Ao chegar ao quarto encontro um Glaucos muito nervoso.
-Ângelo, o que você pensa que está fazendo? Você nem sabe andar por aqui e já sai assim!!! Nós ficamos preocupados com você, poderia ter acontecido alguma coisa!
Eu não pude deixar de sorrir, ele me conhecia a tão pouco tempo e se importava comigo, isso era muito legal.
-E para de dar risada da minha cara!
Ele parecia indignado com o fato de eu ter dado uma risadinha.
-Glaucos, desculpe por isso, tentarei não fazer de novo.
Fiz a cara de santo mais convincente da minha vida, para conseguir disfarçar a verdade de que essa promessa provavelmente seria quebrada, caso acontecesse mais alguma coisa.
-Bom mesmo.
Eu não consegui segurar, comecei a rir.
-É, deve ser muito engraçado ver eu nervoso mesmo.
Ele sentou na própria cama, talvez ele tenha ficado mais preocupado do que eu imaginei. Eu me sentei ao lado dele.
-Ah, não fica tristezinho, eu já estou aqui.
Abracei-o de lado, no começo ele fingiu que não tinha visto, mas depois correspondeu.
-Isso quer dizer que ninguém está bravo com ninguém mais?
Dessa vez quem falara era o Miro, por um momento eu tinha esquecido que ele estava aqui, mas quem respondeu a pergunta dele foi o Glaucos:
-Acho que é isso, o Ângelo sabe como fazer uma entrada, não é mesmo?
Todos rimos, apesar de eu estar pensativo sobre os problemas atuais do Miro.
-Vocês dois se conhecem a muito tempo?
Parecia que eu tinha dado início a uma resposta que seria uma longa história, porque o Miro fechou a porta e sentou na cama dele enquanto o Glaucos começou a contar.
-Sim, faz bastante tempo, nós nos conhecemos 11 anos atrás, quando ainda não estudávamos sobre lutas.
-É verdade, nós estudamos juntos por... seis anos, Glaucos?
Ele olhou para o teto, aparentemente contando mentalmente.
-Acho que sim, foi aproximadamente isso e depois cada um começou a estudar sobre coisas específicas de cada classe.
Interessante, aqui eles tinham um sistema escolar semelhante ao que eu tive.
-Mas nem por isso deixamos de nos falar, somos amigos desde então, foi uma grande surpresa quando disseram que íamos morar juntos. – o Glaucos disse, com um sorriso no rosto.
-Nem me fale, fiquei muito nervoso antes de saírem os nomes dos formandos e com quem morariam, teriam muitas pessoas que eu odiaria conviver.
Tentei não me encaixar na lista do Miro de pessoas que ele odiaria conviver. Depois disso eles falaram sobre o que haviam aprendido, como eram as coisas aqui e sobre a academia superior. Durante todo o tempo da conversa o Miro não parava de me olhar, aquilo era meio estranho, algo que eu entendi assim que ele dirigiu a palavra a mim.
-Ângelo, você ficou vermelho demais quando entrou pela porta pela primeira vez. Por quê?
-Ah...
Só para não perder o costume eu fiquei vermelho de novo.
-Então... é por que... vocês dois... hum... são bonitos.
Eu estava encarando o chão enquanto tentava dizer.
-Olha só Miro, ele também é gay. - eu ouvi o Glaucos dizendo.
Aquilo tinha me surpreendido, eles também eram?
-Só pra saber, vocês também são?
Quem me respondeu foi o Glaucos:
-Ah não Ângelo, eu não, mas o Miro é.
O Miro abriu um largo sorriso. Eu não sei por que perguntei aquilo, apesar de eles serem bonitos eu não ia ficar com ninguém. Não ia sofrer a dor da perda pela segunda vez, porque o Marcelo me abandonou...?
Eles notaram que eu fiquei um pouco pensativo, o Glaucos me chacoalhou.
-Hey, você tá aí?
De repente aquilo tudo não fazia sentido, eu não podia estar feliz, eu tinha visto o Marcelo morrer ontem! Mas... eu não podia consumir sentimentos negativos, e durante todo o dia eu tentei ser uma pessoa contente e aberta para as novas possibilidades que eu induzi. Mas a possibilidade de um novo amor? Não, essa não existia...
-Eu só me recordei de uma coisa... nada demais.
Levantei-me e fui até a janela. Pude ouvir o Miro dizendo:
-Ah, conta, o que houve?
Senti a raiva voltando, não, eu não podia descontar neles...
-Não é nada demais, não quero falar sobre isso.
Talvez eu tenha sido rude, mas era a verdade e eu não estava pronto para contar o que havia acontecido. O sorriso no rosto do Miro se esvaiu aos poucos, eu me senti um pouco mal. Por isso fui para a cama dele e fiquei sentado ao seu lado. Eu não tinha percebido ainda, mas eu nem tinha prestado atenção nos uniformes. Todos tinham o mesmo tom azul marinho com detalhes em cinza claro. A armadura era parecida com a dos jolnirs, era metálica e grande, aparentemente era bem pesada e tinha uma capa que parecia metálica, mas não era. Já o traje... acho que era de um couro bastante resistente, era bem colado ao corpo e também tinha uma capa, porém era mais estreita e mais longa. Já o meu quimono era de algum tecido fortalecido magicamente, era mais folgado que o traje e não tinha capa, tinha um cachecol no lugar. Sobre as armas, meus orbes eram de uma liga de bronze e um pouco de prata com uma safira incrustada, mas eu sempre quis ter orbes de prata com esmeralda, que eram mais poderosos, porém eram muito caros. Para explicar melhor o que é um orbe: é parecido com um escudo, só que menor, a maioria é redondo, mas os mais fortes têm formas próprias, muitas vezes provenientes do encantamento feito no orbe ou por causa do metal, da pedra que há nele, são variados os motivos. De qualquer forma o orbe fica nas costas das mãos dos magos, preso a uma luva que sempre usamos. Os orbes fortalecem a magia. Agora sobre a arma do Miro, era uma espada de duas mãos, chamada de montante, de uma liga de prata e bronze, era tão forte quanto orbes de esmeralda, talvez ele não tivesse problemas financeiros. Eu pensei sobre isso até notar que o arco do Glaucos era de prata com alguns diamantes incrustados, uma combinação muito cara e poderosa, ele com certeza não tinha problemas com dinheiro. Fiquei algum tempo olhando para o arco, mas não era algo muito educado de se fazer e o silêncio no quarto já estava começando a incomodar.
-Vocês vão querer jantar? Devo admitir que não almocei hoje, o dia foi... cheio.
Tentei não olhar para o Miro, seria o mesmo que dizer “E foi culpa sua”.
-Eu comi enquanto o Miro foi te buscar, Ângelo. - respondeu o Glaucos.
-Eu ainda não jantei e estou com fome, vou te levar pra jantar. - O sorriso bobo voltou ao rosto dele, o que era estranho se contrastado com a forma como ele estava nervoso a algumas horas atrás. Mas usuários de fogo eram assim, colocavam as coisas para fora, o que eu poderia fazer?
-Ah, que bonitinho, o Miro vai levar o Ângelo pra jantar. - O Glaucos disse isso num tom muito pomposo e começou a gargalhar quando parou de falar.
Meu rosto ficou vermelho e eu não consegui dizer nada.
-Glaucos, fica quietinho pra eu gostar de você. - O Miro disse isso e piscou para mim, como se piscar ajudasse em algo...
-Acho melhor irmos logo. - eu disse rapidamente.
-Ok, vamos, até depois Glaucos, comporte-se.
A forma como eles se tratavam... parecia como irmãos. Não que minha experiência no assunto fosse grande, já que eu nunca tive um irmão, mas pelo que minha mãe me contou deveria ser assim...
-Pode deixar, se eu não estiver aqui, estarei na casa das meninas.
E piscou pro Miro.
-Ai ai... homens... - eu precisava desabafar.
Eles riram.
Saímos do prédio e caminhamos por entre algumas ruas estreitas, as quais ficaram ainda mais estreitas por causa do tamanho dele.
-Eu estava me sentindo mal por ser pequeno perto de vocês, mas agora vejo que não é tão ruim assim. - falei isso sorrindo, enquanto ele aparentava algum sinal de estresse.
De certa forma, zoar alguém era divertido, mas eu não queria vê-lo bravo, não depois daquela cena de hoje a tarde. Como eu não sabia muito bem o que fazer, fiquei ao seu lado e segurei sua mão. Por um momento eu pensei no que eu estava fazendo, eu estava andando de mão dada com um quase estranho... mas considerando tudo que já aconteceu hoje, isso era o de menos.
-Você não está bravo, está?
Eu juro que tentei não rir...
-É, certas pessoas me deixam assim.
Ele também não estava de todo sério, então achei que não havia problema.
-Ah... que triste, esse tipo de pessoa deveria apanhar não é mesmo?
Não consegui resistir, dei uma risada baixa. Em resposta ele apertou um pouco minha mão.
-Ai. Não faça isso!
Usar de força era um golpe muito baixo contra um mago...
-Vai ficar quieto?
Desacreditei naquilo.
-Você está me ameaçando?!
-Não... ainda. - ele disse isso com um sorriso muito malvado no rosto.
-E depois dizem que quem usa magia negra que tem maldade no coração.
Tentei libertar minha mão, mas ela estava muito bem presa.
-Eu não tenho maldade no coração.
Ah, eu também não. Diga boa noite à ironia.
-Diga isso para a minha mão.
Ele me encarou, depois olhou para nossas mãos.
-Ah, eu apertei só um pouquinho.
O pior de tudo é que eu acreditava nele, provavelmente ele não deve ter feito muita força, mas já tinha sido o suficiente para eu sentir machucar um pouco...
-Vou deixar você numa sala a -40°C só um pouquinho, para você ver como é bom.
Não que eu estivesse verdadeiramente bravo, mas eu não sabia se ele sabia lidar com pessoas com baixa resistência física, por exemplo: eu.
-Que exagero, nem deve ter doído.
Eu dei a língua para ele, algo muito infantil, mas quem liga? Eu nunca tive oportunidade de ser infantil, talvez tirar o atraso fosse bom, mas acho que deixar uma primeira impressão também seria algo interessante de se fazer...
-Olha, não dê a língua pra mim de novo.
Isso era um desafio?
-Por que se não...?
Novamente ele deu a mesmo sorriso malvado e disse:
-Já chegamos.
Estávamos na frente de um restaurante bonito, com uma fachada vermelha, o que dava uma sensação de calor...
-Que bom, você é muito inoportuno. – eu disse, tentando segurar o riso.
-Eu?!
Dessa vez ele estava verdadeiramente surpreso.
-Claro, você que tenta quebrar a mão do alheio... mas não quero discutir agora, preciso comer.
Ele realmente pareceu confuso.
-Você parece uma criança mimada.
Essas palavras entraram na minha mente de uma forma diferente, quase como se cortassem, será que eu era mesmo uma criança mimada? Vindo de alguém que eu conheci a pouco tempo, pareciam palavras sinceras...
Eu soltei a minha mão da dele e continuei andando em direção ao que parecia ser o restaurante, ele me olhou como se tivesse me magoado, o que eu estava decidindo se era verdade.
-Ângelo, eu não quis dizer isso e...
-Você não disse nada demais.
Eu o cortei, falar sobre coisas desagradáveis não era o melhor a se fazer.
-Mas você ficou estranho.
Isso não era um problema dele.
-Não importa, vamos comer.
Ele segurou meu braço.
-Não, espera, você ficou chateado com isso?
Depois de tantos anos guardando meus pensamentos para mim, porque agora eu achava que tinha o direito de mudar?
-Não, mas vou ficar chateado se eu não comer algo.
Nunca fui um bom mentiroso, mas acho que dessa vez deu certo, ele me soltou, apesar do olhar pensativo no rosto dele, e entramos.
O restaurante era um pouco fechado e o vermelho predominava também dentro do local. Eu me dirigi a uma mesa de canto e o Miro me seguiu. Não demorou muito para que nos atendessem, a moça me entregou um cardápio com nomes que eu jamais vira na vida. Olhei para o Miro com um olhar de súplica, ele entendeu.
-Garçonete, o que os magos costumam pedir? - ele disse, olhando para mim com um sorriso. Acho que ele não desistia de deixar as pessoas felizes, menos quando eram jolnirs imundos... ok, eu vou esquecer isso... um dia.
-Ah, o especial rubro costuma ser muito pedido pelos magos, eles dizem que tem um sabor especial.
O clima do lugar não fazia eu me sentir bem, mas talvez fosse só a falta de costume com essa nação, e esse pensamento quase me fez deixar de ouvir o que a mulher tinha dito.
-Eu quero um desse. - eu disse, mas com algum receio na voz.
-Tudo bem e o senhor? - ela disse, se dirigindo ao Miro.
-Quero um especial flamejante.
Após anotar os pedidos, ela disse:
-Não demorarei em trazer os pratos.
-Muito obrigado. - ele respondeu.
Era engraçado ver o Miro sendo educado e cordial, não encaixava muito bem com a aparência dele.
-Melhor? - ele disse, me encarando.
O que ele queria dizer com isso?
-Em relação a...?
-Ao que não quis me dizer lá fora.
É, definitivamente eu era um péssimo mentiroso.
-Você me fez pensar, só isso.
Não era mentira, só a parte do “só isso”.
-Ah, então sempre que eu achar que você está chateado é porque você está pensativo?
Ele me olhava seriamente, como se tentando me entender. Fiquei um tempo pensando nisso, mas depois respondi.
-Talvez você esteja certo.
Admitir isso era como atirar uma pedra na minha redoma de vidro, eu não acreditava que tinha feito isso, confiar em um quase desconhecido não costumava ser do meu feitio, até que... ah, por que o Marcelo sempre acabava na minha mente?
-Sobre o que?
Demorei um pouco para lembrar sobre o que estávamos falando...
-Sobre eu ser uma criança mimada.
Ele apoiou as duas mãos na mesa e disse:
-Ah, não, eu disse aquilo num momento de raiva e também...
-Não deixa de ser verdade. - eu o interrompi - Podemos dizer que eu nunca pude ser uma criança, mas isso é uma longa história.
Com essa, acho que era a segunda ou terceira coisa que eu me recusava a falar, talvez isso fizesse de mim uma pessoa chata, ou só eu mesmo.
-Acho que temos alguns anos pela frente, provavelmente uma hora você poderá me contar.
Seu olhar de ternura quebrou toda minha base argumentativa. Eu poderia dizer que meu passado era algo a se esquecer, que ele não precisava saber disso, ou até que isso não era assunto dele, mas só o que eu disse foi:
-É, uma hora...
-Quando quiser falar sobre isso...
-Ok.
O silêncio se prolongou até a garçonete voltar com os pratos. O prato do Miro parecia que tinha de tudo um pouco, enquanto o meu era bem simples, tinha algo que parecia com um peixe meio avermelhado e acho que algumas algas, também vermelhas. Bem, não custava tentar, a comida não ia me matar. Peguei um pedaço do peixe e da alga no garfo e comi. Pareciam bons, eu peguei mais um pouco e quando coloquei a comida na boca, senti uma queimação. Parecia uma azia, mas estava ficando quente demais para ser só uma azia, senti meu corpo todo ficando quente... quente demais. Eu derrubei o garfo, meu rosto ficou vermelho. O Miro começou a me olhar assustado. Meu cabelo começou a perder a cor, assim como meus olhos e a magia negra começou a pulsar mais forte dentro de mim, até que ela se libertou contra a minha vontade. Agora meus cabelos estavam negros, meus olhos estavam cinzentos e meu rosto estava vermelho.
-Ângelo, o que foi?!
Ele se levantou e ficou ao meu lado. A garçonete veio logo depois e deu dois tapinhas nas costas dele.
-Não se preocupe querido, é normal a sensação de fogo, é por isso que a maioria dos magos gosta tanto. Ela disse com toda a tranquilidade do mundo.
-Mas ele é um mago de gelo!!!
Ele estava com tanta raiva quanto esteve hoje à tarde, e eu não gostei muito desse dejávù...
-Oh... talvez isso seja um problema. - a garçonete respondeu. Como eu queria socar a cara dela.
Agora o fogo se espalhava por todo o corpo, eu senti como se estivesse queimando, me segurei na cadeira para não cair. Aos poucos o fogo foi se atenuando, mas eu não conseguia achar minha magia de gelo.
-Ângelo? Você está bem? Por que você tá usando magia negra?
Um pouco de suor escorreu pelo meu rosto.
-Eu... acho que estou bem, mas... não consigo usar magia de gelo. O que é isso?!
A aura negra agora estava sendo a única rodeando meu corpo, por isso ela estava mais poderosa, pude sentir isso quando vi que a garçonete e o Miro se perderam em pensamentos. Tentei prender um pouco, mas não consegui prender muito, apesar de ter sido o suficiente para eles voltarem a si.
-Desculpem-me... eu... vou embora, só preciso pagar por isso antes.
Ambos me olharam incrédulos.
-Você não precisa pagar! - disse a garçonete - Eu não sabia que ia acontecer isso, me perdoe.
Ela ia segurar meu braço, provavelmente para me ajudar a me levantar, mas a magia negra não permitiu que ela chegasse tão perto.
-Miro, vou te esperar lá fora.
Levantei-me e comecei a me arrumar para sair.
-Não! Eu vou embora com você.
Ele parecia preocupado, apreensivo e muito nervoso, coisas que a presença da magia negra só piorava.
-Meninos, não precisam pagar, me perdoem por isso.
-Está tudo bem, não foi culpa sua. - As palavras saíram com mais mágoa do que eu imaginava, usar só magia negra não era uma boa coisa.
Saímos do restaurante sob os olhares da maioria dos fregueses, eu estava muito envergonhado, acho que estava fazendo tudo errado.
-Ângelo... vamos pra casa, vou comprar algo para comermos no caminho.
Ele colocou a mão no meu ombro, isso me surpreendeu.
-Como você fez isso?
Só minha mãe conseguia me tocar quando eu usava muita magia negra...
-Te tocar? Sou um guerreiro, tenho uma boa resistência mágica por natureza. Além disso, estou me esforçando.
Ótimo, mais um gasto à toa de energia.
-Não precisa se esforçar só para me tocar.
Acho que eu nunca havia ficado só com a magia negra, era uma sensação muito angustiante e minha cabeça estava uma bagunça completa...
-Não se preocupe comigo, você já tem seus problemas.
Eu queria contestar, mas eu estava começando a ver que receber apoio ajudava bastante... de qualquer forma, não demorou para chegarmos em casa, o Glaucos estava na janela e assim que nos ouviu entrando começou a falar.
-Ah, eu já estava quase indo ver as meninas, achei que vocês fossem demorar mais... nossa, Ângelo, o que você tá fazendo?!
-Eu não estou tendo muita escolha.
Ele veio até mim, mas parou no meio do caminho.
-Desculpe por isso...
O Miro pegou ele e o colocou mais pra trás, até que ele voltou a si.
-Uh... eu sabia que magia negra era ruim, mas...
O Miro estava de costas para mim, então eu não pude ver o que ele fez, mas seja lá o que foi, fez o Glaucos ficar quieto no mesmo instante.
-Glaucos, pode comprar algo para comermos? Não conseguimos jantar direito, eu fico cuidando do Ângelo.
Receber apoio era uma coisa, mas eu não tinha idade para precisar de “cuidados”.
-Eu não preciso que cuidem de mim.
De novo a citação criança mimada me veio à mente, ótimo...
-E eu não perguntei nada pra você.
Os punhos dele ainda estavam fechados, talvez fosse melhor não contrariar muito, minha mão agradeceria.
O Glaucos concordou em comprar algo e saiu. O Miro ajoelhou ao lado da minha cama.
-Ângelo, agora somos colegas de quarto, eu estou percebendo que você era meio... antissocial antes, mas você tem que deixar isso de lado, eu sempre vou te ajudar quando você precisar, você queira ou não. Olha... eu não sabia que aquilo aconteceria Ângelo, - seus olhos estavam um pouco marejados, era estranho ver alguém que parecia um muro daquele jeito - me desculpe por isso, acho que preciso te conhecer melhor antes de tomar certas decisões.
Ele... ele estava se culpando? E ele parecia tão preocupado... ele se importava comigo. Nossa, que diferente...
-Está tudo bem Miro, acho que não foi culpa de ninguém, - mentira, eu sabia que a culpa era minha - acontece.
Ele me olhou nos olhos, eu devia estar horrível.
-Eu queria que você parasse de mentir pra mim, por favor.
Eu fiquei muito surpreso, como ele poderia saber quando eu mentia?
-Como você sabe quando eu estou mentindo?
Eu abaixei um pouco a cabeça, ele levantou meu queixo de forma a eu voltar a olhar nos olhos dele.
-Isso não importa, mas eu sei e queria que você parasse.
Era algo difícil de ser cumprido...
-Vou tentar...
Deitei um pouco, aquele calor todo me deixava cansado, ele sentou ao lado da minha cama. Eu não conseguia mais falar, minha cabeça estava um caos. Eu só queria conseguir prender a magia negra mais uma vez, queria que o Glaucos trouxesse comida de verdade e queria não fazer ninguém sofrer ao chegar perto de mim.
-Vai ficar tudo bem Ângelo.
Eu não respondi, não sabia se conseguiria.
Ficamos assim por um tempo, até que o Glaucos chegou com uma sacolinha. Eu estava muito cansado, aquele calor todo estava tirando minhas energias.
-Ângelo? Eu trouxe algo frio pra você.
-Ok...
Eu levantei e tentei ficar sentado, senti o quarto girando, e uma ânsia de vômito enorme. Meu rosto perdeu totalmente a cor. Fiquei um tempo sem me mexer, esperando aquilo passar. Funcionou.
-Ângelo?
Eu achava que era a voz do Glaucos, pelo menos parecia. Eu olhei para o seu rosto e ele ficou imóvel, seus olhos estavam perdidos em alguma coisa que eu não conseguia ver. Será que...
O Miro pensou no mesmo que eu, e o tirou de perto de mim. Ele começou a arfar, tentando se recuperar do pesadelo que provavelmente eu tinha forçado ele a ver.
-O que está acontecendo...? - eu disse, quase chorando.
Eles se entreolharam e depois olharam para a sacola.
-Ângelo, você precisa comer algo... que não te deixe pior, talvez passe...
O Miro parecia muito preocupado, ele trouxe a sacolinha até o meu lado e a abriu, tinha uma caixa branca, quando ele a abriu havia seis coisas que pareciam bolinhos. Eu olhei com certa desconfiança, mas acho que não ia piorar e eu estava realmente com fome, apesar do enjoo. Peguei um bolinho, ele estava tão gelado, aquilo foi muito refrescante, dei uma boa dentada nele e comecei a me sentir melhor quase que instantaneamente. Não vou citar meus modos ao comer neste caso porque eu estava com fome, portanto não foi algo muito elegante. Mas me fez muito bem, eu não me sentia tão quente mais e a sensação de cansaço estava indo embora. Além disso, eu consegui controlar a magia negra. Quando eu acabei de comer notei que o Miro também estava comendo bolinhos, mas os deles tinham umas pintas vermelhas. A todo momento eu tinha dois pares de olhos grudados em mim e agora que eu estava melhor isso já podia acabar, nunca gostei de ser o centro das atenções.
-Eu já estou melhorando, já podem parar de me olhar assim.
Eu senti o alívio em seus rostos.
-Mas Ângelo, seu cabelo... - Glaucos respondeu com certa apreensão.
Sim, isso também estava me preocupando...
-É, eu ainda não... ai!
Uma nova queimação começou, mas dessa vez parecia como se eu fosse explodir. Eu gritei de dor.
-ÂNGELO!!! - Glaucos e Miro gritaram juntos.
Eu caí na cama, meu cabelo estava azul claro com mechas negras novamente, mas eu estava arfando e meu coração estava disparado.
-Ângelo, o que foi? Você tá bem? Poxa, se você fizer isso todo dia eu tenho um ataque cardíaco qualquer hora.
Eu ri muito do comentário do Miro, apesar de ser verdade, eu definitivamente não queria que isso se repetisse.
-Agora eu estou bem, acho que aquilo foi a despedida do peixe.
Era muito bom sentir o frio de novo. Eles relaxaram, eu pude sentir isso. Tentei me levantar e o quarto não girou, e nem tive ânsia de vômito. Olhei para eles, aliviado.
-É, passou. Meninos, acho que já podemos dormir, chega de hoje...
O Miro pareceu meio perplexo com o que eu disse.
-Meninos, Ângelo? Eu já tenho 19 anos.
A voz de indignação do Miro só confirmava o que eu havia dito, comecei a rir.
-Eu devia te socar, sabia?
Quanta violência gratuita...
-Você é muito estourado, eu só disse meninos.
Eu sorri, acho que era para eu estar nervoso, mas não conseguia, ele cuidara de mim até agora. Meu sorriso o desarmou, ele perdeu a pose de nervosismo e sentou na cama dele. O Glaucos ficou me olhando muito surpreso, mas não disse nada.
-Bem, meninos - minha voz ficou mais acentuada ao dizer esta palavra - vou dormir, hoje foi... um dia e tanto, e nem imagino o que fazer amanhã...
O Glaucos me olhou de um jeito estranho, mas logo sua expressão se atenuou.
-Ângelo, - começou ele - é provável que você não saiba, mas... nossa primeira aula é amanhã.
Isso não era possível, amanhã era domingo...
-Mas... é domingo! - eu disse, choramingando - Vocês têm aula de domingo?!
-Não, - respondeu o Miro - é só amanhã, pra funcionar como uma ambientação. Daí colocaram num domingo pra não perder um dia letivo com isso.
Por que pensar em passear durante o dia quando eu podia ficar o dia todo dentro de uma sala de aula? Isso ia ser tão excitante... eu mal podia esperar...
-Bem, então agora tenho mais um motivo para dormir logo.
E eu que planejava fazer algumas coisas antes de as aulas voltarem...
-Tudo bem, - disse o Glaucos - mas você não vai dormir com o uniforme não é mesmo?
A voz do Glaucos foi a de um especialista em moda que ficaria muito irritado se alguém dormisse com uma vestimenta formal.
-Ahn... claaaaro que eu não ia fazer isso. - Minha voz tentou disfarçar, mas o Miro riu.
Comecei a organizar minha roupa no meu armário enquanto o Miro e Glaucos se trocavam para ir dormi. Para ser franco, o Glaucos estava se trocando, pelo que entendi o Miro ia dormir com uma bermuda bastante curta e só, fiquei meio vermelho ao ver aquilo, ele percebeu e veio na minha cama, o que fez a vermelhidão ficar ainda maior.
-Quer ajuda pra arrumar suas co...?
-Não. - eu disse antes que ele pudesse terminar a pergunta. Eu tinha que interrompê-lo, ele não podia ficar tão perto de mim... e... quase sem roupa...
-Tem certeza?
Eu não tirava o olho na minha mala.
-Tenho, tenho sim, pode ficar na sua cama.
A cada vez que ele falava, ele deixava claro que estava tentando me seduzir, o que, mesmo que fosse brincadeira, era perturbador.
-Ah, mas até que sua cama é macia.
Ele deitou na minha cama e eu fiz a besteira de olhar, eu tinha que admitir, ele era muito bonito... mas... eu não podia, não ia fazer isso. Certa tristeza se abateu sobre mim.
-Miro, acho melhor você ir para a sua cama agora, obrigado por quase tudo hoje.
Eu beijei seu rosto e me virei para a arrumar a mala, minha expressão era triste, assim como todas as lembranças que passavam pela minha mente agora.
-Tudo bem, eu só queria ver se você queria ajuda e...
Ah, por favor, eu acabei de ver meu quase namorado morrer, será que eu não podia ter um desconto por isso?
Para falar a verdade, depois de tudo que o Miro tinha feito por mim, mesmo que ele me odiasse hoje à tarde, eu não queria ser rude com ele de forma alguma, mas... ele nem imaginava o quanto isso me machucava...
-Pode deixar, eu me viro.
Ele foi para a cama dele e se cobriu com um lençol, continuei arrumando as coisas, pelo menos as roupas, o resto eu arrumaria amanhã. Peguei uma roupa velha para vestir, eu não ia usar magia depois de ter passado tão mal, então comecei a tirar a roupa do jeito tradicional mesmo. A gama de sentimentos naquele momento foi impressionante, o Miro me olhou de um jeito... estranho, mas talvez ele olhasse assim para todo mundo, quando estivessem com pouca roupa. Aquilo me deixou feliz e triste, mas não importava. Terminei de colocar a roupa, desejei boa noite aos dois, me virei e dormi. Sonhei com o choque entre dois tipos diferentes de fogos, meio que se confrontando, o que aquilo poderia significar?

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Prefácio

Marcelo é um espadachim de fogo e seu sonho está muito próximo de se tornar realidade.
Ângelo é um mago de gelo com uma vida prestes a mudar.
Miro é um guerreiro de fogo com sérios problemas com seu rival.
Glaucos é um arqueiro de vento galanteador e de vida fácil.
Cada um deles tem um segredo, os quais estão prestes a serem revelados.

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