ou quando me é útil.
Bem, eu fazia o mesmo, então acho que não era tão ruim assim...
-Você tem bastante magia negra, mas não sabe usá-la. Por quê?
A naturalidade com ele falara aquilo me assusto um pouco. Não era tão simples, as pessoas não gostavam, tinha efeitos colaterais, e tudo mais. Além de que na outra nação eu tentei esconder do mundo, aqui isso tinha sido um total fiasco.
-Bem, a represália sempre foi bastante forte...
Algo na sua expressão séria me disse que ele sabia e se importava tanto com isso quanto uma criança de 2 anos se importa com os avanços da Física Quântica.
-Se você soubesse usar sua magia melhor e não tivesse medo de usá-la, não teria se machucado. Além disso, é melhor você fazer as pessoas a sua volta criarem barreiras psicológicas próprias por causa da presença da sua magia negra do que elas estarem despreparadas no caso de um ataque da Penumbra.
As verdades cuspidas na minha cara agora foram como uma sucessão de tapas na cara. Tudo que ele disse fazia todo o sentido, mas era lógico demais para ser engolido facilmente.
-Podemos mudar de assunto? - eu pedi.
-Claro, sem problemas. – ele disse, ainda usando seu tom de voz casual.

Ao chegar ao quarto encontro um Glaucos muito nervoso.
-Ângelo, o que você pensa que está fazendo? Você nem sabe andar por aqui e já sai assim!!! Nós ficamos preocupados com você, poderia ter acontecido alguma coisa!
Eu não pude deixar de sorrir, ele me conhecia a tão pouco tempo e se importava comigo, isso era muito legal.
-E para de dar risada da minha cara!
Ele parecia indignado com o fato de eu ter dado uma risadinha.
-Glaucos, desculpe por isso, tentarei não fazer de novo.
Fiz a cara de santo mais convincente da minha vida, para conseguir disfarçar a verdade de que essa promessa provavelmente seria quebrada, caso acontecesse mais alguma coisa.
-Bom mesmo.
Eu não consegui segurar, comecei a rir.
-É, deve ser muito engraçado ver eu nervoso mesmo.
Ele sentou na própria cama, talvez ele tenha ficado mais preocupado do que eu imaginei. Eu me sentei ao lado dele.
-Ah, não fica tristezinho, eu já estou aqui.
Abracei-o de lado, no começo ele fingiu que não tinha visto, mas depois correspondeu.
-Isso quer dizer que ninguém está bravo com ninguém mais?
Dessa vez quem falara era o Miro, por um momento eu tinha esquecido que ele estava aqui, mas quem respondeu a pergunta dele foi o Glaucos:
-Acho que é isso, o Ângelo sabe como fazer uma entrada, não é mesmo?
Todos rimos, apesar de eu estar pensativo sobre os problemas atuais do Miro.
-Vocês dois se conhecem a muito tempo?
Parecia que eu tinha dado início a uma resposta que seria uma longa história, porque o Miro fechou a porta e sentou na cama dele enquanto o Glaucos começou a contar.
-Sim, faz bastante tempo, nós nos conhecemos 11 anos atrás, quando ainda não estudávamos sobre lutas.
-É verdade, nós estudamos juntos por... seis anos, Glaucos?
Ele olhou para o teto, aparentemente contando mentalmente.
-Acho que sim, foi aproximadamente isso e depois cada um começou a estudar sobre coisas específicas de cada classe.
Interessante, aqui eles tinham um sistema escolar semelhante ao que eu tive.
-Mas nem por isso deixamos de nos falar, somos amigos desde então, foi uma grande surpresa quando disseram que íamos morar juntos. – o Glaucos disse, com um sorriso no rosto.
-Nem me fale, fiquei muito nervoso antes de saírem os nomes dos formandos e com quem morariam, teriam muitas pessoas que eu odiaria conviver.
Tentei não me encaixar na lista do Miro de pessoas que ele odiaria conviver. Depois disso eles falaram sobre o que haviam aprendido, como eram as coisas aqui e sobre a academia superior. Durante todo o tempo da conversa o Miro não parava de me olhar, aquilo era meio estranho, algo que eu entendi assim que ele dirigiu a palavra a mim.
-Ângelo, você ficou vermelho demais quando entrou pela porta pela primeira vez. Por quê?
-Ah...
Só para não perder o costume eu fiquei vermelho de novo.
-Então... é por que... vocês dois... hum... são bonitos.
Eu estava encarando o chão enquanto tentava dizer.
-Olha só Miro, ele também é gay. - eu ouvi o Glaucos dizendo.
Aquilo tinha me surpreendido, eles também eram?
-Só pra saber, vocês também são?
Quem me respondeu foi o Glaucos:
-Ah não Ângelo, eu não, mas o Miro é.
O Miro abriu um largo sorriso. Eu não sei por que perguntei aquilo, apesar de eles serem bonitos eu não ia ficar com ninguém. Não ia sofrer a dor da perda pela segunda vez, porque o Marcelo me abandonou...?
Eles notaram que eu fiquei um pouco pensativo, o Glaucos me chacoalhou.
-Hey, você tá aí?
De repente aquilo tudo não fazia sentido, eu não podia estar feliz, eu tinha visto o Marcelo morrer ontem! Mas... eu não podia consumir sentimentos negativos, e durante todo o dia eu tentei ser uma pessoa contente e aberta para as novas possibilidades que eu induzi. Mas a possibilidade de um novo amor? Não, essa não existia...
-Eu só me recordei de uma coisa... nada demais.
Levantei-me e fui até a janela. Pude ouvir o Miro dizendo:
-Ah, conta, o que houve?
Senti a raiva voltando, não, eu não podia descontar neles...
-Não é nada demais, não quero falar sobre isso.
Talvez eu tenha sido rude, mas era a verdade e eu não estava pronto para contar o que havia acontecido. O sorriso no rosto do Miro se esvaiu aos poucos, eu me senti um pouco mal. Por isso fui para a cama dele e fiquei sentado ao seu lado. Eu não tinha percebido ainda, mas eu nem tinha prestado atenção nos uniformes. Todos tinham o mesmo tom azul marinho com detalhes em cinza claro. A armadura era parecida com a dos jolnirs, era metálica e grande, aparentemente era bem pesada e tinha uma capa que parecia metálica, mas não era. Já o traje... acho que era de um couro bastante resistente, era bem colado ao corpo e também tinha uma capa, porém era mais estreita e mais longa. Já o meu quimono era de algum tecido fortalecido magicamente, era mais folgado que o traje e não tinha capa, tinha um cachecol no lugar. Sobre as armas, meus orbes eram de uma liga de bronze e um pouco de prata com uma safira incrustada, mas eu sempre quis ter orbes de prata com esmeralda, que eram mais poderosos, porém eram muito caros. Para explicar melhor o que é um orbe: é parecido com um escudo, só que menor, a maioria é redondo, mas os mais fortes têm formas próprias, muitas vezes provenientes do encantamento feito no orbe ou por causa do metal, da pedra que há nele, são variados os motivos. De qualquer forma o orbe fica nas costas das mãos dos magos, preso a uma luva que sempre usamos. Os orbes fortalecem a magia. Agora sobre a arma do Miro, era uma espada de duas mãos, chamada de montante, de uma liga de prata e bronze, era tão forte quanto orbes de esmeralda, talvez ele não tivesse problemas financeiros. Eu pensei sobre isso até notar que o arco do Glaucos era de prata com alguns diamantes incrustados, uma combinação muito cara e poderosa, ele com certeza não tinha problemas com dinheiro. Fiquei algum tempo olhando para o arco, mas não era algo muito educado de se fazer e o silêncio no quarto já estava começando a incomodar.
-Vocês vão querer jantar? Devo admitir que não almocei hoje, o dia foi... cheio.
Tentei não olhar para o Miro, seria o mesmo que dizer “E foi culpa sua”.
-Eu comi enquanto o Miro foi te buscar, Ângelo. - respondeu o Glaucos.
-Eu ainda não jantei e estou com fome, vou te levar pra jantar. - O sorriso bobo voltou ao rosto dele, o que era estranho se contrastado com a forma como ele estava nervoso a algumas horas atrás. Mas usuários de fogo eram assim, colocavam as coisas para fora, o que eu poderia fazer?
-Ah, que bonitinho, o Miro vai levar o Ângelo pra jantar. - O Glaucos disse isso num tom muito pomposo e começou a gargalhar quando parou de falar.
Meu rosto ficou vermelho e eu não consegui dizer nada.
-Glaucos, fica quietinho pra eu gostar de você. - O Miro disse isso e piscou para mim, como se piscar ajudasse em algo...
-Acho melhor irmos logo. - eu disse rapidamente.
-Ok, vamos, até depois Glaucos, comporte-se.
A forma como eles se tratavam... parecia como irmãos. Não que minha experiência no assunto fosse grande, já que eu nunca tive um irmão, mas pelo que minha mãe me contou deveria ser assim...
-Pode deixar, se eu não estiver aqui, estarei na casa das meninas.
E piscou pro Miro.
-Ai ai... homens... - eu precisava desabafar.
Eles riram.
Saímos do prédio e caminhamos por entre algumas ruas estreitas, as quais ficaram ainda mais estreitas por causa do tamanho dele.
-Eu estava me sentindo mal por ser pequeno perto de vocês, mas agora vejo que não é tão ruim assim. - falei isso sorrindo, enquanto ele aparentava algum sinal de estresse.
De certa forma, zoar alguém era divertido, mas eu não queria vê-lo bravo, não depois daquela cena de hoje a tarde. Como eu não sabia muito bem o que fazer, fiquei ao seu lado e segurei sua mão. Por um momento eu pensei no que eu estava fazendo, eu estava andando de mão dada com um quase estranho... mas considerando tudo que já aconteceu hoje, isso era o de menos.
-Você não está bravo, está?
Eu juro que tentei não rir...
-É, certas pessoas me deixam assim.
Ele também não estava de todo sério, então achei que não havia problema.
-Ah... que triste, esse tipo de pessoa deveria apanhar não é mesmo?
Não consegui resistir, dei uma risada baixa. Em resposta ele apertou um pouco minha mão.
-Ai. Não faça isso!
Usar de força era um golpe muito baixo contra um mago...
-Vai ficar quieto?
Desacreditei naquilo.
-Você está me ameaçando?!
-Não... ainda. - ele disse isso com um sorriso muito malvado no rosto.
-E depois dizem que quem usa magia negra que tem maldade no coração.
Tentei libertar minha mão, mas ela estava muito bem presa.
-Eu não tenho maldade no coração.
Ah, eu também não. Diga boa noite à ironia.
-Diga isso para a minha mão.
Ele me encarou, depois olhou para nossas mãos.
-Ah, eu apertei só um pouquinho.
O pior de tudo é que eu acreditava nele, provavelmente ele não deve ter feito muita força, mas já tinha sido o suficiente para eu sentir machucar um pouco...
-Vou deixar você numa sala a -40°C só um pouquinho, para você ver como é bom.
Não que eu estivesse verdadeiramente bravo, mas eu não sabia se ele sabia lidar com pessoas com baixa resistência física, por exemplo: eu.
-Que exagero, nem deve ter doído.
Eu dei a língua para ele, algo muito infantil, mas quem liga? Eu nunca tive oportunidade de ser infantil, talvez tirar o atraso fosse bom, mas acho que deixar uma primeira impressão também seria algo interessante de se fazer...
-Olha, não dê a língua pra mim de novo.
Isso era um desafio?
-Por que se não...?
Novamente ele deu a mesmo sorriso malvado e disse:
-Já chegamos.
Estávamos na frente de um restaurante bonito, com uma fachada vermelha, o que dava uma sensação de calor...
-Que bom, você é muito inoportuno. – eu disse, tentando segurar o riso.
-Eu?!
Dessa vez ele estava verdadeiramente surpreso.
-Claro, você que tenta quebrar a mão do alheio... mas não quero discutir agora, preciso comer.
Ele realmente pareceu confuso.
-Você parece uma criança mimada.
Essas palavras entraram na minha mente de uma forma diferente, quase como se cortassem, será que eu era mesmo uma criança mimada? Vindo de alguém que eu conheci a pouco tempo, pareciam palavras sinceras...
Eu soltei a minha mão da dele e continuei andando em direção ao que parecia ser o restaurante, ele me olhou como se tivesse me magoado, o que eu estava decidindo se era verdade.
-Ângelo, eu não quis dizer isso e...
-Você não disse nada demais.
Eu o cortei, falar sobre coisas desagradáveis não era o melhor a se fazer.
-Mas você ficou estranho.
Isso não era um problema dele.
-Não importa, vamos comer.
Ele segurou meu braço.
-Não, espera, você ficou chateado com isso?
Depois de tantos anos guardando meus pensamentos para mim, porque agora eu achava que tinha o direito de mudar?
-Não, mas vou ficar chateado se eu não comer algo.
Nunca fui um bom mentiroso, mas acho que dessa vez deu certo, ele me soltou, apesar do olhar pensativo no rosto dele, e entramos.
O restaurante era um pouco fechado e o vermelho predominava também dentro do local. Eu me dirigi a uma mesa de canto e o Miro me seguiu. Não demorou muito para que nos atendessem, a moça me entregou um cardápio com nomes que eu jamais vira na vida. Olhei para o Miro com um olhar de súplica, ele entendeu.
-Garçonete, o que os magos costumam pedir? - ele disse, olhando para mim com um sorriso. Acho que ele não desistia de deixar as pessoas felizes, menos quando eram jolnirs imundos... ok, eu vou esquecer isso... um dia.
-Ah, o especial rubro costuma ser muito pedido pelos magos, eles dizem que tem um sabor especial.
O clima do lugar não fazia eu me sentir bem, mas talvez fosse só a falta de costume com essa nação, e esse pensamento quase me fez deixar de ouvir o que a mulher tinha dito.
-Eu quero um desse. - eu disse, mas com algum receio na voz.
-Tudo bem e o senhor? - ela disse, se dirigindo ao Miro.
-Quero um especial flamejante.
Após anotar os pedidos, ela disse:
-Não demorarei em trazer os pratos.
-Muito obrigado. - ele respondeu.
Era engraçado ver o Miro sendo educado e cordial, não encaixava muito bem com a aparência dele.
-Melhor? - ele disse, me encarando.
O que ele queria dizer com isso?
-Em relação a...?
-Ao que não quis me dizer lá fora.
É, definitivamente eu era um péssimo mentiroso.
-Você me fez pensar, só isso.
Não era mentira, só a parte do “só isso”.
-Ah, então sempre que eu achar que você está chateado é porque você está pensativo?
Ele me olhava seriamente, como se tentando me entender. Fiquei um tempo pensando nisso, mas depois respondi.
-Talvez você esteja certo.
Admitir isso era como atirar uma pedra na minha redoma de vidro, eu não acreditava que tinha feito isso, confiar em um quase desconhecido não costumava ser do meu feitio, até que... ah, por que o Marcelo sempre acabava na minha mente?
-Sobre o que?
Demorei um pouco para lembrar sobre o que estávamos falando...
-Sobre eu ser uma criança mimada.
Ele apoiou as duas mãos na mesa e disse:
-Ah, não, eu disse aquilo num momento de raiva e também...
-Não deixa de ser verdade. - eu o interrompi - Podemos dizer que eu nunca pude ser uma criança, mas isso é uma longa história.
Com essa, acho que era a segunda ou terceira coisa que eu me recusava a falar, talvez isso fizesse de mim uma pessoa chata, ou só eu mesmo.
-Acho que temos alguns anos pela frente, provavelmente uma hora você poderá me contar.
Seu olhar de ternura quebrou toda minha base argumentativa. Eu poderia dizer que meu passado era algo a se esquecer, que ele não precisava saber disso, ou até que isso não era assunto dele, mas só o que eu disse foi:
-É, uma hora...
-Quando quiser falar sobre isso...
-Ok.
O silêncio se prolongou até a garçonete voltar com os pratos. O prato do Miro parecia que tinha de tudo um pouco, enquanto o meu era bem simples, tinha algo que parecia com um peixe meio avermelhado e acho que algumas algas, também vermelhas. Bem, não custava tentar, a comida não ia me matar. Peguei um pedaço do peixe e da alga no garfo e comi. Pareciam bons, eu peguei mais um pouco e quando coloquei a comida na boca, senti uma queimação. Parecia uma azia, mas estava ficando quente demais para ser só uma azia, senti meu corpo todo ficando quente... quente demais. Eu derrubei o garfo, meu rosto ficou vermelho. O Miro começou a me olhar assustado. Meu cabelo começou a perder a cor, assim como meus olhos e a magia negra começou a pulsar mais forte dentro de mim, até que ela se libertou contra a minha vontade. Agora meus cabelos estavam negros, meus olhos estavam cinzentos e meu rosto estava vermelho.
-Ângelo, o que foi?!
Ele se levantou e ficou ao meu lado. A garçonete veio logo depois e deu dois tapinhas nas costas dele.
-Não se preocupe querido, é normal a sensação de fogo, é por isso que a maioria dos magos gosta tanto. Ela disse com toda a tranquilidade do mundo.
-Mas ele é um mago de gelo!!!
Ele estava com tanta raiva quanto esteve hoje à tarde, e eu não gostei muito desse dejávù...
-Oh... talvez isso seja um problema. - a garçonete respondeu. Como eu queria socar a cara dela.
Agora o fogo se espalhava por todo o corpo, eu senti como se estivesse queimando, me segurei na cadeira para não cair. Aos poucos o fogo foi se atenuando, mas eu não conseguia achar minha magia de gelo.
-Ângelo? Você está bem? Por que você tá usando magia negra?
Um pouco de suor escorreu pelo meu rosto.
-Eu... acho que estou bem, mas... não consigo usar magia de gelo. O que é isso?!
A aura negra agora estava sendo a única rodeando meu corpo, por isso ela estava mais poderosa, pude sentir isso quando vi que a garçonete e o Miro se perderam em pensamentos. Tentei prender um pouco, mas não consegui prender muito, apesar de ter sido o suficiente para eles voltarem a si.
-Desculpem-me... eu... vou embora, só preciso pagar por isso antes.
Ambos me olharam incrédulos.
-Você não precisa pagar! - disse a garçonete - Eu não sabia que ia acontecer isso, me perdoe.
Ela ia segurar meu braço, provavelmente para me ajudar a me levantar, mas a magia negra não permitiu que ela chegasse tão perto.
-Miro, vou te esperar lá fora.
Levantei-me e comecei a me arrumar para sair.
-Não! Eu vou embora com você.
Ele parecia preocupado, apreensivo e muito nervoso, coisas que a presença da magia negra só piorava.
-Meninos, não precisam pagar, me perdoem por isso.
-Está tudo bem, não foi culpa sua. - As palavras saíram com mais mágoa do que eu imaginava, usar só magia negra não era uma boa coisa.
Saímos do restaurante sob os olhares da maioria dos fregueses, eu estava muito envergonhado, acho que estava fazendo tudo errado.
-Ângelo... vamos pra casa, vou comprar algo para comermos no caminho.
Ele colocou a mão no meu ombro, isso me surpreendeu.
-Como você fez isso?
Só minha mãe conseguia me tocar quando eu usava muita magia negra...
-Te tocar? Sou um guerreiro, tenho uma boa resistência mágica por natureza. Além disso, estou me esforçando.
Ótimo, mais um gasto à toa de energia.
-Não precisa se esforçar só para me tocar.
Acho que eu nunca havia ficado só com a magia negra, era uma sensação muito angustiante e minha cabeça estava uma bagunça completa...
-Não se preocupe comigo, você já tem seus problemas.
Eu queria contestar, mas eu estava começando a ver que receber apoio ajudava bastante... de qualquer forma, não demorou para chegarmos em casa, o Glaucos estava na janela e assim que nos ouviu entrando começou a falar.
-Ah, eu já estava quase indo ver as meninas, achei que vocês fossem demorar mais... nossa, Ângelo, o que você tá fazendo?!
-Eu não estou tendo muita escolha.
Ele veio até mim, mas parou no meio do caminho.
-Desculpe por isso...
O Miro pegou ele e o colocou mais pra trás, até que ele voltou a si.
-Uh... eu sabia que magia negra era ruim, mas...
O Miro estava de costas para mim, então eu não pude ver o que ele fez, mas seja lá o que foi, fez o Glaucos ficar quieto no mesmo instante.
-Glaucos, pode comprar algo para comermos? Não conseguimos jantar direito, eu fico cuidando do Ângelo.
Receber apoio era uma coisa, mas eu não tinha idade para precisar de “cuidados”.
-Eu não preciso que cuidem de mim.
De novo a citação criança mimada me veio à mente, ótimo...
-E eu não perguntei nada pra você.
Os punhos dele ainda estavam fechados, talvez fosse melhor não contrariar muito, minha mão agradeceria.
O Glaucos concordou em comprar algo e saiu. O Miro ajoelhou ao lado da minha cama.
-Ângelo, agora somos colegas de quarto, eu estou percebendo que você era meio... antissocial antes, mas você tem que deixar isso de lado, eu sempre vou te ajudar quando você precisar, você queira ou não. Olha... eu não sabia que aquilo aconteceria Ângelo, - seus olhos estavam um pouco marejados, era estranho ver alguém que parecia um muro daquele jeito - me desculpe por isso, acho que preciso te conhecer melhor antes de tomar certas decisões.
Ele... ele estava se culpando? E ele parecia tão preocupado... ele se importava comigo. Nossa, que diferente...
-Está tudo bem Miro, acho que não foi culpa de ninguém, - mentira, eu sabia que a culpa era minha - acontece.
Ele me olhou nos olhos, eu devia estar horrível.
-Eu queria que você parasse de mentir pra mim, por favor.
Eu fiquei muito surpreso, como ele poderia saber quando eu mentia?
-Como você sabe quando eu estou mentindo?
Eu abaixei um pouco a cabeça, ele levantou meu queixo de forma a eu voltar a olhar nos olhos dele.
-Isso não importa, mas eu sei e queria que você parasse.
Era algo difícil de ser cumprido...
-Vou tentar...
Deitei um pouco, aquele calor todo me deixava cansado, ele sentou ao lado da minha cama. Eu não conseguia mais falar, minha cabeça estava um caos. Eu só queria conseguir prender a magia negra mais uma vez, queria que o Glaucos trouxesse comida de verdade e queria não fazer ninguém sofrer ao chegar perto de mim.
-Vai ficar tudo bem Ângelo.
Eu não respondi, não sabia se conseguiria.
Ficamos assim por um tempo, até que o Glaucos chegou com uma sacolinha. Eu estava muito cansado, aquele calor todo estava tirando minhas energias.
-Ângelo? Eu trouxe algo frio pra você.
-Ok...
Eu levantei e tentei ficar sentado, senti o quarto girando, e uma ânsia de vômito enorme. Meu rosto perdeu totalmente a cor. Fiquei um tempo sem me mexer, esperando aquilo passar. Funcionou.
-Ângelo?
Eu achava que era a voz do Glaucos, pelo menos parecia. Eu olhei para o seu rosto e ele ficou imóvel, seus olhos estavam perdidos em alguma coisa que eu não conseguia ver. Será que...
O Miro pensou no mesmo que eu, e o tirou de perto de mim. Ele começou a arfar, tentando se recuperar do pesadelo que provavelmente eu tinha forçado ele a ver.
-O que está acontecendo...? - eu disse, quase chorando.
Eles se entreolharam e depois olharam para a sacola.
-Ângelo, você precisa comer algo... que não te deixe pior, talvez passe...
O Miro parecia muito preocupado, ele trouxe a sacolinha até o meu lado e a abriu, tinha uma caixa branca, quando ele a abriu havia seis coisas que pareciam bolinhos. Eu olhei com certa desconfiança, mas acho que não ia piorar e eu estava realmente com fome, apesar do enjoo. Peguei um bolinho, ele estava tão gelado, aquilo foi muito refrescante, dei uma boa dentada nele e comecei a me sentir melhor quase que instantaneamente. Não vou citar meus modos ao comer neste caso porque eu estava com fome, portanto não foi algo muito elegante. Mas me fez muito bem, eu não me sentia tão quente mais e a sensação de cansaço estava indo embora. Além disso, eu consegui controlar a magia negra. Quando eu acabei de comer notei que o Miro também estava comendo bolinhos, mas os deles tinham umas pintas vermelhas. A todo momento eu tinha dois pares de olhos grudados em mim e agora que eu estava melhor isso já podia acabar, nunca gostei de ser o centro das atenções.
-Eu já estou melhorando, já podem parar de me olhar assim.
Eu senti o alívio em seus rostos.
-Mas Ângelo, seu cabelo... - Glaucos respondeu com certa apreensão.
Sim, isso também estava me preocupando...
-É, eu ainda não... ai!
Uma nova queimação começou, mas dessa vez parecia como se eu fosse explodir. Eu gritei de dor.
-ÂNGELO!!! - Glaucos e Miro gritaram juntos.
Eu caí na cama, meu cabelo estava azul claro com mechas negras novamente, mas eu estava arfando e meu coração estava disparado.
-Ângelo, o que foi? Você tá bem? Poxa, se você fizer isso todo dia eu tenho um ataque cardíaco qualquer hora.
Eu ri muito do comentário do Miro, apesar de ser verdade, eu definitivamente não queria que isso se repetisse.
-Agora eu estou bem, acho que aquilo foi a despedida do peixe.
Era muito bom sentir o frio de novo. Eles relaxaram, eu pude sentir isso. Tentei me levantar e o quarto não girou, e nem tive ânsia de vômito. Olhei para eles, aliviado.
-É, passou. Meninos, acho que já podemos dormir, chega de hoje...
O Miro pareceu meio perplexo com o que eu disse.
-Meninos, Ângelo? Eu já tenho 19 anos.
A voz de indignação do Miro só confirmava o que eu havia dito, comecei a rir.
-Eu devia te socar, sabia?
Quanta violência gratuita...
-Você é muito estourado, eu só disse meninos.
Eu sorri, acho que era para eu estar nervoso, mas não conseguia, ele cuidara de mim até agora. Meu sorriso o desarmou, ele perdeu a pose de nervosismo e sentou na cama dele. O Glaucos ficou me olhando muito surpreso, mas não disse nada.
-Bem, meninos - minha voz ficou mais acentuada ao dizer esta palavra - vou dormir, hoje foi... um dia e tanto, e nem imagino o que fazer amanhã...
O Glaucos me olhou de um jeito estranho, mas logo sua expressão se atenuou.
-Ângelo, - começou ele - é provável que você não saiba, mas... nossa primeira aula é amanhã.
Isso não era possível, amanhã era domingo...
-Mas... é domingo! - eu disse, choramingando - Vocês têm aula de domingo?!
-Não, - respondeu o Miro - é só amanhã, pra funcionar como uma ambientação. Daí colocaram num domingo pra não perder um dia letivo com isso.
Por que pensar em passear durante o dia quando eu podia ficar o dia todo dentro de uma sala de aula? Isso ia ser tão excitante... eu mal podia esperar...
-Bem, então agora tenho mais um motivo para dormir logo.
E eu que planejava fazer algumas coisas antes de as aulas voltarem...
-Tudo bem, - disse o Glaucos - mas você não vai dormir com o uniforme não é mesmo?
A voz do Glaucos foi a de um especialista em moda que ficaria muito irritado se alguém dormisse com uma vestimenta formal.
-Ahn... claaaaro que eu não ia fazer isso. - Minha voz tentou disfarçar, mas o Miro riu.
Comecei a organizar minha roupa no meu armário enquanto o Miro e Glaucos se trocavam para ir dormi. Para ser franco, o Glaucos estava se trocando, pelo que entendi o Miro ia dormir com uma bermuda bastante curta e só, fiquei meio vermelho ao ver aquilo, ele percebeu e veio na minha cama, o que fez a vermelhidão ficar ainda maior.
-Quer ajuda pra arrumar suas co...?
-Não. - eu disse antes que ele pudesse terminar a pergunta. Eu tinha que interrompê-lo, ele não podia ficar tão perto de mim... e... quase sem roupa...
-Tem certeza?
Eu não tirava o olho na minha mala.
-Tenho, tenho sim, pode ficar na sua cama.
A cada vez que ele falava, ele deixava claro que estava tentando me seduzir, o que, mesmo que fosse brincadeira, era perturbador.
-Ah, mas até que sua cama é macia.
Ele deitou na minha cama e eu fiz a besteira de olhar, eu tinha que admitir, ele era muito bonito... mas... eu não podia, não ia fazer isso. Certa tristeza se abateu sobre mim.
-Miro, acho melhor você ir para a sua cama agora, obrigado por quase tudo hoje.
Eu beijei seu rosto e me virei para a arrumar a mala, minha expressão era triste, assim como todas as lembranças que passavam pela minha mente agora.
-Tudo bem, eu só queria ver se você queria ajuda e...
Ah, por favor, eu acabei de ver meu quase namorado morrer, será que eu não podia ter um desconto por isso?
Para falar a verdade, depois de tudo que o Miro tinha feito por mim, mesmo que ele me odiasse hoje à tarde, eu não queria ser rude com ele de forma alguma, mas... ele nem imaginava o quanto isso me machucava...
-Pode deixar, eu me viro.
Ele foi para a cama dele e se cobriu com um lençol, continuei arrumando as coisas, pelo menos as roupas, o resto eu arrumaria amanhã. Peguei uma roupa velha para vestir, eu não ia usar magia depois de ter passado tão mal, então comecei a tirar a roupa do jeito tradicional mesmo. A gama de sentimentos naquele momento foi impressionante, o Miro me olhou de um jeito... estranho, mas talvez ele olhasse assim para todo mundo, quando estivessem com pouca roupa. Aquilo me deixou feliz e triste, mas não importava. Terminei de colocar a roupa, desejei boa noite aos dois, me virei e dormi. Sonhei com o choque entre dois tipos diferentes de fogos, meio que se confrontando, o que aquilo poderia significar?

Agora eu estava numa cidade bonita, mas diferente em vários aspectos. As construções eram mais espalhadas umas das outras, as letras indicativas nas placas não eram tão requintadas e todas as pessoas na rua estavam olhando para mim. Eu corei, muito.
-Vamos Ângelo, preciso te levar até a prefeitura, te prometi seu uniforme e vou verificar aonde você vai morar.
Ele sorriu enquanto falava isso e recomeçou a andar quando percebeu que provavelmente não teria uma resposta. Eu o segui pela cidade e em todas as ruas foi a mesma coisa, as pessoas ficavam olhando a passeata, até que finalmente subimos uma escada que dava para uma construção branca com detalhes em azul, devia ser a prefeitura. Ao chegarmos lá os quatro guardas relaxaram. O guerreiro disse:
-Muito bem Orpheu, vamos voltar à academia.
O Orpheu acenou com a cabeça em resposta.
-Tudo bem, - ele respondeu cordialmente. - obrigado a todos.
Minha visão do líder delfi não era bem essa antes de hoje.
-Ângelo, acho que nos vemos amanhã. - Aglaope disse isso com um sorriso materno no rosto.
-É, eu acho que sim, se eu achar a academia.
Ela riu e respondeu:
-Não se preocupe, não vamos colocar você para morar sozinho, você morará com outros dois estudantes da academia superior.
Isso parecia ser legal, em Jolnir não era assim, os alunos moravam sozinhos, “para adquirirem independência”...
-Ah, neste caso, nos vemos amanhã.
Os quatro diretores foram embora, voltei minha atenção ao Orpheu.
-Ângelo, faremos o seguinte: agora vou conversar com Clímene, ela é minha pessoa de maior confiança e cuida de todos por aqui, ela vai pegar os seus uniformes e vai designar um quarto para você, além de te dar a chave do seu quarto e um mapa da cidade, com a marcação do seu quarto nele, tudo bem?
-Claro. – respondi, tentando memorizar tudo que ele havia dito.
-Ótimo, neste caso pode sentar ali naquele sofá, em alguns instantes ela lhe trará suas coisas.
Eu sempre estive acostumado com processos burocráticos, aqui tudo parecia tão simples...
-Está certo. – eu respondi, esperando talvez uma segunda ordem.
-Então... se cuide e bem vindo.
Ele juntou suas mãos e abriu um grande sorriso.
-Obrigado.
Ele continuou caminhando em frente, entrando por uma porta, enquanto eu fui sentar no sofá. Era estranho, aqui a maioria das coisas tinham tons de azul, eu não estava acostumado a isso, era meio que pouco usual em Sariku. Não demorou muito para que uma mulher com um pouco mais de peso, baixa e de olhos cinzentos e cabelos brancos viesse até mim com algumas coisas nas mãos.
-Olá meu jovem, você deve ser o Ângelo.
A voz pomposa dela me lembrava a de uma curandeira que tinha lá em Sariku, eu gostava muito daquela curandeira.
-Sim. - eu disse, feliz com aquelas recordações da curandeira.
-Ah, muito bem, meu anjo, trouxe suas coisas, seus uniformes, eu trouxe três, me disseram pra trazer dois, mas ninguém vai ligar, além disso aqui está à chave do seu quarto, você vai morar com um arqueiro e um guerreiro, tudo bem por você?
Sua expressão era como a de uma mãe que estava vendo seu filho no primeiro dia de escola, era muito fofa.
-Ah, sem problema algum.
Ela era muito simpática, agora eu entendi o que Orpheu havia dito sobre “...cuida de todos por aqui...”.
-Excelente, aqui está o mapa.
Ela foi me mostrando cada lugar e apontando no mapa. Às vezes quando era um lugar muito importante, ela colocava uma legenda.
-Além disso, também trouxe seu cartão de estudante, com ele você poderá comer à vontade nos restaurantes da cidade nos finais de semana, porém só refeições, almoço e janta, nada de sobremesas, isso fica por sua conta. O que você precisar para café da manhã será servido no próprio quarto. Sobre sua roupa suja, você deve levá-la à lavanderia, todas as sextas-feiras e pegá-las nos sábados pela manhã. Além disso, você precisará usar seu uniforme regularmente, não pode ir para a academia sem ele, e seria muito recomendável se você andasse pela cidade com ele também. Entendeu tudo?
-Hum... acho que sim.
Apesar da quantidade grande de informações, eu estava habituado a ficar decorando coisas, afinal, eu era um mago e passar dias lendo e decorando fazia parte da minha rotina.
-Bem, se você tiver qualquer problema pode me procurar ou você pode procurar seu diretor na academia.
-Ah, tudo bem então, muito obrigado por tudo.
Eu não sabia como cumprimentá-la, então eu fiquei parado. Por sorte ela entendeu e me deu um abraço, o qual eu retribui.
-Foi um prazer querido, venha me ver.
Era algo que eu pensava em fazer, mas havia várias coisas a serem feitas antes, principalmente colocar os uniformes na mala. Eu não queria andar com um mapa na mão gritando "Oi, eu não sou daqui", mas não tinha o que fazer, a cidade era muito complexa, eram várias ruas entrelaçadas como se feitas para alguém se perder de propósito. Novamente as pessoas ficaram me olhando, o que era bastante incômodo. Apesar disso o prédio no qual eu ia morar não era muito longe, na chave tinha um papel escrito "Quarto 12 - primeiro andar". Entrei no prédio e a recepcionista me olhou com um olhar estranho.
-Eu não me lembro de ter te visto por aqui rapazinho, achei que os alunos novos da academia superior já estivessem todos instalados.
E lá vou eu começar as explicações...
-Bem, acho que sou um caso especial.
Se ela tivesse passado pelo centro da cidade a alguns minutos atrás saberia disso com certeza. Na verdade, fiquei feliz que ela ainda não soubesse.
-Ah tudo bem, pelo que vejo você está com sua chave, vou registrá-lo aqui, pode me dizer o seu nome?
-Ângelo.
Ela parou, olhou atentamente para mim e disse:
-Desculpe-me, mas de que cidade você disse que vinha?
Que pergunta estranha...
-Eu não disse.
Era verdade, eu não tinha dito, e era um costume meu só dar informações realmente necessárias para desconhecidos...
-Poderia me fazer esse favor?
O lindo rosto dela agora mostrava uma expressão tão amável quanto a TPM pode fazer parecer, algo que eu entendi como: me fala a cidade ou eu arranco seus olhos com um garfo. E como eu gostava muito dos meus olhos...
-Sariku.
Agora a raiva tinha dado lugar à confusão...
-Eu não sei que cidade é essa.
Fazia sentido ela não conhecer, provavelmente não havia muitos visitantes de lá, para não dizer que não havia ninguém...
-Pertence à nação Jolnir...
Ela havia associado às coisas, pareceu meio perplexa, mas olhou o pingente no meu pescoço e disse:
-Oh, neste caso, bem vindo. Pode subir e... prazer em conhecê-lo.
-Igualmente. – eu respondi sorrindo.
Subi um lance de escada e de lá já pude ver a porta com o número 12. Fui até ela, coloquei a chave na fechadura e girei. Ao abrir a porta me deparo com, ao que me parecia, meus dois colegas de quarto, ambos estavam usando apenas cueca. Fechei a porta.
Meu rosto ficou muito quente. Tentei lembrar o que vi. Realmente era um arqueiro e um guerreiro, o arqueiro era muito alto e tinha a pele um pouco clara, não tanto quanto a minha, tinha o corpo bem definido, longos cabelos verdes claros, lisos e olhos igualmente verdes. Já o guerreiro era muito forte, não tão alto quanto o arqueiro, mas bem mais alto que eu, tinha a pele bronzeada, cabelos bem curtos e rubros, seus olhos eram bem parecidos com... os do Marcelo. Fiquei pensando no que faria agora, como iria falar com eles depois disso, mas a porta se abriu de novo e o arqueiro, já com roupa, veio falar comigo.
-Olá. - ele disse isso com um sorriso, provavelmente rindo da cor do meu rosto.
-Oi... eu sou novo por aqui e... disseram-me que eu moraria neste quarto.
Eu odiava quando eu parecia a criancinha perdida, mas eu fui pego de surpresa, o que eu poderia dizer?!
-Ah, tudo bem, seja bem vindo então.
Ele me abraçou e me tirou um pouco do chão, foi bom e estranho, eu não costumo receber muito afeto, a exceção tinha sido... hum, deixa quieto...
-Obrigado.
Senti meu rosto voltando à palidez normal, o que era muito bom.
-Mas... o que aconteceu? Achei que já haviam colocados todos os alunos novos nos seus quartos.
Explicar uma mesma coisa, mesmo que para pessoas diferentes é frustrante...
-É que minha cerimônia foi hoje...
E como eu não costumava ter coragem de dizer a história toda, eu preferia que as pessoas entendessem por si.
-Ah, claro que não, hoje foi a cerimônia das pessoas da nação Jolnir, tanto que o Orpheu foi lá e...
Acho que ele tinha entendido.
-Você era de uma cidade jolnir?
Eu esperava que ele ficasse nervoso, chateado, ou algo do tipo, mas ele parecia estar só curioso.
-Sim...
Foi então que eu percebi que o guerreiro estava na porta, de braços cruzados e estava me encarando. Quando ele viu que eu notei a presença dele entrou no quarto novamente. O arqueiro notou a minha mudança de humor.
-Ainda não me apresentei, sou Glaucos e o que ainda está lá dentro é o Miro.
Algo me dizia que o Miro não tinha gostado muito de mim...
-Ah... meu nome é Ângelo.
As pessoas aqui tinham nomes diferentes...
-Ângelo, vamos entrar, você precisa arrumar suas coisas, não se importa de deixar a cama de casal com o Miro né? Ele é um pouco maior...
Citar o fato de ele ter sido bem modesto com a parte do “um pouco” foi tentador, mas desnecessário levando em consideração que o ser em questão parecia querer eu em algum outro lugar que não fosse morando com ele... ou talvez fosse paranoia, talvez ele só fosse tímido.
-Ah, sem problema algum.
Dessa vez, eu entrei no quarto de verdade e devo dizer que já estava cansado de ficar carregando aquelas malas de um lado para o outro. O guerreiro, Miro, estava sentado na cama, não fez questão de virar os olhos quando eu entrei, ficou quieto, acho que era um excelente começo pra uma convivência de quatro anos.
O quarto era grande, tinha a cama de casal e duas camas de solteiro, um guarda-roupa ao lado de cada cama e uma mesa com três cadeiras, aonde eu supus que seria onde tomaríamos café-da-manhã. Além disso, tinha um banheiro logo à esquerda ao entrar no quarto. E uma grande janela no fundo que dava para algumas árvores, eu diria que aquilo era uma floresta se as árvores estivessem um pouco mais juntas. Talvez fosse uma boa hora para ver o que meus colegas de quarto pensavam sobre a situação. Sentei de costas para eles, deixei um pouco da magia negra fluir e sussurrei:
-Espelho negro.
Segurei o espelho entre os dedos e apontei para o Glaucos, mas o espelho não mostrou nada... virei o espelho para o Miro para ver se havia algum problema.
Ótimo, um jolnir imundo vivendo comigo, vou ser motivo de piada na academia, ele que não pense em vir falar comigo, esse mago, e além disso ele usa gelo e... espera, o cabelo dele está escuro?
-Sim, meu cabelo está escuro...
Minha voz foi calma, mas por puro controle, eu estava quase explodindo de raiva.
-Ah, além disso, você também usa magia negra, que bom, você podia ser um mago negro puro né? Não vejo outra forma de ficar pior.
As palavras saíram ríspidas, dava para sentir a raiva emanando dele, ao contrário de mim ele não tentava se controlar.
-Eu não sou um jolnir! Se estou usando um pingente azul e estou aqui é porque sou da mesma nação que você!
Eu não me lembrava de quanto tempo fazia que alguém tinha conseguido me deixar nervoso, mas ele conseguira.
-Pra mim você sempre será jolnir e um pingente não vai mudar isso.
Tive uma súbita vontade de atacá-lo, mas eu precisava me controlar.
-Ótimo, então fique com seu preconceito e morra com ele!
Eu não ia mais ficar ali, peguei o mapa, mas... eu estava sem uniforme...
-Troca!
Minhas roupas e o uniforme trocaram de lugar, agora eu estava com uniforme e o mapa. Saí do quarto, com lágrimas de raiva transbordando pelo rosto.
Eu não chorava só pelo idiota do Miro, mas por tudo, por estar longe daquilo que chamei de casa toda minha vida, por causa dele, por não conhecer ninguém que eu pudesse confiar aqui, afinal eu não ia à prefeitura 30 minutos depois de ter saído de lá e ainda por cima chorando. Devo admitir que tudo isso se somou à lembrança do Marcelo, minha dor mais forte...
Desci as escadas olhando o mapa, eu queria um lugar isolado e tinha uma praia meio distante do centro da cidade, talvez estivesse vazia, era a única alternativa então era exatamente para onde eu iria. Andei durante algum tempo, até encontrá-la. Por sorte estava realmente vazia. O sol já não estava tão alto, devia ser umas 14h. Vagueei pela areia até achar uma sombra ao lado de uma elevação, sentei lá e me deixei levar pelos pensamentos, deixei a magia negra livre e deixei as tristezas saírem.
Acho que já estava sentado ali fazia algumas poucas horas já que o sol estava baixo já, quando uma pessoa apareceu na praia, era um espadachim, pela aparência, era da minha idade, uns 18 anos. Apesar do meu cabelo ainda estar com mechas negras ele veio em minha direção, parou um pouco ao sentir a aura negra, mas continuou, até sentar ao meu lado.
-Você está bem? - ele disse com muita calma, talvez com certo medo, mas com alguma pena.
-Foi um dia complicado, acho que só...
Eu poderia muito bem ter dito que a pessoa que eu amava morreu, eu troquei de nação, deixei minha mãe em uma cidade distante, e vou morar com uma pessoa que me odeia, mas poupá-lo foi algo mais inteligente a se fazer.
-Se quiser falar sobre isso, eu tô aqui.
Era estranho ver pessoas se importando comigo, em Sariku, todos que sabiam que eu usava magia negra tomavam a maior distância possível, e aqui estava eu deixando a aura livre e ele querendo me ajudar.
-Obrigado.
Ficamos quietos por alguns momentos, nunca fui bom para me relacionar com pessoas novas.
-As pessoas daqui não gostam de mim. - eu finalmente admiti.
-O que você quis dizer com 'as pessoas daqui'?
Assim como todo mundo, isso também o confundiu.
-Hoje é meu primeiro dia aqui em Delfos.
E aquele lampejo e entendimento se passou pelo rosto dele.
-Aaahhhh, meu amigo me falou sobre você, ele disse que Orpheu havia trazido um formando com ele. Ah, não fique mal por isso, logo vão se acostumar a isso, é só que... bem, é diferente, você viveu num lugar praticamente inimigo entende?
Ele estava meio pensativo, mas logo voltou a falar.
-Acho melhor eu não te falar o óbvio, deve estar sendo difícil pra você, então não vamos mais falar disso, qual é o seu nome?
Ele falava bastante...
-Ângelo, e o seu? – eu respondi, ainda um pouco melancólico.
-Sileno.
Desde que cheguei, só ouvi nomes que nunca tinha ouvido na vida, isso era bastante estranho.
-As pessoas daqui têm nomes esquisitos.
Ele demorou um pouco para responder.
-Na verdade o único nome esquisito é o seu.
Os costumes dos dois lugares eram bastante diferentes, os nomes eram o maior indicativo. A voz dele me tirou dos meus pensamentos.
-Não foi uma boa idéia você ter vindo aqui, poderia ter aparecido algum monstro marinho e você estava sozinho.
Tentei bloquear os pensamentos tentadores de 'eu preferiria que algum aparecesse e acabasse logo com isso', porque eu sabia que eram os efeitos da magia negra que faziam eu estar mais depressivo do que eu deveria.
-Ah... eu queria ficar só...
Ele ficou um pouco surpreso com o que eu disse, o que eu estranhei.
-Nossa, desculpa...
Ele fez menção de levantar.
-Não, não, fica, por favor, eu queria ficar sozinho antes, eu gosto da sua companhia.
Ele permaneceu sentado e sorriu para mim. Espero que ele não tenha entendido errado a parte do gostar...
-Obrigado Ângelo. Aliás, devo dizer que nunca tinha conhecido alguém que usasse magia negra.
Bem, então magia negra também era rara por aqui, bom saber...
-É... eu uso...
Ele se virou, e me encarou, um pouco curioso.
-Sempre?
Acho que se eu tivesse usado magia negra intensivamente durante toda minha vida, ou já teria me matado, ou matado alguém...
-Não! Claro que não, é bem raro eu deixar a magia negra livre.
Um pouco de confusão passou pelos seus olhos.
-E por que você está deixando agora?
Tantas respostas diferentes para uma pergunta que parecia tão simples...
-Porque estou sem forças para lutar contra mim mesmo, mas talvez seja melhor tentar...
Tentei repreender a magia negra, foi um pouco mais complicado do que de costume, mas consegui. O vento soprou contra meu rosto, trazendo um calor fora do comum, alguém estava alterando a temperatura em algum lugar.
-Sileno, só um momento, preciso ver uma coisa.
-Tudo bem, fique à vontade. - ele disse, sorrindo um pouco, pareceu meio... bobo, mas eu gostei.
Concentrei-me um pouco, parecia que havia algo quente em cima da elevação que fazia sombra onde eu estava sentado, mas era uma grande quantidade de calor, o que poderia ser? Só tinha um jeito de descobrir.
-Flutuar.
Flutuei até o topo do pequeno monte. Para minha surpresa vejo o Miro!
-O que você está fazendo aqui?!
Eu costumo ser educado, a menos que a pessoa “diga” que sou um jolnir imundo, daí nem sempre eu sou educado...
-O Glaucos... e eu... - ele completou - ficamos preocupados pelo jeito que você saiu...
-Se você veio me procurar porque sentiria remorso se acontecesse alguma coisa, não precisa sentir, estou bem e vivo, agora já pode tirar a falsa alegria de ter me encontrado e ir embora. Uma hora eu volto, se perguntarem fala que fui cometer suicídio ou algo do tipo.
Minha mão tremia de raiva, eu não estava muito bom em me controlar hoje e estava receoso por conta disso.
-Olha...
Ele parou, respirou fundo e disse:
-Ok, me desculpe por hoje, tá legal?
Ele não parecia ressentido, mas também não parecia querer me jogar na fogueira.
-Você não precisa se desculpar por nada, já disse que não precisa ter remorso, eu li seus pensamentos porque quis.
Na verdade, eu nunca gostei de ler o pensamento das outras pessoas por causa disso, além de ser uma invasão de privacidade, eu ainda não tinha direito de reclamar, cada um pensa o que quer.
-Mas eu falei coisas que não deveria ter dito, eu não estou passando por um bom período e...
-Daí você resolve descontar no primeiro que aparece na frente.
Minha resposta saiu rápida, algo que não era rotineiro em mim.
-Você não está ajudando.
Eu tinha que ser mais complacente, ele estava tentando.
-Tudo bem, desculpe.
Ele respirou fundo antes de continuar.
-Podemos recomeçar?
Ele colocou a mão para frente, de forma convidativa a um aperto de mão, eu não queria intrigas, não com um colega de quarto e o fato de ele ter se redimido não fazia dele um completo idiota.
-É, talvez seja melhor assim.
Eu apertei a mão dele, ou pelo menos esse seria o nome, já que minha mão era bem menor que a dele e apertá-la estava fora de cogitação.
-Acho que já podemos ir pra casa agora Ângelo.
Daqui a pouco o sol ia se por, e eu não achava uma boa ideia ficar num lugar desconhecido durante a noite.
-Sim, acho que sim, mas vou me despedir do meu amigo.
-É uma boa ideia. – ele disse, rindo um pouco.
Eu olhei para ele, bastante surpreso, um pouco raivoso.
-Você estava escutando a conversa?!
Ele pareceu meio sem graça com a acusação.
-Só uma parte.
Minha culpa por invasão de privacidade magicamente desapareceu.
-Eu devia te bater.
-Bate. - ele disse sorrindo.
Ótimo, agora ainda se aproveitava de ele ser umas duas vezes maior que eu e pelo menos cinco vezes mais forte.
-Eu posso usar magia para te bater. - eu revidei.
-Mas não seria bater. – ele retrucou.
-Mas ia doer.
Eu sorri maliciosamente.
-Ah, desse jeito não conta.
Engraçadinho...
-Não é bom se aproveitar das fraquezas alheias?
Eu arqueei uma sobrancelha ao dizer isso.
-Muito bem senhor mago, vamos, dê tchau pro seu novo colega.
Ele ainda não estava no status Bom de relacionamento comigo, então eu quase comecei uma nova discussão sobre ele me dando ordens. Guardei tudo para mim e apenas lancei um olhar que traduzia esses pensamentos.
-Ok, Flutuar.
Desci o monte. O Sileno já estava de pé.
-Acho que você já vai. - ele disse, enquanto tirava a areia da calça.
-Sim, vieram me buscar. – eu disse, bufando um pouco.
O Miro foi descendo por outro caminho enquanto nos despedíamos.
-Obrigado por ter me animado quando eu estava triste.
As palavras saíram como um suspiro de alívio.
-Não há de quê, Ângelo, acho que nos vemos amanhã na academia, certo?
Assim eu esperava... chega de ficar isolado, já tive o suficiente para a vida inteira.
-Ah sim, até amanhã. - eu disse com um sorriso bobo no rosto.
-Até.
Nós apertamos as mãos e ele foi para o lado oposto à minha casa. Neste momento o Miro colocou a mão no meu ombro.
-Vamos lá, acho que pode guardar esse negócio, - apontando para o mapa - eu sei andar por aqui.
-Que bom, eu estava me sentindo meio tapado.
Caminhamos de volta para o prédio

Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

Dê sua nota

Seguidores