Não demoramos muito para chegarmos à minha casa, minha mãe estava me esperando.
-Oi mãe.
-Oi, e você deve ser a pessoa com quem meu filho foi fazer nada, certo? Prazer Alessandra.
-Ah... prazer... Ângelo. - ele disse, meio sem jeito.
-Vocês já almoçaram?
-Vamos almoçar na Beatriz. - eu respondi.
-Tudo bem então, não volte tarde.
-Te amo mãe.
-Também te amo querido, tchau Ângelo.
-Até mais tarde.
Pude notar que enquanto caminhávamos o Ângelo estava pensativo, e por isso ele não estava falando muito. Resolvi tentar saber o que estava acontecendo.
-O que foi? Não está gostando do dia?
-Não, nossa, muito pelo contrário, é só que... bem, não é muito comum eu ter dias assim, está sendo muito divertido, de verdade.
Achei que fosse uma boa hora pra quebrar a timidez.
-Neste caso você reconsidera o que você disse sobre viver ao lado de alguém pel...?
-Não, eu não reconsidero. - ele respondeu antes mesmo de eu terminar a pergunta.
-Por quê?
-Porque eu não faria alguém que eu gosto sofrer.
-Já pensou no fato de sua companhia superar o sofrimento?
-Ainda causaria sofrimento.
-Mas seria uma dor por algo bom.
-Não vale à pena.
-Isso não é você quem tem que decidir.
-Mas a parte de proporcionar dor ou não é, e eu estou decidindo que não vou fazer ninguém sofrer.
-Exceto você?
Ele parou um pouco, me olhou e disse:
-É, exceto eu.
-Que justo.
-O resto do mundo acha.
-E quem se importa com o resto do mundo?
-É altamente recomendável se importar, acredite.
-Engraçado, você se preocupa com o mundo, mas o mundo faz o mesmo por você?
Talvez eu tenha ido longe demais...
-Acho melhor eu almoçar em casa...
Definitivamente eu fui longe demais.
-Não, por favor... desculpe, eu só... acho muito injusto isso.
-Marcello, sempre foi assim, e sempre será. Eu escolhi viver sozinho para não machucar ninguém, porque você não entende isso?
-Porque ninguém foi feito pra viver sozinho, e porque a partir do momento que você veio falar comigo você desistiu da solidão, e agora é tarde demais Ângelo. Eu sempre gostei de você e o inverso também é verdade, e agora você quer jogar tudo isso fora pelo que o mundo vai pensar ou em como vou me sentir. Você já tem coisas demais pra pensar, pode deixar que com as minhas sensações eu me preocupo e quando eu tiver que te dizer algo sobre elas eu direi, não precisarei que você pense mais nisso.
-Você tem idéia do que está dizendo?
-Sim, que continuo gostando de você.
Ele sorriu. Isso era um: ok você venceu?
-Vamos para a casa da Carol antes que o bolo estrague.
-É, ainda temos um longo dia.
-É, temos...
O caminho até a casa da Carol foi silencioso, mas dessa vez ambos estavam com um sorriso no rosto, cada um por um motivo. Ao chegarmos à casa a mãe da Carol nos viu da janela e foi abrir a porta.
-Oh, Marcello, que prazer vê-lo.
-Olá, como a senhora está?
-Bem, e quem é o seu amigo?
-Ah, desculpe, esse é o Ângelo.
-Prazer, Madalena.
-O prazer é meu.
-A Carol tá no quarto dela?
-Sim, podem subir.
-Ok, isso é pra ela, foi minha mãe que fez.
-Que gracioso, mande lembranças a ela.
-Mandarei, vamos Ângelo?
-Claro.
Subimos as escadas e encontramos a Carol, deitada na cama.
-Oi meninos.
-Oi Carol, como você tá?
-Agora eu estou melhor, obrigado por vocês terem vindo.
-Não há de que. - disse o Ângelo.
A Carol me lançou um olhar de "Ah, então você está saindo com o maguinho gelado", o qual eu revidei com um olhar de "Ahaaaammm". Ambos rimos.
-E depois sou eu que não preciso de voz pra me comunicar.
Dessa vez todos riram.
-Que dia você sai daí Carol?
-Ah Marcello, me disseram que segunda eu já poderia ir pra academia, mas que teria que ir com calma.
-Ok, tem um bolo lá embaixo te esperando.
-E por que vocês deixaram o coitado lá embaixo? Ele deve estar tão triste... sou a favor de trazê-lo pra cá.
-Tudo bem Carol, eu o trago pra você. - disse o Ângelo.
Então ele fechou os olhos e disse:
-Levitate.
Parecia que ele não tinha feito nada mas alguns segundos depois nós vimos o bolo subindo as escadas...
-Nossa, que prático Ângelo. - eu disse.
-Pois é, não quer ficar aqui em casa? Quando alguém se esquece de levar a toalha pro banho é muito triste.
-Sinto-me um mordomo, contanto que ninguém me peça pra usar roupa formal, eu fico... fazer o quê?
Eu não aguentava mais rir, estar do lado do Ângelo e da Carol era a melhor coisa do mundo.
-Bem Carol aproveite seu bolo, eu e o Ângelo vamos almoçar na Beatriz.
-Ah, tudo bem então, divirtam-se.
Novamente recebi aquele olhar.
-Vamos nos divertir. - eu respondi com um sorriso no rosto.
-Que medo de vocês dois, vou descer.
-Tudo bem Ângelo, também já tô descendo.
-Até segunda Carol. - eu disse
E a beijei no rosto.
-Bem, até mais Carol. - ele disse.
-Ângelo, você não vai se despedir direito de mim?
-Hum... estou indo.
Ele voltou e também a beijou no rosto.
-Praticamente um sorvete.
-Ah, você convive com um forno todo dia, mudar de ares às vezes é bom.
-Obrigado Ângelo pela parte do forno. -eu disse, resmungando.
-De nada Marcello, você sabe que eu te amo não é mesmo?
-Sim.
-Convencido.
-Mas é verdade.
-Convencido, tchau Carol.
-É, tchau Carol.
-Tchau meninos, se cuidem
Descemos as escadas, nos despedimos da mãe da Carol e fomos em direção ao restaurante. Para minha surpresa quem começou a falar dessa vez não fui eu.
-O que fizeram com a Carol... isso sim foi injusto, como eles podem mandar pessoas para o Covil Sombrio?
-Bem, pelo menos ninguém vai pra ele pra prova final, já que a Carol e o arqueiro mataram o chefe...
-Na verdade não necessariamente, existe o intervalo de uma semana justamente para isso, os clãs de monstros são rápidos na escolha de um novo chefe e uma semana é suficiente para que isso ocorra.
-Isso quer dizer que alguém pode ir pra lá sozinho?
-Sim.
-Mas... se aconteceu aquilo com a Carol quando ela foi em dupla!!!
-É por isso que é injusto, o líder Oriental diz ser justo, mas esse sorteio não é justo, apenas escolhe quem vai e quem não vai morrer.
-É, mas o que podemos fazer? Migrar para a nação Ocidental? Isso seria loucura.
-É, seria...
Por algum motivo ele estava perdido em pensamentos novamente.
-Você não pensa nisso não é mesmo?
-Hum, não, claro que não, eu tenho coisas que me prendem aqui.
-Por exemplo?
-Não quero responder isso.
-Por quê?
-Porque tenho medo.
-Do que?
Ele ficou em silêncio por um tempo, como se estivesse avaliando a sua resposta.
-Tenho medo de te magoar, tenho medo de você descobrir que eu não sou uma pessoa legal. Tenho medo da minha escolha.
-Qual foi a sua escolha?
-Ouvir meu coração...
-E o que ele disse?
-Diga Olá a ele. E foi isso que eu fiz.
-Você não quer estar comigo?
-Quero, mas é errado...
-Errado?
-Já chegamos ao restaurante, podemos continuar essa conversa outra hora?
-Claro...
Entramos no restaurante e sentamos numa mesa de canto, não demorou muito para sermos atendidos.
-Olá Marcello e Ângelo, como estão?
-Bem Beatriz, obrigado - disse o Ângelo.
-E você Marcello?
-Estou ótimo, o que temos pra almoçar hoje?
-Hoje estamos com o cardápio completo, podem escolher qualquer coisa.
-Que ótimo, então eu quero um cozido de salmão.
-E você Ângelo?
-O de sempre.
-Tudo bem então, já peço pra alguém trazer.
-Não sabia que você costumava comer aqui.
-Eu não sou tão anti-social assim, você quase me ofende desse jeito.
O ruim do Ângelo é que às vezes não dava pra saber se ele estava sendo sarcástico ou se estava falando sério, apesar de a risadinha no canto da boca, como a que ele deu agora, ser sempre um indicativo do sarcasmo.
-Já decidiu o que vamos fazer depois?
-Ainda não pensei nisso.
-Quando decidir avise.
-Tudo bem, acho que já tenho uma idéia.
-Mesmo?
-Sim, será surpresa.
-Tudo bem.
-Senhores, seus pratos.
-Muito obrigado Fabrício.
-De nada Ângelo.
O prato do Ângelo parecia ser um peixe, mas não estava frito e parecia frio, além disso, tinha uma porção de arroz enrolado em uma planta.
-Você vai comer isso?
-"Isso" é bom, você esperava que eu pedisse o que? Um cozido bem quente com pimenta?
-Eu gosto.
-Não ia me fazer muito bem.
-Ah não?
-Comer coisas que esquentam não é uma boa idéia pra quem controla o gelo, você toma coisas geladas?
-Não gosto muito.
-É que você não usa tanto o fogo, se usasse notaria a diferença que faz.
-Entendi.
Nós dois estávamos com fome então o almoço foi silencioso porque ninguém ia parar de comer pra falar. Quando acabamos cada um pagou o seu almoço, e paramos na frente do restaurante.
-Ângelo, pra onde?
-Siga-me.
Ele estava indo em direção ao portão Sul, ao lado do portão de transporte. Aquela era a conexão mais poderosa entre o Oriente e o Ocidente, quem passasse por ele estaria na nação do Ocidente, por isso ele era bloqueado o tempo todo, só podendo ser usado no dia da formatura pelos líderes e pelos formandos que trocam de nação.
-O lugar que você está indo é fora da cidade?
-Sim, é.
-Não é perigoso?
-Por que eu te levaria para um lugar perigoso?
Eu não respondi, realmente não havia um porquê de ele fazer isso. Andamos um pouco passando por algumas árvores até chegar à entrada de uma caverna.
-Bem, é aqui.
-Ok.
Entramos na caverna e ela era meio escura.
-Luz.
Um feixe de luz apareceu entre as mãos do Ângelo.
-Só o começo é escuro, não se preocupe.
Continuei andando, seguindo a luz que ele havia feito, enquanto que ele parecia estar completamente à vontade.
-Você vem muito aqui?
-Este é o meu refúgio do mundo, aqui eu fico em paz, eu sou eu mesmo e posso treinar sem olhares tortos.
-Entendi.
-Não que eu vá relaxar hoje, porque você está aqui, então não vou deixar a magia negra livre, mas ainda assim aqui é muito bom de estar.
-Pode ficar a vontade.
Eu sabia que talvez isso fosse um pouco ruim, mas era melhor eu me acostumar.
-Hoje não.
Continuamos andando até chegar num lugar com muitos cristais verdes nas paredes, e era muito claro. Havia uma abertura superior nessa parte da caverna que estava tapada por um bloco de gelo.
-Hum... quando chovia ficava úmido demais, então eu dei um jeito de a água não entrar mais.
-Isso é muito bonito.
Os cristais refletiam a luz dando ao lugar uma atmosfera de vegetação, apesar de não haver nenhuma planta ali.
-Agora você conhece meu lugar especial.
-Ninguém conhece esse lugar?
-Se conhece nunca veio aqui enquanto eu estava, e eu fico aqui um bom tempo.
-Como você descobriu?
-Eu tinha que treinar magia em algum lugar, por isso saí pela floresta procurando até achar esta caverna, e ela foi a solução perfeita.
-Entendi. Aliás, porque você não flutua?
Essa era uma dúvida que eu tinha a muito tempo e nunca lembrei-me dela.
-Bem, por vários motivos: porque é gasto à toa de magia, afinal as pernas foram feitas para isso, porque ao contrário dos outros eu não vejo andar como algo inferior, mas sim como normal, e por fim porque sempre que eu uso magia tenho que controlar a magia negra mais rigidamente, então eu prefiro não ficar usando a toda hora.
-Entendi.
-Também quero tirar uma dúvida.
-Diga.
-Você ficava na frente da casa de poções só para me ver?
-Não, eu ia mais cedo pra te ver, mas eu ficava lá esperando a Carol.
-Ah...
-Você é bonito sabia?
Apesar da intensa luz verde do local, nem isso conseguiu esconder a vermelhidão do rosto dele.
-Obrigado, você também.
Eu sentei no chão, e ele fez o mesmo, então eu fui pra mais perto dele. Ele não se mexeu. Eu peguei na mão dele, e ele continuou imóvel.
-Ângelo?
-Sim?
-Por que é errado estar comigo?
-Porque eu tenho cada vez mais certeza de que gosto de verdade de você.
Eu senti um alívio no peito, mas ao mesmo tempo um aperto.
-Gostar de mim não deve ser tão ruim, eu sou bonito.
Ele sorriu timidamente.
-Eu, naturalmente, sou uma pessoa que faz as outras pessoas sofrerem. Eu não quero te fazer sofrer Marcello.
-Ângelo.
-Oi?
-Olhe pra mim.
Ele permaneceu quieto por um momento, mas então levantou a cabeça e me olhou, seus olhos azuis claros estavam agora com um tom esverdeado.
-Relaxe.
-Não posso...
-Por favor.
Ele suspirou e relaxou, seu cabelo adquiriu as mechas negras assim como seus olhos ficaram mais escuros. A aura negra se juntou à azul clara, e a sensação de medo e perda de calor veio novamente, mas eu estava preparado, respirei fundo, e olhei pra ele.
-Está tudo bem comigo.
-Marcello, você não pode fazer isso...
-Não só posso como estou.
Cheguei mais perto dele, que como sempre estava frio. A distância entre nossos rostos foi diminuindo, pude sentir seu hálito frio se aproximando, a maciez da sua pele contra minhas mãos. Eu o beijei.
-Eu não vou ficar longe de você Ângelo, independente do que aconteça.
Dessa vez foi ele que tomou a iniciativa e me beijou, com mais vontade, como se ele finalmente estivesse quebrando as correntes que ele tinha se dado. Ficamos ali sentados, aproveitando o momento durante um bom tempo, talvez algumas horas.
-Ângelo, acho que precisamos ir, eu prometi à sua mãe te devolver ainda hoje.
-Sim, você não ia querer vê-la nervosa.
-Não, acho que não.
-Eu tenho certeza que não.
-Tudo bem, vou te deixar em casa.
-Sua casa fica mais próxima ao portão Sul, eu te deixo em casa, e isso não está em negociação.
-Já que você pediu com tanto carinho.
Ele piscou pra mim. Era muito raro ver o Ângelo tomando iniciativa, por isso era bom deixá-lo quando ele o fazia. Caminhamos de volta até que ele me deixou em casa, me deu um beijo na bochecha, me desejou boa noite e foi pra casa. Enquanto eu fui pra cama, já era noite e foi um dia bem longo, e muito bom.
-Marcello, você vai comer algo?
-Não mãe, vou dormir.
-Tudo bem querido, boa noite.
-Boa noite.
E mais uma vez o sono veio devagar, e trouxe com ele um sonho, um sonho com olhos azuis claros.
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